Entrevista Renata Alencar, 2003

Entrevista cedida pela artista ao 14º Videobrasil

No contexto sócio-político e cultural contemporâneo, as identidades locais se reconfiguram em tensão com os fluxos globais. Inserida neste processo, a arte eletrônica participa como um campo aberto à experimentação e expressão de novas formas de subjetividade. Como essas questões se manifestam em seu trabalho?

Se as identidades locais se reconfiguram é porque novas sensibilidades se impõem na contemporaneidade. E uma dessas novas sensibilidades seria a busca por enxergar o global de um ângulo que não aquele massificador e homogeneizador. O global seria, então, heterogêneo, um emaranhado de particularidades e intimidades que são trocadas, transformadas e – por mais que possa soar como paradoxo – preservadas, pelas pessoas no seio da vida social. Penso que a arte tem esse papel de expressar as atualizações da sensibilidade de um tempo que compartilha. Não sei se seria o caso de localizar a minha obra nesse contexto, mas arrisco uma tentativa de aproximação. Papilas tem como ponto de partida uma célula, uma entidade “micro” em todos os aspectos: a casa, o corpo, o som individual dos sussurros, o silêncio etc. A cidade é ambientada através do apelo sonoro no início e no final da obra. Nada mais. Ao deslocar a qualidade global do urbano, suspende-se um tempo e a obra passa a mover-se em um outro tempo, o tempo doméstico que dá abrigo ao seu prazer. E, apesar de intimista, quase-individual, a obra trabalha com um tempo sensível em escala micro mas, no entanto, compartilhado em uma escala macro.

No contexto de abordagem dos meios eletrônicos-digitais , interessa-lhe as questões do corpo? Como o corpo aparece em sua obra?

No universo das videografias artísticas – desde os seus primórdios na década de 1960 até os dias de hoje – o corpo faz-se presente ora como elemento plástico e visual, ora como decorrente do apelo pela intervenção do sistema sensório-motor do agente fruidor. Mais recentemente, em função do avanço das tecnologias digitais interativas, as máquinas são situadas como extensões corporais configurando o que alguns denominam de corpo ‘biocibernético’. No entanto, apesar de diferentes formas através das quais o corpo intercepta a arte eletrônica, seu caráter primordial está no fato de ser, sobretudo, um mecanismo de produção de sentido e subjetividade. No caso do vídeo Papilas, penso que existem vários ‘corpos’ que co-habitam e se relacionam na obra: o corpo visual da personagem/artista, o corpo sonoro dos sussurros e risadas, o corpo do olhar que corta e é cortado pelo enquadramento e a fruta, o caqui - corpo subjetivo que aponta para outros corpos. Se o intuito primeiro dessa obra era apresentar um universo do desejo e do prazer através de percepções sinestésicas, a sinestesia em si já nos remete a uma espécie de apropriação do corpo como canal por onde perpassam os fluxos de sensações. Há ainda, um outro aspecto da utilização corporal em Papilas: o aspecto da domus. É um trabalho que se aloja no ambiente doméstico utilizando-se de uma certa dose de intimidade e uma precariedade que lhe são características. Nesse ambiente, diante da pouca preocupação em fugir dos desvios ocasionais da imagem, constrói-se uma relação compartilhada entre o corpo e a câmera. O corpo olha e se dirige à câmera ao tempo que é observado e registrado por ela. O intimismo e o sentimento estético de desejo emergem dessa combinatória de representações corpóreas – visuais, sonoras e subjetivas - alojadas no ambiente doméstico.

Associação Cultural Videobrasil