Entrevista Carla Zaccagnini, 2009

1. Nas tuas esculturas, relevos e instalações, objetos comuns adquirem semelhanças com materiais nobres ou delicados e com objetos clássicos ou especiais, por meio de ações simples e aproximações inesperadas, de tal forma que faz pensar que a possibilidade dessa transformação já estava contida no objeto escolhido desde que saiu da fábrica. Mais de uma vez, diante de uma dessas obras, peguei-me fazendo essa pergunta que aproveito para te fazer agora: você sai à procura de objetos específicos que possam assumir características de terracota ou lenços que possam se parecer com bandeiras ou acontece o contrário – um determinado lenço azul e vermelho te leva a pensar num estandarte e ao comprar um objeto para desentupir a banheira você o descobre semelhante à cerâmica?

Acho que as duas situações acontecem o tempo todo no processo de construção dos trabalhos. Coleciono objetos que me intrigam e às vezes eles não viram nenhuma escultura. Outras vezes, a transformação desses objetos cotidianos funciona muito bem e aí começo a procurar outros elementos parecidos e a produzir peças novas. De um modo geral, meu trabalho com escultura parte de um encontro muito pessoal com coisas que estão ao meu redor; não somente com objetos em si, mas com as situações onde estão inseridos. Eles podem variar de coisas muito banais, que sempre estiveram do meu lado, até coisas que encontro em viagens ou em situações e experiências novas para mim. A partir desse processo de coleção e de apropriação, tento trazê-los para o espaço da arte e propor um curto-circuito nesse trajeto entre a banalidade e uma possível sofisticação do objeto. A economia de gestos ou técnicas nessa intervenção sobre o objeto é um aspecto muito importante nesse processo.

2. Ainda com relação à ambiguidade entre características intrínsecas ou projetadas em um objeto ou forma, fiquei pensando sobre uma resposta tua à entrevista de Jens Hoffmann (veja link na seção Mais). Ali você diz que descontextualiza objetos cotidianos para criar obras que muitas vezes imitam esculturas modernistas – de modo que, quando se olha detidamente, essas formas modernistas revelam originar-se de elementos da vida diária. Você acha que a possibilidade dessa operação se deve, também, a uma disseminação de formas e cores derivadas do modernismo, que permeiam os objetos de consumo com que nos deparamos diariamente, e que você usa para construir suas esculturas?

Sim, acho que essa é uma leitura possível. Acho que a melhor forma para alcançar essas referências históricas no meu trabalho é quando elas não estão tão explícitas e não seguem um modelo rígido no processo de trabalho. Não me interesso muito pela citação em si. Acho mais estimulante quando o trabalho aponta para uma referência da história da arte (e neste caso o modernismo é uma constante), mas abraça outras fontes que permeiam outras áreas, como o design ou a arquitetura. Acho que existe mesmo essa disseminação derivada do modernismo, que é reproduzida em massa em objetos do cotidiano. Muitas vezes, quando incorporo um objeto nas minhas esculturas, enfatizo essa relação com o design, com o aspecto utilitário ou decorativo que está presente no objeto original.

Acredito, no entanto, que as referências no trabalho vão além do modernismo e estabelecem outras dinâmicas. Com a série dos potes (Terracotta Ebony), por exemplo, combino formas de desentupidores para fazer objetos que parecem urnas sagradas ou ancestrais, um repertório visual bem diferente. Em obras mais recentes, trabalho com fios de lã misturados a esfregões, estabelecendo um link com as artes aplicadas, a cultura popular e o artesanato.

3. É importante você chamar atenção para a variedade das referências que informam o teu trabalho. Você poderia falar mais sobre essa questão e, talvez, pensá-la com relação à tua formação inicial no Brasil e aos estudos posteriores na Inglaterra?

Acho que essa economia formal presente nos meus trabalhos talvez seja fruto de uma estética assimilada desde a minha formação inicial como artista, que aconteceu no Brasil. Os artistas que me influenciaram e o que era valorizado naquela época como padrão estético formaram uma base muito importante no meu processo artístico. A arte contemporânea na América Latina ainda segue muito essa tradição e uma certa tendência à procura de gestos mínimos, a elegância das formas. Quando fui estudar em Londres, e me distanciei um pouco desse repertório, fiquei mais consciente dessa influência e comecei também a assimilar outras formas de aproximação da arte que não eram tão ligadas a essa busca da beleza, do exercício formal. Acho que foi muito produtivo para o meu processo combinar essas frentes e assimilar mais humor e ironia ao meu trabalho, por exemplo. Comecei também a perceber o humor presente no debate formal de artistas como Brancusi e outros quesão referências muito fortes no meu trabalho.

Acho que essa discussão sobre o modernismo tornou-se uma questão muito recorrente na produção recente da arte contemporânea e tem se falado muito sobre isso atualmente, nem sempre da maneira mais pertinente. Existe hoje uma tendência seguida por uma geração de jovens artistas na Europa que fazem uma constante referência à arquitetura modernista por um viés nostálgico e às vezes excessivamente estetizado. Por outro lado, esse fenômeno inevitavelmente difunde informações importantes sobre outros lugares do mundo, um repertório visual que era menos acessível até então. Acho que é importante reconhecer a presença desses possíveis vícios estéticos a que todos os artistas estão expostos, e lidar com eles. Mas acredito na obra de arte que tem um discurso mais universal, onde a referência não é o fim do caminho, mas sim uma ponte para outras leituras.

