Biografia comentada Eduardo de Jesus, 12/2006

A questão do espaço aparece com intensidade na produção de Gregg Smith (Cape Town, 1970). Muitas vezes derivada de performances nas quais ele é o ator ou um dos atores, sua obra em vídeo mostra as potencialidades do meio para explicitar as heterotopias típicas das relações contemporâneas do espaço. Fruto de uma trajetória que aponta para um intenso hibridismo entre práticas artísticas, como pintura, vídeo e performance, seus trabalhos sempre se relacionam, de alguma forma, às situações e contextos nos quais são produzidos. Sem criar imposições totalizantes, eles conseguem revelar os ritmos da política e da vida social, reverberando os muitos esquemas pelos quais somos submetidos. “A arte não reproduz o que vemos. Ela nos faz ver”, diz Paul Klee. A obra de Smith produz em nós esse outro olhar.

Algumas das principais realizações do artista têm origem, segundo ele próprio, no período que passou recolhido em um pequeno ateliê no centro de Cape Town, no fim da década de 1990. Formado pela Michaelis School of Fine Art da Universidade de Cape Town (1988-1991), vivia “uma desilusão com a criação e a venda de objetos”, depois de alguns anos trabalhando com pintura, murais e performance. Pesquisando na Biblioteca Municipal da cidade, descobriu as teses do psicanalista austríaco Bruno Bettelheim, que sugeria tratar vítimas de autismo e danos psíquicos com atividades que redirecionassem o indivíduo para o presente, promovendo desejos positivos. “A idéia me pareceu particularmente útil diante da condição traumática da psique sul-africana da época”, escreve Smith.

O “insight” inspirou uma linhagem de ações de intervenção urbana, como A Book of Giving (1999), em que o artista saiu às ruas de Cape Town com 25 rosas, deu a primeira a um passante, a segunda à pessoa que o presenteado sugeriu e assim por diante. No fim do dia, ao entregar a última rosa, havia atravessado a cidade onze vezes. A intervenção The Lovephones, apresentada em Cape Town (2000) e Londres (2001), se estrutura em torno de narrativas pessoais. Dessa vez, Smith busca e registra histórias de amor reais, contadas pelos protagonistas, e usa telefones públicos para colocar as gravações à disposição de ouvintes escolhidos pelo acaso. Em Londres, o projeto contou com o apoio do Gasworks e da artista Tara Sampy.

Entre 2001 e 2002, integrado ao programa de residência artística do Rijksakademie van beeldende kunsten (Real Academia de Artes Visuais) de Amsterdã, cria uma série de performances. Em Notorious, que mostra também na Alemanha e no MIP - Manifestação Internacional de Performance, em Belo Horizonte (2003), contracena com outros atores em recriações públicas de fragmentos do filme homônimo de Hitchcock, que se repetem uma dezena de vezes seguidas, como em um looping. Em Trams Taken and Trams Missed (2001), escolhe espaços públicos para narrar, enquanto pula corda, histórias de encontros supostamente ocorridos no transporte público de Amsterdã. Em We Met at the Busstop (2001), aborda pessoas em pontos de ônibus e narra, enquanto dança, uma história que teria vivido com um viajante depois de um encontro casual.

As duas últimas performances ganham versões em vídeo em 2001: em Trams..., Smith narra quatro histórias enquanto nada, joga squash ou fuma charutos. Em We Met..., conta o mesmo encontro para a câmera, como se estivesse prestando um depoimento à polícia. Os trabalhos parecem definir a direção que estabeleceria para a obra em vídeo do artista: uma passagem que nasce do desejo do registro da performance, mas evolui ao incorporar estruturas narrativas. A idéia está por trás, também, de The Interview (2002), em que cria um inusitado diálogo entre um homem e uma mulher, fazendo os papéis de ambos e colocando o espectador na subjetiva ora de um, ora de outro. Esse diálogo direto com a câmera reverbera os procedimentos do cinema moderno, que se abre para nos incluir na narrativa.

Também deriva de experiências performáticas Background to a Seduction (2004), construído a partir de uma série de apresentações para vizinhos em Roubaix, pequena cidade no norte da França onde o artista viveu entre 2003 e 2004. No vídeo, selecionado para o 15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, vemos um casal - que conversa no mesmo cenário - a partir de perspectivas e situações diversas. Enquanto o diálogo se desenrola, somos arremessados a diferentes lugares, e nos vemos em uma situação na qual espaço e tempo passam a se situar na fluidez de um espaço tipicamente heterogêneo, aberto e fluido. Essa viagem em um lugar só tem como pano de fundo uma espécie de papel de parede - do qual, vez por outra, uma pequena flor se desprende e “voa” pela tela.

Esse mesmo modo de operar o espaço, criando situações de passagem e de não-linearidade, volta a ser experimentado em Should We Never Meet Again (2005), apresentado como videoinstalação e, depois, single channel. No vídeo, Smith caminha pela rua monologando consigo mesmo; eventualmente, um transeunte carregando uma grande tela passa por ele e acaba por transportar toda a ação para outros espaços. Mais uma vez, o artista toma o vídeo como ponto de partida para uma complexa abordagem do espaço por meio de uma narrativa não-linear. De espaços abertos e públicos, somos levados a espaços íntimos e privados.

A distância entre impulso e gesto é o tema comum às performances do artista - as mais recentes incluem Love, Jealousy and Wanting to Be in Two Places at the Same Time e It's not What You Do, It's the Way that You Do It. Em paralelo, a atuação de Smith avança para a promoção de encontros, residências e projetos coletivos de intercâmbio envolvendo artistas sul-africanos e de outros países. Em 2003, realiza pela primeira vez o Very Real Time, projeto que abriga ações e residências de um mês entre Joanesburgo e Cape Town, estimulando a produção sobretudo de performances e obras socialmente engajadas. Ligadas à RAIN Artists Initiatives Network, as residências reúnem artistas como a brasileira Cintia Marcelle, que desenvolveu com Jean Meeran, na primeira edição, uma contundente série de fotografias na qual se misturam à paisagem.

“O projeto tenta examinar as complexas forças históricas, sociais e geográficas que influenciam a vida cotidiana do indivíduo e encontrar maneiras de alterar e superar barreiras psicológicas. Por meio da troca, pretende criar paralelos e comparações com outras partes do mundo”, explica Gregg Smith sobre o Very Real Time, que está na segunda edição.