Ensaio Jorge La Ferla, 2003

VB: 20 anos_ "Contra o espetáculo do consenso"


Contra o espetáculo do consenso


Este aniversário é certamente uma comemoração importante. O Videobrasil existe desde suas origens como um fórum em que as expressões do audiovisual independente brasileiro, latino-americano e do hemisfério sul vêm sendo o grande painel onde se exibe a potencialidade criativa das artes audiovisuais eletrônicas independentes.


Considerando o difícil contexto deste novo milênio, a permanência do Videobrasil é um marco dentro de um panorama mundial em que os meios de massa predominam com sua venda de consenso e espetáculo. O vídeo como meio, e ideologia do alternativo e independente, foi abandonado por conhecidas instituições agora voltadas exclusivamente à propaganda de caráter digital, que ainda não demonstrou poder produzir grandes obras artísticas, e que se destaca pela falta de grandes autores e teóricos.


O tema do audiovisual independente propõe um espaço e tempo em conflito, pelas mudanças na materialidade dos suportes tecnológicos, pela pseudoglobalização do mercado audiovisual e pelo predomínio do equipamento digital em todos os processos produtivos. Além de um suporte em via de desaparecer, como é o eletromagnético, a defesa nominativa do vídeo implica uma clara posição ideológica que se situa além do suporte, já que defende o alternativo, o autoral e o criativo no audiovisual. A obra artística de experimentação independente possui um valor importante em um mundo dominado por umas poucas corporações que se movem fora do âmbito e das leis de estados em decadência. Esses organismos, dignos representantes de um império reconhecido pelo nível decadente de seus espetáculos, possuem como único modelo o benefício econômico, a submissão política e o domínio comercial global expressado por um fluxo audiovisual caracterizado por sua uniformidade. Oferecer alternativas a esse magma é uma tarefa fundamental oposta aos grandes eventos e festivais audiovisuais mais importantes.


Pelo Videobrasil passaram os influentes e as figuras mais destacadas, famosos e desconhecidos, da criação audiovisual mundial. Esse evento também se destacou como um fórum de relações que significou encontros e contatos para os realizadores de todo o planeta. No entanto, creio que a essência da existência e do espírito do Videobrasil foi a convocação nacional que realizou. O Videobrasil nasceu voltado ao vídeo brasileiro para imediatamente produzir uma tensão muito produtiva entre o âmbito local e o âmbito internacional. Nessa alquimia encontrou sua maior originalidade. O Brasil, logo após a gênese que implicou o movimento chileno no continente, foi pioneiro no desenvolvimento do vídeo independente e atualmente é o país com maior número de artistas e produtores audiovisuais interessantes. Durante os anos 1980, a vontade de fazer e a possibilidade de acesso a equipamentos portáteis de vídeo produziram uma eclosão de autores e produtoras, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Desde a típica procura artística paulista, sempre buscando um canal de expressão individual, até as realizações de produtoras independentes para a televisão, aos grupos de vídeo que apontavam para uma ação social e política, o vídeo marcou época no meio audiovisual brasileiro. Outra característica fundamental do Videobrasil foi a de abrir espaço a todas essas manifestações brasileiras. E isso apesar das críticas intolerantes de alguns puristas da arte audiovisual. A confluência de videoartistas, de realizadores de produtos televisivos junto com trabalhos de vídeo popular centralizados na A.B.V.P., Associação Brasileira de Vídeo Popular, ou em televisões piratas assinalou essas características de alteração e de abertura. Desse modo, como também através das seleções de todas as edições do Videobrasil e de suas atividades de difusão nacionais e internacionais, é praticamente uma das poucas possibilidades para uma visão ampla do vídeo brasileiro. Poucas instituições do país podem oferecer algo similar. A problemática situação institucional de nossos países, na periferia do mundo globalizado, torna complicada a manutenção de qualquer acervo cultural e artístico audiovisual, e isto é ainda mais complexo quando se trata de material independente. O arquivo do Videobrasil deve ser o mais completo sobre a matéria no Brasil, e, pelo menos, na América Latina. Este arquivo é de um valor incalculável e é fundamental que seja preservado.


