Ensaio Giselle Beiguelman, 04/2004

Assim é se não lhe parece

Vire o monitor. (não tenha medo)
Esqueça a janela. (qualquer janela)
Negue todas as molduras. (inclusive os frames)
Ignore a fonética. (sim, você pode falar sem ela)
Desfigure as imagens. (é possível enxergar, sabia?)
Experimente desenquadrar, empilhar, mover (o mundo, o globo, seus olhos).
Pronto?
Não responda sim. Diga sempre não. (nunca pós, nem pré, nem anti, muito menos pró...)
Fale somente assim. Veja assim (e também assado). Pense assim (pense, pense, pense muito): Não-vídeo, não-imagem,
não-web, não-arte, não-CD-ROM, não-arquitetura, não-game, não-quem, não-não.
Pronto?
Plaf!
Entre.

Angela Detanico e Rafael Lain operam por desconstrução. Elaboram universos temporários que desafiam as formas de identificação dos limites entre visível e invisível e dos horizontes de legibilidade, independentemente da plataforma e/ou interface que escolham.

Tipografia, design gráfico, vídeo, arquitetura, internet, CD-ROM são alguns dos formatos já contemplados pela dupla que não usa suportes, mas transforma artefatos e dispositivos midiáticos em modalidades discursivas de diagramas instáveis.

Enunciam uma cultura de apropriação que se faz na contramão da sampleagem.
Em seus projetos tipográficos, por exemplo, instauram uma dinâmica na qual o paradigma do remix torna-se um movimento de entrega.

Afinal, para que servem fontes senão para serem usadas por outros, em textos de autores diversos, que apagam a mão do criador original da letra em novos tecidos discursivos?

Exercício de generosidade intelectual, copyleft sem bandeira, várias de suas criações na área de tipografia foram reunidas em um curioso CD-ROM. “Entre” (2001) é o seu nome e traz embutido no título algumas das suas chaves de leitura.

Entre, no caso, é mais que um comando. É um convite e um desafio. Convite porque nos chama a não pensar em mais nada além de incursionar no seu universo particular. Um desafio porque nos faz, a todo momento, titubear ao tentar definilo.

Trata-se de um projeto que fica entre a escrita e a fala, entre a música e o desenho, entre a letra e o dígito. Sem explicações, dá-se ao leitor por meio de duas possibilidades: tocar imagens, desenhando com sons, utilizando aleatoriamente o teclado do computador, ou instalar uma série de 26 fontes.

Na primeira situação, escolhe-se um fragmento de um dos desenhos dos autores, que vêm encartados como miniposteres junto com o CD, e, ao iniciar a digitação, começa-se a processar novas formas, ao mesmo tempo em que se compõe uma trilha sonora, dando cor ao áudio e som aos traços.

Mas não é só esse campo entre o áudio e a visão que interessa. As fontes também sofrem um tratamento rigoroso para que se posicionem nesse universo de fronteiras fluidas em que se interceptam tipografia, imagem e som, num processo de recombinação de linguagens que assume um perfil deleuziano, evidente na própria epígrafe do CD, que cita uma passagem de “Mille Plateaux”:“Há ritmo desde que haja passagem transcodificada de um para outro meio”.

Um axioma que é levado ao limite na fonte “Utopia”, criada a convite da revista “Big” para compor um número especial dedicado a Oscar Niemeyer, feita com miniaturas de projetos do arquiteto, como o Memorial da América Latina (SP) e o Palácio da Alvorada (Brasília), e ícones dos resultados da falta de planejamento que prevalece nas grandes metrópoles brasileiras.

Às letras maiúsculas ficaram reservadas as belas linhas que tornaram a arquitetura de Niemeyer internacionalmente conhecida. Às minúsculas, placas que remetem a congestionamentos sem fim, grades que pretendem impedir a ocupação dos viadutos pelos sem-teto, entre outros signos de nosso horror urbano...

Propositadamente, as letras minúsculas foram construídas em quadros mais largos do que as maiúsculas e, por isso, quando digitadas em conjunto, seguindo as regras básicas da ortografia, fazem com que as minúsculas (os dejetos urbanos) subam, literalmente, em cima das maiúsculas (as formas da arquitetura modernista).

Emerge daí um texto que aparece como um tecido social sujo, em que o impasse entre o rigor e a beleza modernista e sua fragilidade para enfrentar o descontrole do crescimento urbano torna-se a chave de leitura de parte de nossa história recente, imprimindo tensões urbanas às frases, sem apelar a qualquer recurso vernacular.

Misturando referências diversificadas, que vão de zuzana licko (tipógrafa do famoso estúdio californiano Emigre) ao traçado revolucionário de El Lissitzky, “Entre” é um CD que desincumbe o design de qualquer função suplementar.

Não se desenha aqui apenas o que não se pode dizer com palavras. Tampouco dá-se à escrita uma função de mediação entre a natureza e a razão. As relações não são de convenção.

Antes, fazem pensar, lembrando Derrida, que a conjunção das práticas da informação, da cibernética e das ciências humanas conduz a uma profunda subversão, em que a escritura aparece como “uma partilha sem simetria que desenha de um lado o fechamento do livro e, do outro, a abertura do texto”.

Texto que não é revelação de mensagem, mas processo de interrogação da possibilidade de mensagem, inquietação gramatológica que percorre todos os projetos de Angela e Lain, mas que ocupa “Pilha” (2003) de ponta a ponta.

Aqui, um sistema de escritura por objetos (re)traduz o que nos circunda em enunciados visuais que implodem a letra para dar volume à quebra da horizontalidade da linha. Funciona, basicamente, a partir de empilhamentos de objetos idênticos que, numa escala de 1 a 26, relacionam quantidades a valores fonéticos. Assim, 1 batata = a, 2 batatas = b, 26 batatas = z.

