Entrevista Eduardo de Jesus, 12/2006

O ponto de partida para a performance Notorious (2002) é uma cena de um filme de Hitchcock. Como você incorpora referências do universo audiovisual em suas performances? Existe um intercâmbio entre essas duas manifestações em seu processo criativo?

Em geral, uso referências da tradição do cinema como ponto de acesso a uma obra, para criar uma imagem com a qual o espectador se identifique com facilidade, antes de qualquer coisa, e com a qual se relacione rapidamente, do ponto de vista pessoal. A maioria das pessoas que assistiram à performance apenas estavam ali naquele momento, não foram oficialmente informadas ou convidadas. Pouco a pouco, a performance foi marcando presença na experiência banal daquelas pessoas, gerando sentimentos de déjà vu ou de nostalgia por uma experiência esquecida. Alguns reconheceram aquilo como a cena de um filme de uma determinada época, mas não sabiam exatamente qual. À medida que a performance prosseguia, seu absurdo sutil começou a se expandir para o espaço ao redor, e então ficou difícil distinguir os elementos que faziam parte da performance dos mais incidentais. Eu me interesso pela maneira como performances como essa são capazes de distanciar os espectadores de sua própria experiência cotidiana, acrescentando uma textura e densidade que reconhece algo interior; por isso comecei a trabalhar com essa idéia também em filmes.

Em Background to a Seduction (2004) e Should We Never Meet Again (2005), você altera o tempo-espaço dos vídeos, usando compressões e cortes que tornam as narrativas não-lineares, e você as relaciona a uma espacialidade heterogênea - uma heterotopia, como definiu Foucault. Como você lida com as possibilidades que o vídeo oferece para a criação dessas narrativas?

Um dos principais temas desses filmes é a intimidade, muito embora essa afirmação seja sempre imprecisa, uma vez que não estou estritamente interessado na intimidade no sentido interpessoal. Estou interessado na intimidade em relação à maneira como o indivíduo navega o espaço em geral, seja ele público ou privado. Proponho a intimidade como uma simples proximidade ou sensibilidade com relação àquilo que está presente no espaço que ocupamos; os vetores múltiplos (tanto internos quanto externos) que nos influenciam enquanto nos movimentamos pelo espaço, e um certo sentimento de que somos cúmplices das condições em que nos encontramos. O que há de conveniente no vídeo é o fato de que ele permite que se trabalhe de um modo muito discreto em diversos contextos, públicos e privados; a câmera pode ser embutida em uma situação com uma certa facilidade, e simplesmente capturar o que está ali, sem atrapalhar muito. Assim, pode-se realizar uma cena em que a ação roteirizada se integra completamente à realidade do lugar, e a narrativa se transforma na soma de todas as partes, todos são figurantes. O trabalho em vídeo também permite que se trabalhe com o espaço ocupado pelo espectador (videoinstalação), incluindo elementos que podem sensibilizar a consciência que os espectadores têm de sua própria presença. Por fim, a história que está sendo contada é irrelevante, ela é só um meio de trazer o espectador para mais perto do centro de sua própria narrativa.

Em Should We Never Meet Again, a platéia deixa o espaço aberto das ruas e é arremessada para o interior de espaços fechados, como se fossem casas. Como você teve a idéia desses “cenários”, que lhe permitem criar passagens de um contexto espacial para outro?

Como acontece com a maior parte das minhas idéias, essa nasceu de uma coisa bem 'tola', a imagem de um homem carregando uma tela que podia transportar pessoas estranhas e possibilitar trocas íntimas entre elas. Depois disso, escrevi várias versões e enfim me dei por satisfeito com aquela que eu era menos capaz de explicar. Gosto da maneira inconsciente como esse filme foi criado, ele me surpreende a cada vez que o vejo - de onde vêm essas imagens? No cenário, o personagem principal chegou a um estado de desespero em que sua vida parece fechada e plana. Então foi interessante criar um equivalente visual dessa característica plana que, ao mesmo tempo, tem o potencial de abrir espaço para a profundidade e a densidade.

Você sempre aparece em seus próprios vídeos. Em The Interview (2002), você interpreta uma mulher (é impossível não pensar em Rose Sélavy). A possibilidade de atuar vem de seu trabalho no campo da performance?

Sempre transitei entre minha formação original, de pintor, e atividades mais performativas e de colaboração, trabalhar no teatro, performances em espaço público e finalmente o vídeo. Para mim, o aspecto performativo e o processo de filmagem são os aspectos mais prazerosos do meu trabalho. Isso porque são aspectos nos quais tenho menos controle sobre todos os elementos, preciso de uma abordagem intuitiva e também tenho que confiar nos demais envolvidos. Em outras técnicas (pintura, edição, escrita), me sinto muito mais no controle e consciente de mim mesmo. Uma vez que me interesso mais pelas coisas que são expressas de forma involuntária, ou que vão além daquilo que se tenta dizer de forma consciente, me sinto mais atraído pela performance, porque ela envolve e compromete o artista de maneira mais completa, nos níveis físico e intuitivo. Seus vídeos são econômicos na utilização de efeitos e processamento de imagens, e se concentram mais na narrativa e na atuação. Por que essa opção pela simplicidade na imagem, que às vezes se assemelha aos esquemas formais do cinema comercial? Na verdade, alguns de meus filmes exigem muita pós-produção (aqueles que envolvem 3D ou elementos de animação), mas não acho esse aspecto do processo muito prazeroso. Talvez eu seja contra re-trabalhar muito a imagem porque o que me interessa é expor mais 'o que está ali', na realidade banal. Para fazer isso, conto mais com uma química que potencialmente existe entre o caos incontrolável da realidade mundana e as coisas que escrevo e represento nessa realidade. O que me interessa é desacelerar o espectador até que ele se torne consciente de seu tempo e espaço presentes e, para tanto, muitas vezes é suficiente trabalhar com o aspecto da atuação, o cenário e o ritmo da edição.

A África do Sul tem uma produção artística importante (Jane Alexander, Kendell Geers, William Kentridge, Candice Breitz, Zwelethu Mthethwa, entre outros). Como você vê essa produção na atualidade?

É difícil generalizar em se tratando da produção na África do Sul, porque há muitas direções e formas diferentes de trabalhar. O que considero interessante ali é o fato de que as questões sociais e políticas estão sempre muito perto da superfície na vida cotidiana, assim como a busca de cada indivíduo por uma identidade que seja mais aceitável do que aquela que foi imposta durante o apartheid. Também por esse motivo é um lugar muito intenso para se viver e trabalhar.

Quais serão seus próximos projetos?

Estou desenvolvendo um projeto que terá o formato de um musical ou um videoclipe; exceto pelo fato de que não vai haver qualquer música.