Ficha técnica complementar

trilha sonora - PROJETO LCD (Paulo Beto - sintetizadores, samplers, kaos pad e baixo elétrico; Eloi Silvestre - instrumentos eletrônicos inventados, mac performa e apple II; Miguel Barella - guitarra processada e micro teclado casio processado)

Texto de apresentação 2003

Desconstruindo Letícia Parente: “Marca Registrada”

Manipulando ao vivo imagens pré-alteradas sobre exercícios musicais de improviso eletrônico, o artista e VJ relê a obra “Marca Registrada”, de Letícia Parente (1930-1991), pioneira da videoarte no Brasil. Realizado em 1974, o vídeo mostra a artista baiana bordando as palavras “Made in Brazil” na planta dos próprios pés, que ocupam a tela num grande close. Para Luiz Duva, realizador de vídeos, documentários, videoinstalações e performances — as Live Images —, o foco de interesse é criar um contraponto entre a histórica performance de Letícia e a desconstrução da narrativa do vídeo que resulta da sua manipulação. 

Letícia Parente formou-se e doutorou-se em química antes de enveredar pela arte. Discípula de Pedro Dominguez, Hilo Krugli e Annabela Geiger, participou das mostras mais importantes de videoarte brasileiras dos anos 1970, no Brasil e no exterior. “Marca Registrada” faz eco com artistas norte-americanos do mesmo período, como Vito Acconci, Joan Jonas e Peter Campus, cuja obra consistiu, como observou na época a especialista em arte do século 20 Rosalind Krauss, em colocar o corpo do artista entre duas máquinas (a câmera e o monitor) de modo a produzir uma imagem instantânea, como a de um Narciso mirando-se no espelho.

“De cara a sensação, que gela a espinha, de ver um pé sendo costurado. Depois a aflição de um olho que decodifica a ação, mas não entende a razão. (...) Foi assim que vi ‘Marca Registrada’ anos atrás. Foi assim que ele me veio meses atrás quando procurava uma pequena ação para incorporar a um novo trabalho. O acaso me fez entrar no terreno da manipulação de imagens ao vivo. O acaso colocou ‘Marca Registrada’ no meu laptop. Só precisei estender a mão e juntar os pedaços, conectar coisas que circulavam a minha volta há tempos. Minha curiosidade inicial era a desconstrução da narrativa que se dava na edição ao vivo. Por mais que me abstraísse dela, ela, a narrativa, sempre voltava. Impunha-se, se não aos meus olhos, aos do público que experimentava a imersão. Outras indagações surgiam: como a ambientação de uma imagem contribuía para seu entendimento? Como poderíamos ter um tipo de narrativa que fosse espacial, relacionada ao posicionamento das telas? Desejava investigar imagens e sons para criar uma terceira linguagem, não a soma das duas. Isso, para mim, era vital”, diz Duva.

O artista trabalhou com uma cópia precária do vídeo de Letícia. Escolheu reforçar a ação do tempo, sampleando um dos drop-frames (frames danificados que provocam um risco horizontal na tela) e reinserindo-o centenas de vezes no vídeo. “Dessa forma poderia ‘tocar’ esses drop-frames como se fossem partes de uma partitura da desconstrução”, explica. Para servir de base às manipulações ao vivo da performance, usou jams do LCD, grupo de improvisação eletrônica conhecido do circuito paulistano com incursões por festivais de música experimental na Espanha. “Seria meu improviso em cima de uma base improvisada”, diz. Formado por Paulo Beto, Eloi Silvestre e Miguel Barella, o LCD faz jams semanais de criação espontânea, sem ensaio. São exercícios de equilíbrio e busca de espaço para o acaso, que se transformam em CDs sem edição.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 194 e 195, São Paulo, SP, 2003.