O espaço se dilui em possibilidades combinatórias, entre frases de cubos de açúcar, de livros, de vasos, soprando Deleuze, mais uma vez, entre diferenças e repetições, produzindo uma vertigem essencial que se efetua pela desestabilização da forma (relativizada pelo número) que se transforma em letra, desaparece no objeto e se apaga na sua especificidade para voltar como interrogação sobre não mais a possibilidade de mensagem, mas os possíveis da linguagem.

Algo que o vídeo “Flatland” (2003) expande e extrapola, fatiando pixels, pervertendo a lógica do quadro – do frame – para criar cores que não pertencem à palheta videográfica, viabilizando a visualização de tons pastel que não estão lá.

Documentário líquido, dilui a imagem em movimento em stills, transformando terras planas do delta do rio Mekong em múltiplos arco-íris animados pelo som murmurante das suas margens.

Margens do rio e da imagem. Bordas. Mais que isso. Dobras. Outra vez Deleuze...

A técnica (ferramenta) usada é simples. A tecnologia (produção de repertório cognitivo), complexa. A seqüência captada com uma mini-DV é decupada em fotos isoladas. Recurso banal do próprio programa de edição. As fotos, horizontais, são então recortadas verticalmente. Cada recorte é esticado até a largura do quadro original. Nascem os arco-íris improváveis que triangulam a visão como queria ver (e nos ensinou a enxergar) Merleau-Ponty.

Como ver “Flatland” e não lembrar do mestre do visível (Merleau-Ponty, é preciso dizer?!), que nos ensinou a perceber a magia das figurações do “instante do mundo” que Cézanne queria pintar?

Aquele instante louco que há muito já passou, não volta, mas nunca passa, porque se faz e refaz em todas as rochas que estão e não estão nas montanhas de Santa Vitória que esse poeta da luz, Cézanne, pintou para desequilibrar tudo aquilo que entendíamos como cor, luz, sombra, figuração.

Gesto nobre e desdenhoso que volta – com tudo – nas cores, na paciência, na luz, no desdém de “Flatland”. A terra plana que se ergue em relevo do pixel esculpido em cor que não tem e não retrata.

Um movimento se anuncia aí. Para voltar impiedoso no gesto agressivo, sutil e inóspito que se impõe em “Seoul/Killig Time” (2003). Fina ironia. Macabra. Arrogante. O retrato do mundo dos games. Balelas. Chatices. Falcatruas.

Uma cidade desterrada – pelas corporações do entretenimento fashion. Palco de uma cena insólita. Aviões aterrissando no território de uma cidade que se transforma em mero espaço de ação de jogadores estúpidos. Ali acontece a quebra da regra: o jogo idiota vira história de uma deserção.

Contra a norma da babaquice e do paradigma da clicagem burra. De quem acha – ainda – que o mais interessante na cultura digital é reconhecer regras, atacar e vencer.

Contra a retórica fetichista de levar os games a sério, Angela e Lain nos obrigam a tratar os games com são. Cenários – ideológicos – de uma motivação vulgar: matar, morrer ou ganhar.

Novamente a técnica é simples e a tecnologia, complexa. O jogo (belicista, machista, wasp) tem seu stage capturado por uma câmera de vídeo ligada ao computador. O stage é remodelado em 3-D – bem ao gosto do cliente burro/cego – e se transforma em maquete do espetáculo da ignorância, onde temos suas premissas mais banais: Uma cidade sem escala e sem ninguém.

Fina ironia. Só ri dela quem é capaz de driblar o movimento do mundo. Digitalizar suas coordenadas, fazer um exercício de “world align” (2003)... Brincar com coordenadas. Mover o mapa – afinal somos globais, não? – para lá e para cá...

Está tudo na tela e não está.... Por isso é possível abstrair a topologia e redesenhar a geografia. Trabalhar com as linhas de um desenho, em vez de ceder à dureza dos territórios. Num gesto simples e preciso, o mapa-múndi é dividido em linhas paralelas como se fosse uma página em branco, aberta à nossa conquista.

Tratado dessa forma, é possível submetê-lo às regras da edição do texto, deixando que os continentes se alinhem – à direita, no centro, à esquerda – seguindo as beiradas do monitor, sem nunca parar, sempre em loop, fugindo à regra orbital e a todas, comportando-se como matéria arquitetônica pronta a ser modificada pelos acidentes e pela história.

Fazer da arquitetura plano de mudança (não a ação da mudança) é também um dos pressupostos recorrentes de Angela e Lain, e que se evidenciam em projetos como “5 Times 10 Steps” (2003) e “Plaf!” (2004).

No primeiro caso, cinco escadas de tamanhos variados foram espalhadas pelo espaço expositivo do Palais de Tokyo, interagindo com o ambiente, tendo suas alturas determinadas por alguma característica do lugar em que se apóiam e os espaçamentos dos degraus definidos pelas suas respectivas alturas.

Diferença e Repetição, outra vez. Arquitetura relacional, da desconstrução e do acaso... Como em “Plaf!”, intervenção realizada na fachada da Galeria Vermelho em São Paulo, que invertia a posição do chão e da parede.

Ali também a técnica usada era simples e a tecnologia, complexa. Raspou-se a fachada branca até a revelação do concreto e projetou-se o que antes ocupava aquela mancha no chão, pondo em questão o papel da estrutura no processo de orientação do observador e dos cheios e vazios no funcionamento da máquina-casa.

Desmanche de estruturas, perversão do olhar, empilhamentos, realinhamentos, interferência, apropriação, desconfiguração da fonética e umas poucas perguntas sem fim: O que é que você vê quando você vê? Como é que você lê o que você vê? Você lê?

Grifos Nossos. Grifos Deles.