Aqueles jovens realizadores de vídeo que se mostraram nas primeira edições do Videobrasil incursionaram logo pelo âmbito da TV, outros se voltaram a atividades mais rentáveis e menos independentes, mas foram contaminando diversas instituições do sistema, desde uma diferença de critérios que implicaram uma renovação do documental e outros formatos televisivos, dos vídeos corporativos e institucionais, e dos vídeos musicais. Essa diversidade e mistura de energias gerou uma profusa quantidade de obras em vídeo criadas por artistas e realizadores que encontraram seu lugar na especificação de cada meio e no hibridismo de suas combinações, entre os quais poderíamos mencionar tranqüilamente mais de uma dezena de autores que consideramos tenham marcado um caminho de criação e uma época única de obras notáveis no âmbito mundial. O evento Videobrasil foi uma das instituições encarregadas de convocá-los e difundi-los.


Lembremos que hoje, mais do que nunca, quando mais fechado, monopolizador e mafioso está o mercado audiovisual, muitas escolas, centros e universidades em todo o mundo lançam no mercado milhares de estudantes que acabam produzindo um certo tipo de produto audiovisual uniforme. Pensamos que são as instituições independentes voltadas ao audiovisual as que têm a tarefa de formar artistas, comunicadores e realizadores audiovisuais para gerar uma teoria e motivar uma prática experimental com todo o espectro de linguagens, formas, suportes audiovisuais e sua combinação. Há que enfrentar com a diversidade a uniformidade no ensino, dada pelos meios que se têm adaptado à situação de um mercado audiovisual que só concebe produtos de parâmetros estabelecidos. O Brasil também nesse sentido se destaca, por ter uma linha de pensadores, professores e teóricos cuja tarefa é gerar uma prática aberta e experimental às formas audiovisuais. Talvez esta confluência seja outra das causas da alteração e do alto nível do audiovisual independente brasileiro que é convocado nas sucessivas edições do Videobrasil.

Pouco se poderá esperar das corporações multimídia, ultraconcentradas em poucas empresas matrizes de grande poder financeiro e de alcance planetário no que diz respeito à criação de produtos audiovisuais de qualidade, com uma marca de autor, de caráter experimental, com fins e usos artísticos. Isso obviamente é uma questão política que nunca será mudada pelos governantes atuais. Por isso, organizações e eventos como o Videobrasil são uma garantia exemplar de como gerar outros espaços para uma expressão audiovisual valiosa, original e diversa.

(catálogo 14º Videobrasil) ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 207 a 209, São Paulo, SP, 2003.

Ensaio Jorge La Ferla, 10/2004

ensaio_ Gustavo Galuppo_ "Sobre a obra de Gustavo Galuppo: História(s) do vídeo (em) digital" - por Jorge La Ferla

 


Sobre a obra de Gustavo Galuppo: História(s) do vídeo (em) digital


Gustavo Galuppo é um dos realizadores de vídeo mais originais de uma geração intermediária do audiovisual na Argentina. G.G. mantém uma obra versátil em busca de um estilo próprio, a partir de um processo de pensamento que se situa ente o cinema, o vídeo e o digital, em obras que questionam as medidas expressivas do curta-metragem e do trabalho de longa duração. Este realizador rosarino, estudioso do cinema e do vídeo, além disso tem adentrado também o campo das instalações e das performances, com seu grupo Vera Baxter.


Quero também me referir a esta série “Dossier”, uma saudável raridade e uma referência no panorama do audiovisual internacional, que acompanha a memorável história do Videobrasil. Essas crônicas mantêm, em todos os sentidos, o patrimônio videográfico brasileiro, internacional. A energia e a continuidade do festival, esse material e o ambicioso projeto de construir uma base de dados on-line seguem colocando o Videobrasil em um lugar de referência fundamental do vídeo mundial. Essa vitalidade exemplar nesses tempos de crise tem seu correlato na obra e na atitude de Gustavo Galuppo, que vem produzindo, sem interrupções, uma obra audiovisual sólida e comprometida.


Consideremos alguns aspectos dos últimos trabalhos de Galuppo que podem servir como pistas para a análise de sua obra. Encontramos vídeos de curta e de longa duração, que estabelecem um diálogo entre si, com diversas estéticas contemporâneas. Essas duas vertentes se conformam entre os vídeos que estão com menos de dez minutos e os que se aproximam dos 60 minutos, os quais marcam um espaço diferente na produção recente de sua obra experimental.


É bem curiosa a idéia de aplicar no vídeo a idéia e o conceito de curta-metragem cinematográfico. Isto não é somente uma questão de duração, mas também uma contaminação semiótica em diversas marcas com as tecnologias eletrônicas e digitais, que reafirmam certas relações híbridas entre o cinema, o vídeo e a multimídia. A manipulação criativa dessas transferências, entre suportes e linguagens, tem produzido um giro notável na obra de Gustavo Galuppo e nas suas últimas obras: “El ticket que explotó”, 5´, 2002; “La disección de una mujer ahogada”, 60´, 2002; “Días enteros bajo las piedras”, 65´, 2004; “La progresión de las catástrofes”, 8´50”, 2004, que já formam um corpus muito interessante de trabalho.



