Entrevista Marcelo Rezende

De que forma se deram suas primeiras experiências envolvendo produção poética e tecnologia?

Kiko Mistrorigo – O Brasil é muito novidadeiro. Lembro-me de quando começamos, com oArnaldo Antunes, e também com o Augusto de Campos e seu filho, Cid Campos (nós falávamos mais naquele início dos anos 1990). O Augusto dizia que “queria uma letra que rodasseassim”, ou qualquer outra coisa que ainda não existia. Nós procurávamos encontrar uma solução técnica para dar conta desse desejo. Nós todos, essa turma, éramos filhos de umasituação muito ruim, que era a impossibilidade de trazer equipamento para o Brasil e ter a tecnologia que estava sendo produzida na Europa e nos Estados Unidos.

Essa tecnologia para dar conta desses projetos existia já no mundo, mas não no Brasil; era esse o contexto?

KM – Não existia aqui. Existia a Lei de Informática. Você não podia trazer nada parao Brasil, era um crime. Para a justiça, era a mesma coisa você trazer de uma viagem um quilo de cocaína ou o mesmo peso em equipamento. Um tráfico, uma ilegalidade. Não podia. Era proibido trazer tecnologia na mala. Existia um terror geral, era o fim da ditadura; diziam que a Polícia Federal poderia invadir as produtoras. Teoricamente, se você tivesse algo importado estaria impedindo o desenvolvimento tecnológico do Brasil, essa era a justificativa da lei. Um pensamento muito antigo, idiota, e que na verdade representava um lobby da indústria local. Uma cegueira total. Mas o fato é que isso resultou emuma atmosfera na qual cada mínima oportunidade deveria ser aproveitada ao máximo. Quando tínhamos acesso aos manuais dessas novas tecnologias, nós os líamos querendo aproveitar qualquer informação que pudesse nos servir. E nada era autoexplicativo. Mas também arelação com a tecnologia era diferente, se comparada com hoje. Não tínhamos qualquer fetiche com a tecnologia. Quando encontrávamos o Arnaldo e o Augusto, e mostrávamos a eles o que tínhamos descoberto de novo, o que queríamos era dar conta de um problema. E do mesmo modo a falta de tecnologia foi determinante para o resultado final de muitos trabalhos. É interessante você pensar sobre o modo como o Brasil se inseriu. Estávamos inteiramente isolados, em todos os sentidos (sobretudo tecnológica e culturalmente), e essa condição nos levou a procurar furar esse bloqueio, essa ausência de participação do país. O vídeo Nome (com Arnaldo Antunes), quando foi exibido fora do Brasil, teve uma recepção curiosa: os artistas e as pessoas que tinham acesso mais fácil a todos os novos recursos achavam curioso o modo como apresentávamos nossas soluções. Era diferente. E essas soluções resultavam em uma linguagem diferente.

Mas quando vocês começaram todo esse trabalho e pesquisa, o que pessoalmente interessava vocês? Apenas o aspecto tecnológico?

KM – Queríamos fazer animação. Queríamos produzir animação. Não tínhamos um foco exato sobre qual tipo de animação, mas ser apaixonado por tecnologia tinha o sentido de conseguir resolver problemas que não conseguíamos antes. Percebemos logo no início certosperigos oferecidos pela tecnologia, como a manipulação digital das imagens, um certo uso indiscriminado. Você via isso aqui nas revistas, quando os desenhos das páginas pareciam mostrar mais tudo o que um programa conseguia fazer do que outra coisa. Para nós, ointeressante era fazer o que queríamos da melhor maneira possível. Antes as pessoas perguntavam, maravilhadas, “isso foi feito tudo com computador?” Hoje elas dizem: “já que é tudo em computador, você me entrega amanhã, não é?”

E qual o primeiro projeto de vocês que chega ao grande público, via TV?

KM – O primeiro foi para o Castelo Rá-Tim-Bum, programa infantil da TV Cultura. Fizemos um quadro sobre poesia brasileira. Fizemos uma pesquisa sobre poetas e poesias que pudessem funcionar dentro dos trinta segundos que tínhamos. Tudo foi desenhado no “mouse”.
Celia Catunda – Mas penso que nossa aproximação com a poesia se deu de modo casual, menos do que por um interesse específico. Vem do fato de termos trabalhado muito com texto.

Mas o alcance, a escala da exibição proporcionada pela TV interessava-os?

CC – Sempre foi nosso objetivo trabalhar com a televisão. Nossa vontade estava em falar com um público mais amplo. Estávamos muito insatisfeitos com o que era oferecido para as crianças naquele momento, o auge da Xuxa e seu programa. Pensávamos na possibilidade de oferecer um outro tipo de informação para esse público. Algo diferente e melhor.Fazer as poesias para o Castelo Rá-Tim-Bum dava conta de todas essas vontades. Nunca pensamos que deveríamos simplificar o conteúdo para agradar a todos. Estávamos falando para crianças, e queríamos algo divertido e interessante para elas, mas não estava no plano simplificar porque estava sendo exibido para esse público em uma TV aberta, deixandotudo mais vulgar. Para nós, o mais importante foi perceber que rapidamente as crianças aceitaram e gostaram do que fizemos, do modo que acreditamos que deveria ser feito. Pegamos a poesia de Ferreira Gullar, Paulo Leminski, Mario Quintana, Manuel Bandeira; não poesias feitas para crianças, mas poesias de que as crianças pudessem gostar. Nunca acreditamos em oferecer um conteúdo “menor” para o grande público. Isto era e continua presente em nossa produção. Nosso Peixonauta é assim. Um personagem que fala de questões complexas. Muitos animadores que trabalham ou trabalharam com a gente também se educaramcom a informação dada nas aventuras do Peixonauta, ao produzir essas mesmas aventuras, uma animação para as crianças. Hoje, ele é o programa mais visto na TV a cabo no Brasil. Isso é algo para nos fazer pensar. As pessoas não querem ver apenas o que é supostamente para elas.