Ensaio 2005

ensaio do grupo Contrafilé a partir de texto de Daniel Lima_ "O Artista na Cova dos Leões"


O ARTISTA NA COVA DOS LEÕES

por Cibele Lucena, Jerusa Messina e Joana Zatz — Contrafilé



A MORADA

"Este é o campo de batalha. Acorde, e perceba que nesta luta eu só tenho você. Eles espalharam em todos os cantos, em toda parte, em todas as esquinas, de todos os lados, a minha palavra: OLHE".


Saturada de tensões, a cova dos leões é a morada do artista.


Nela prepondera um movimento linear e estável que a apresenta como um lugar homogêneo e sem contradições. Movimento cuja lógica atualiza somente situações previsíveis, reproduzindo sentidos como forma de manter o controle.


Esse movimento é o alvo do artista: deve ser interrompido.


O ARTISTA


"Os anjos luminosos me protegem e minha fé é certeira. O alvo está logo ali, embaixo, parado, esperando a ação que trará a redenção, que recuperará a integridade de todas as coisas e unirá tudo".


Em permanente estado de alerta, o artista olha para a cova dos leões e vê ali toda a constelação de possíveis.


Vislumbra uma clareira: a possibilidade de subverter o movimento dominante. Identifica os possíveis geradores de sentido e, atualizando-os, afirma sua atitude política. Inscreve-os para realizar necessidades radicais e experimentar a vida como arte.


Quando arte é substrato das atualizações não previstas pelo movimento vigente – para esse artista –, é ato político. Fazer arte é, então, produzir sentido; criar e inscrever sua maneira, inaugurando o refluxo.


O artista na cova dos leões transforma a história ao realizar o que de outro modo não teria sido.


A RUPTURA DO MOVIMENTO


"O ato heróico dos catadores de restos é o estado da contemporaneidade. Transitoriedade, esse invisível que tenho a expor. Restos luminosos são o que tenho — vamos excluindo e deslocando...Tento recolocar os restos de volta à vida, que é a circulação das coisas. Assim me recoloco".


Na cova dos leões, repleta de contradições, o artista se sente íntegro: é na contradição que vive a experiência legítima da verdade e, com isso, a possibilidade de ruptura. Olha uma situação e a vê como imagem da sua urgência de inscrição; como ponto de divergência entre o que é e o que, para ele, teria sido.


O domínio crítico do mundo em código possibilita, portanto, a realização do artista: interromper o fluxo fazendo surgir, subitamente, outra possibilidade.


DA CONTRADIÇÃO NASCE A SÍNTESE


"Despindo-me para o encontro divino, percebo que meu corpo é único e repetido. Da contradição nasce a síntese. Re-produzir, como reflexo, do outro lado do espelho ou produzir refletindo, deste lado do espelho. A esperança de reinvenção vem quieta sem que nós percebamos".


O artista age. Evidencia os indícios da contradição ao realizar um fato que inscreve simbolicamente a resistência. Um grão singular portador de futuro que, por abrir uma nova constelação de possíveis, viabiliza a sua própria proliferação.


A CAPTURA


"A cidade tomo para mim. A pichação é uma invenção. Supera o corpo, estendendo-se para o vazio; ocupando com ação invisível a clareira urbana. A conquista do espaço é aqui. Público é o meu anonimato e a imagem é para sempre minha".


Para o artista na cova dos leões, o fato inscrito transformado em evento é a própria realização do refluxo, porque se configura como a duração de um possível inesperadamente atualizado.


Por outro lado, é natural que o movimento dominante transforme o acontecimento portador de futuro num evento de outra ordem: uma imagem esvaziada de experiência. Portanto, perdurar o fato em evento, segundo a lógica da reprodução, é eliminar seu potencial de proliferação, determinando sua morte enquanto símbolo de resistência.


AS ARMAS


"A imagem é circulação.

A imagem é captação, edição e manipulação.

A imagem é uma nova construção.

A imagem é possibilidade de metalinguagem.

A imagem revela o perverso espetáculo unilateral.

A imagem seduz a ação.

A imagem te seduz e constrói nosso mundo de ação.

A imagem é contra-imagem.

A imagem é só imagem.

A vida é blur. Nada mais".


Para que o acontecimento não seja capturado, é fundamental que o artista realize os dois lados do espelho: o fato e sua imagem. Quando entende a imagem como uma arma, cria outro fato que, da sua maneira, prolifera o sentido produzido no primeiro.


Sem prontidão, o artista corre o risco de inscrever a imagem do fato de modo a confirmar a lógica da reprodução, tornando-se predador de si mesmo. Assim, em qualquer situação, o artista na cova dos leões deve garantir que um novo fato portador de futuro seja gerado.


A LINHA INTERMITENTE


"A coluna rompe com o espaço contido. Subverte o isolamento imposto pela arquitetura. Cria um monumento sintético, onde a verticalidade e a horizontalidade são exacerbadas numa reta infinita — uma continuidade do ponto. Também é um ato heróico, guerrilheiro, lírico, em que a intervenção se utiliza da dinâmica previsível do presente para gerar o seu reconhecimento, criando no cotidiano a estranha percepção/compreensão de algo que retorna a si mesmo".


O artista na cova dos leões vive o mundo das exposições de arte como uma arena.


Deve permanecer alerta porque, nesse mundo, novas maneiras para produzir as mesmas coisas costumam ser legitimadas como obras. Portanto, é preciso ter em mente que a finalidade e o uso que se faz dos meios é o que determina a inscrição do trabalho como resistência ou tolerância ao movimento dominante.


É fundamental que o artista na cova dos leões tenha ao utilizar os mesmos meios para outro fim: confirmar a própria contradição.


A REDENÇÃO


"Não importa o que foi nem como aconteceu. Importa apenas o que aqui está. Restou o meu olhar. É preciso ouvir a música que faz lembrar a mudança acontecendo a cada instante. Não tenha medo do que virá, pois, na hora da nossa morte, vamos ser o que sempre desejamos ser. E mesmo assim, se algo escapar, deixe estar, porque um dia todos nós vamos ser um. Um só".

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** Todas as citações entre aspas foram retiradas do texto “Daniel na cova dos leões”, de autoria do artista Daniel Lima.

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