Em ambos os trabalhos “longos” funcionam disparadores narrativos que tentam montar um relato experimental complexo, que talvez poderíamos associar à elegíaca e antológica tentativa cinematográfica de “Enredando as pessoas” (1995), primeiro longa-metragem de Eder Santos. No primeiro longa, “Disección de una mujer ahogada”, é Timoka a localização indeterminada que funciona como um panóptico audiovisual, com um regime severo de controle e isolamento, que se converte em um espaço de crônicas de isolamento e desamor. As anotações da protagonista são parte de um enunciado maior, no qual a memória visual não linear vai construindo uma história de perdas e lembranças. Em “Días enteros bajo las piedras” se constrói um espaço eletrônico com texturas cromáticas e misturas de espaços híbridos, nos quais Clara Vogler e Nataniel vagam como prisioneiros à espera de uma morte inevitável. Esses espaços eletrônicos digitais são espaços fictícios, nos quais os personagens têm um presença tátil que funciona como fragmentos de um relato complexo armado com manipulações e interferências de referências intertextuais, manipulando imagens de películas e arquivos de registros pessoais.


“Disección de una mujer ahogada” é um trabalho que delineia a trama mais complexa, pois propõe, e ao mesmo tempo rompe, com toda a lógica da ficção clássica, reciclando certas temáticas míticas que são as que arrasam com a personagem feminina, em sua relação de amor, morte e incomunicação. Essa busca amorosa e narrativa expõe um discurso romântico aparentemente esperançoso, mas que resulta definitivamente em uma utopia, inclusive mesmo para o realizador. Os materiais usados vêm de registros familiares, fragmentos de filmes mudos reciclados; todas imagens de origens variadas, que são combinadas em relação a uma apresentação em cena, que encontra no processo de pós-produção o lugar fundamental em que se monta a estrutura profunda que dá forma a um relato variável e circular, que nunca se finaliza. A protagonista relê, a partir do digital, as citações com as expressões de Renée Falconetti em “Joana d'Arc”, como parte da simulação das trajetórias de dois protagonistas condenados que perderam tudo, exceto a expressão de seus rostos. “Disección de una mujer ahogada” e “La progresión de las catástrofes” se apresentam como inspirações livres de textos de Jean-Luc Godard e Marguerite Duras, propondo intertextos complexos entre o cinema e o vídeo, nos quais, através da manipulação digital, a mitologia cinematográfica é fagocitada e reciclada pela virtuosidade de uma pós-produção artesanal, com o digital em algo que poderia ser intitulado “História(s) do cinema em vídeo digital”.



O complexo e interessante tópico da digitalziação do vídeo, nos usos feitos por Galuppo, marcam uma obra estruturada por essa hibridez de suportes tecnológicos e o cruzamento de linguagens em um manuseio original que lê códigos semióticos do cinema e do vídeo, colocando em relevo construções expressivas que remetem à história desses aparatos audiovisuais e a suas mitologias revisitadas em manipulações digitais.


É assim que Gustavo Galuppo, um dos realizadores argentinos mais comprometidos com uma busca incessante, manipula nesses seus trabalhos recentes dos últimos dois anos notáveis linhas expressivas que dialogam entre si,desde um parâmetro, como é a duração linear de suas obras.


De um lado estão “as poéticas breves, de traço conceitual e com um ar auto-reflexivo”, diz Galuppo, “por outro lado estão as obras longas, nas quais a narração se esforça para abrir caminho em estruturas que ainda tentam fazê-la desaparecer. Não sei de onde vêm ambas (e não quero saber, será melhor explorar e encontrar no caminho), mas neste momento penso em desenvolver paralelamente ambas as direções. Talvez seja assim, duas formas independentes. Ou talvez em algum ponto se encontrem (e se encontram já, seguramente, em algum ponto) e gerem outra forma. Veremos” (G.G.).


“Se se trata disso, de aprofundar uma ou ambas as linhas, você as define muito bem. De todas as maneiras você entra em algo longo, doloroso e difícil.

É a partir dessa constância, e busca permanente, que você se converte em autor.

O que está fazendo vai bem, a questão é aprofundar ainda mais. Creio que o narrativo em seus trabalhos longos está tomando uma importância inédita para o gênero, e que este trabalho de releitura conceitual do cinema, da memória e das lembranças estão bem encaminhados.