Texto do artista Luiz Duva, 28/05/2003

Desconstruindo Letícia Parente: 'Marca Registrada' - Processo de criação

De cara a sensação que nos gela a espinha, ao ver um pé sendo costurado. Depois, a aflição de um olho que decodifica a ação mas não entende a razão. A procura pelo significado. A tentativa de distanciamento, tentativa de se controlar a emoção e friamente entender o que se vê. Foi assim que vi 'Marca Registrada' de Letícia Parente anos atrás. Foi assim que ele me veio meses atrás quando procurava um pequeno movimento, uma pequena ação para incorporar a um novo trabalho. O acaso me fez entrar no terreno da manipulação de imagens ao vivo. O acaso colocou 'Marca Registrada' em meu Laptop. Só precisei estender a mão e juntar os pedaços, conectar coisas que me circulavam há tempos. Minha curiosidade inicial era a desconstrução da narrativa que se dava na edição ao vivo. Por mais e mais que me afastasse da narrativa, ela sempre voltava. Impunha-se. Se não aos meus olhos, aos do público que experimentava a imersão. Outras indagações surgiam: como a ambientação de uma imagem contribuia para seu entendimento? Como poderíamos ter um tipo de narrativa que fosse espacial, relacionada ao posicionamento das telas? Desejava investigar imagens e sons para criar uma terceira linguagem, não a soma das duas. Isso pra mim era vital. Questão de sobrevivência. Nesse momento não pensava na Letícia, mas na sua ação. Uma ação com começo, meio e fim, que, por ser um movimento contínuo, poderia ser desconstruida e re-construida. Assim, numa primeira exibição poderia apresentá-la inteira e logo em seguida, poderia desconstruí-la quase que didaticamente. Isso me interessava, me apropriar do vídeo de Letícia em outro suporte tecnológico e propor novas significações para ele. Esse era o cerne do trabalho. Propor novas associações para um vídeo marco da nossa iconografia. Como videoartista teria pudores, mas como Vj podia tudo, pegar, mascar, engolir e vomitar tudo re-feito, tudo (de)novo. Mas cuidados tinham que ser tomados: deveria estar claro para quem assistisse que eu utilizava 'Marca Registrada' de Letícia Parente, que eu propunha uma re-leitura. Queria deixar claro o respeito e a influência que essa imagem tivera para perda da minha ingenuidade. Na preparação do vídeo para a sua manipulação, procurei não intervir nas cores devido ao estado precário da cópia que tinha em mãos. O que fiz foi justamente o contrário. Reforcei a ação do tempo sampleando um dos drops-frames da cópia e o re-inserindo centenas de vezes pelo vídeo. Dessa forma poderia "tocar" esses drop-frames como se fossem partes de uma partitura. Partes da partitura da desconstrução. Vídeo preparado, faltava a música. Conhecia há tempos o trabalho do LCD, grupo de improvisação experimental eletrônica. Gostava da proposta de jam eletrônica. Miguel Barella tinha me dado uns CDs com gravações das jams em estúdio. Ouvi, ouvi, ouvi, dei 1 play com o vídeo da Letícia. Gostei do resultado, da ambientação, da sustentação que ele dava. Mas faltava algo que marcasse a desconstrução. Acionei o Barella que me retornou com uma jam especial e mais 4 músicas de sua autoria. Uma delas um mega hardcore eletrônico. Estava feito. Como no vídeo, re-inseri o hardcore eletrônico no meio da jam de modo a ter 2 breaks que serviriam de marcas para o início da desconstrução do vídeo. Após essa desconstrução hardcore, usaria a jam como base para diferentes andamentos. Seria meu improviso em cima de uma base improvisada. Tudo acertado, fui ensaiar ao vivo, na noite WhiteOut do coletivo de Vjs Embolex de São Paulo. Tudo sobre controle: as idéias, os porquês. Tudo fora de controle: o ambiente ao vivo, o público, as marcações que nunca são seguidas. Começo. 10 primeiros minutos com as 3 telas. Passa Matéria Prima com um pequeno delay entre elas, como se a ação escapasse de uma tela para a outra. Os 20 minutos seguintes são de pura improvisação e resultava em novas significações, novas leituras que extrapolavam a razão e colocavam o espectador diante de uma outra dimensão temporal na qual os significados deixavam de ser literais para serem sensoriais. No final, minha sensação era uma só: algo tinha acontecido, algo maior que a proposta inicial, além da razão. Como operava os equipamentos de onde não tinha a noção do todo, providenciei uma documentação do trabalho, uma câmera em plano geral para me localizar. Vi a fita e estava tudo lá: a música e as imagens em sintonia. Estava lá 'Marca Registrada' inteiro. Estava lá a desconstrução e a construção de uma nova narrativa. Estava lá a contextualização espacial e acima de tudo estava lá Letícia Parente com todo seu frescor, viva, pulsante, sorridente. L I N D A ! Por fim, meu imenso obrigado à famíla de Letícia e em especial a André Parente, seu filho, que foi tão gentil em abraçar e autorizar o projeto, a Miguel Barella do grupo LCD, que entendeu a importância da soma das coisas e, é claro, ao acaso, sem o qual talvez eu não tivesse enxergado o que estava bem embaixo do meu nariz: a beleza por trás da força desta maravilhosa obra de Letícia Parente.