4. Para mim, a força de muitos dos teus trabalhos reside exatamente nesse ponto de equilíbrio precário que eles estabelecem, como se estivessem parados no lugar exato que lhes permite ser ambas as coisas ao mesmo tempo: lenço e bandeira, borracha e ébano. Como no clássico jogo óptico em que um cálice é simultaneamente dois perfis, teus objetos e esculturas têm uma existência elástica ou trêmula, ambígua; de uma mutação que não se completa, que não se entrega confortavelmente nem a um nem a outro lado. Isso não é uma pergunta, mas o que você pensa sobre essa leitura?

Eu gosto muito dessa sua ideia de uma mutação que não se completa totalmente. Fico satisfeito quando as pessoas se referem às minhas esculturas pelos objetos de que elas são feitas, e não pelos títulos, por exemplo. Acho estimulante quando essa transformação acontece mais no imaginário do espectador do que no campo estritamente visual.

Como artista, vejo-me como um intermediador, mais do que alguém que tem o domínio de uma determinada técnica ou um discurso específico. Apesar de usar gestos econômicos, existe no trabalho um investimento e uma preocupação com a forma, com a combinação dos elementos, com a superfície, o trabalho com a cor, que só se estabelecem de uma forma consistente depois de muita pesquisa e trabalho de ateliê.

Eu acho que essa ideia de uma existência trêmula está também relacionada com a ideia de fantasia, de disfarce e de um certo ilusionismo. As minhas esculturas referem-se a um repertório clássico de representação escultórica (bustos, esculturas públicas, potes, cerâmica etc.) e são, em princípio, lidas como tal. Quando o material se revela aos olhos do espectador, imediatamente essa ideia se desfaz, e elas passam a ser uma espécie de disfarce de escultura. Nesse momento, ficam vulneráveis e, ao mesmo tempo, tornam-se engraçadas, estranhas e, portanto, relevantes como objeto de arte.

5. Exatamente: um disfarce doméstico. Porque quando nos fantasiamos (e especialmente quando a fantasia é feita em casa), podemos ser um pirata, mas continuamos sendo nós mesmos, e é possível nos reconhecer por trás do tapa-olho, do bigode falso ou pintado. Com relação a BMX, obra que pertence ao acervo do Videobrasil, parece-me que há ali, também, uma ambiguidade, que o vídeo cria uma ponte pênsil entre áreas diferentes da cultura, e que se trata de um momento entre público e privado, algo entre um ensaio e uma exibição. Queria que você contasse um pouco do processo de realização desse vídeo, sobre a justaposição entre a imagem gravada na rua e o áudio retirado de um CD de autoajuda.

Esse processo de colagem, de justaposição de elementos é uma questão recorrente no meu processo de trabalho. Nas esculturas que fiz com os skates (Fan Series), aproximo o universo doméstico (usando panelas e utensílios de cozinha) à cultura jovem de rua. A ideia de criar um curto-circuito entre esses dois campos é sempre uma motivação no trabalho, e gosto muito de colocar os elementos à prova e ver como podem ser lidos por públicos distintos que estão mais ou menos familiarizados com os elementos utilizados no trabalho. Além disso, existe a questão da apropriação que algumas vezes vai além do objetoem si e passa a ser uma apropriação de histórias ou narrativas. Quando mostrei esse vídeo pela primeira vez, muita gente achava que eu era a pessoa em cima da bicicleta ou que a voz em off era minha.

A forma com que incorporo vídeo ou fotografia no meu trabalho é sempre muito direta, com mecanismos de edição e produção muito low tech, e muito parecida com a forma com que faço as esculturas com objetos que encontro. No caso do BMX, já fazia um tempo que eu observava no caminho do meu ateliê esse cara treinando todo dia no mesmo lugar, mais ou menos na mesma hora. Essa ideia de rotina, de uma prática, de repetição e de virtuosismo despertou a minha atenção. A ideia foi estabelecer um paralelo com a minha própria prática como artista, com o trabalho solitário e repetitivo, a busca por ser melhor naquilo que se faz, e a ideia de sucesso e de reconhecimento.

Na edição eu apenas fiz cortes dos momentos onde ele cai e juntei todos os clipes como se ele estivesse sempre passando de um movimento para outro de uma forma muito natural. O áudio do CD de autoajuda entra como um comentário dúbio, é uma afirmação do truque de edição. Essa relação com a ideia de sucesso e fracasso, e a relação com a rotina, aplica-se também a outras práticas e profissões e, de forma geral, ao mundo contemporâneo, que estimula uma procura constante do melhor desempenho e da melhor performance. Acho que o vídeo fala sobre isso e aborda também questões sobre público e privado, como você cita. Interesso-me também pelo aspecto de tornar a ação casual, o treino (um ensaio) no evento final.