Ainda falta a você derramar mais sangue.

Algo que na Argentina é difícil pela falta de apoio e pelo entorno difícil.

Da utilidade não tenha dúvida, você já se deu.

Um abraço.

JLF”

Associação Cultural Videobrasil. "ff>>dossier 007>>Gustavo Galuppo". Disponível em: . São Paulo, outubro de 2004.

Ensaio Jorge La Ferla, 11/2008

ensaio_ff>>dossier Marcello Mercado


As fronteiras da imagem maquínica


Jorge La Ferla e Anabel Márquez


Falar da obra de Marcello Mercado é tratar da história da criação audiovisual na América Latina. A amplidão de sua obra artística implica considerar os processos que convulsionam as relações tela/imagem/espectador, prazer/consumo, diegese/identificação, que Mercado respeita, ainda que as transgrida. Os vídeos de Mercado atravessam diversas fronteiras das enteléquias da imagem maquínica. A ilusão de realidade e de movimento através do registro da câmera é deslocada pela poética tecnológica de Mercado em seu relato sobre os processos de experimentação com a imagem.


Recordamos os primeiros vídeos de Mercado, por meio dos quais tomamos conhecimento de sua obra. The Torment Zone (1992) e Las nubes (1991) já mostravam diversidade em um sistema de trabalho baseado na imagem parada. As gravuras e desenhos na série iconográfica de bilhetes, jornais, estampas religiosas e radiografias eram processados por efeitos eletrônicos, em tempo real, com uma câmera Sony V 5000, a partir da qual se realizava um primeiro desenho gráfico do quadro. A reformulação de símbolos, a manipulação plástica da imagem era feita com equipamentos analógicos de pós-produção, tanto quanto com a própria câmera.


Os equipamentos disponíveis no começo dos anos 1990 suportavam somente uma determinada quantidade de camadas e gravações, uma vez que a qualidade da imagem se deteriorava rapidamente. Essa limitação já fazia nascer, para Mercado, uma estética de montagem, espacial e vertical, que culminava na proposta de um quadro complexo. The Torment Zone foi trabalhado no antigo formato tradicional de vídeo, de ¾ de polegada, o U-matic. Visualmente agressivo, apresentava a transfiguração sobre o que vemos e escutamos. A originalidade máxima havia sido alcançada pelo processo do estranhamento, no caminho do figurativo para o desfigurativo, pelo recurso à visão háptica; uma abstração que se convertia na leitura aguda de uma Argentina perversa, como poucas obras audiovisuais conseguiram na fatídica década de 1990.


The Warm Place (1998) marcaria o início do trabalho de Mercado com um computador pessoal, em âmbito privado, já sem recorrer mais a um estúdio de pós-produção. M.M. se converte no operador que trabalha sozinho com sua própria máquina durante longos períodos de tempo. Naquele momento, alguns comandos de manipulação complexa da imagem levavam uma enorme quantidade de tempo para realizar os cálculos requeridos para a composição, o chamado render. The Warm Place é um documento intenso e visceral que continuava a busca baseada no hibridismo do pictórico no eletrônico, mas através de processos de manipulação matemáticos/digitais.


Nos trabalhos realizados em vídeo analógico, Mercado já havia excedido os limites de uma tecnologia pensada para outros usos corporativos e artísticos. A ruptura do figurativo se baseava na ausência da típica cena com personagens dentro do quadro e em não recorrer a imagens em movimento captadas pela câmera. O processamento de materiais de arquivo, o desenho gráfico e a combinatória de imagens superpostas geram a fragmentação das convenções da associação literal entre som e imagem.


The Warm Place indicava, assim, outro ponto de inflexão no trabalho de Mercado, a combinação criativa entre vídeo e multimídia, que exacerba a estrutura de composição do quadro, evitando a transição, por corte, entre as imagens, apesar de estarmos sempre operando em duas dimensões no interior do quadro metamorfoseado pelos diversos programas que criam uma variedade muito ampla de capas, nos eixos horizontal e vertical.


Podemos interpretar esses processos como um metadiscurso sobre o uso de certos hardwares e softwares, primordial em Mercado a partir desse momento. A manipulação artística desses dispositivos estabelece parâmetros nos processos expressivos da imagem que transformam qualquer imagem ótica dinâmica realista, de câmera ou arquivo, em forma “desanalogizada”. Esses trajetos pelo corpo, pela morte, pela história, pelo desejo e pela loucura vão se construindo em um longo work in progress que rompe com a linearidade das relações espaço-temporais habituais.


Essas transições colocam em questão a noção de corte, de edição e de montagem, subvertendo os mandamentos do audiovisual clássico. Assim se propõem relações mais complexas entre as partes, que excedem o quadro e a cena como unidades de sentido. Esse sistema na composição vertical de imagens funciona como montagem dentro do quadro, com o que se consegue um espaço composto de muitas imagens, que resultam da manipulação algorítmica. É nessa interminável manipulação que se determina a forma final da obra. Algo que é uma formalidade temporária, porque, para Mercado, a operatória numérica audiovisual nunca está terminada, são etapas de seus extensos works in progress.


O antigo conceito de edição se reconverte em um processo que nunca tem fim. Estamos frente a um novo conceito de mise-en-scène que rompe com a idéia de obra original e de master. O parâmetro da profundidade de campo cuja gênese estava em um registro de câmera também é modificado por um processo de recomposição artificial dos planos a partir de sua combinação em camadas e da ruptura de uma visão ótica analógica. The Warm Place é, apesar de sua aparência bidimensional, um trabalho em relevo que resulta da estética descrita de composição vertical. Mercado se apropria, fagocita e transforma os usos das máquinas. Primeiro foi a máquina vídeo; agora é o computador pessoal. Recordemos que The Warm Place ganha o 12º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, o que implicaria outro reconhecimento importante em sua carreira artística.


Das Kapital (2004) surge do processamento em máquinas digitais de alto porte e com programas muito sofisticados. Estamos em outra instância tecnológica, com equipamentos que processam em tempo real ordens complexas de imagens. O recurso à obra de Marx apresenta uma forma diversa a partir da associação entre o computador, os processos de simulação textual e a pureza matemática de um discurso sobre o mundo, a economia política, o inconsciente e a epifania da imagem.


Grande parte dos dezessete minutos de Das Kapital é formada por imagens geradas por computador. Uma série de pura abstração, que combina textos, fórmulas e fotografias, ao final, de uma crueza extrema, e sem qualquer tipo de manipulação. São fotos de cadáveres, corpos lacerados por ações violentas; é o realismo da morte como a inércia do tempo passado. Mercado emprega a eterna imagem fotográfica como testemunha do vivo, os corpos inertes culminam com toda a série de imagens numéricas não-figurativas. Esse contraponto é o efeito da estrutura da obra, em sua mistura de suportes na combinatória do fotoquímico e do numérico, como um relato do que pode fazer um artista operando com tecnologias e relacionando diversos dispositivos visuais.


É com sua obra The Chemical and Physical Perception in the Eye of the Cat, in the Moment of the Cut (2005), premiada no 16º Videobrasil, que podemos começar a fechar este breve panorama da obra de Marcello Mercado. Um vídeo que apresenta o nascimento das artes eletrônicas como via possível para o desenvolvimento de novas experimentações, que se apropriam da indústria química e biológica. Com animações tridimensionais e bidimensionais, que são resultado da expansão da prática pictórica para o computador, Mercado emula processos de decomposição biológica na ruptura do índex e ao operar ao máximo a imagem numérica.


A transformação de códigos traduzidos pelo computador em imagens sintéticas dá conta de uma nova linguagem audiovisual, revelando, por default, as duas vertentes que constituem a essência da imagem: a analogia com o real e a ilusão de movimento. Nessas obras, o não-dito, como texto, gráfico e som, se combina ao não-representado, como uma referencialidade que resulta da manipulação do aparelho eletrônico/digital. Esse rechaço do rastro de realidade do audiovisual, fotoquímico, eletrônico e digital é uma das marcas mais notáveis em Mercado, e que atravessa toda a sua obra.


A exceção é composta pela imagem da caixa de aspirinas e pela foto do cadáver com orifício de bala na têmpora. Duas analogias de mal-estares nas funções cerebrais. A meticulosa construção artesanal de múltiplos fragmentos gráficos que, no transcorrer do tempo, constituem as partes de um todo, em um processo de fuga do figurativo que se concretiza na construção da obra, criando, a partir do abstrato, uma profunda ruptura com as formas dos sistemas de representação. A obra de Mercado testemunha certos extremos discursivos, e expressivos, aos quais o vídeo pôde chegar. É nessa função da arte que se força o aparelho audiovisual a fazer o que não está inscrito em seu programa nem no sistema de representação, ou seja, uma ação que conquista novos espaços de independência criativa, valor em desuso no audiovisual do momento.

Associação Cultural Videobrasil. "FF>>DOSSIER 039 Marcello Mercado". Disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/site/dossier039/ensaio.asp São Paulo, outubro, 2008.