Ensaio Jill Magid, 12/2006

O cenário por trás de Gregg Smith: Um ensaio sobre a obra de Gregg Smith

Em sua obra, Gregg Smith usa vários artifícios para focalizar uma lente ou liberar os monólogos internos, os espaços pré-conscientes ou os espaços do ainda não dito de um protagonista. Há um desejo urgente e constante de converter o monólogo interno de um personagem em diálogo externo, numa tentativa de criar um espaço social compartilhado. O exato momento em que Smith revela a vida do protagonista, através da câmera ou do ato performativo, existe no limite dessa transformação possível. Embora personifiquem suas narrativas pessoais e as expressem em algum nível, seus protagonistas não reconhecem essas histórias como sendo suas próprias histórias, sendo assim incapazes de integrá-las à sua própria identidade. O uso que Smith faz da narrativa tem menos a ver com o conteúdo da história, e mais a ver com o que ela diz enquanto ato criativo e potencialmente revelador.

Existe um distúrbio mental que lembra esse fenômeno presente na obra de Gregg. Chama-se alexitimia, e significa literalmente “sem palavras para emoções”. Termo cunhado por Peter Sifneos em 1972, a alexitimia descreve pessoas que aparentam ter dificuldade para compreender, processar ou descrever suas emoções.

Estou tomando a liberdade de definir o espaço pré-consciente como o espaço entre o pensamento consciente e o pensamento inconsciente, onde há uma emoção latente, pouco abaixo da superfície. Na obra em vídeo de Smith, a câmera traz à tona esse sentimento, e a emoção se manifesta. Ela surge, por exemplo, através de seus papéis de parede animados, telas azuis móveis ou, em Underexposed, na forma de uma explosão rítmica do corpo. As histórias que contêm essas emoções se apresentam de um modo cru e previamente analisado.

Os protagonistas

O contexto dos vídeos de Smith geralmente se inicia nas atividades cotidianas da vida: tomar o bonde, trabalhar no escritório (The End), beber em um bar (Notorious), pular corda ou nadar (Trams Taken and Trams Missed). As atividades são, em sua maioria, solitárias; seus protagonistas são singulares. Estão sozinhos no mundo, muitas vezes viajando como turistas, recém-chegados a uma nova cidade, ou errantes em uma cidade conhecida, mas desorientados pelo término ou rompimento de um relacionamento. Devido a circunstâncias diversas, aquilo que era familiar tornou-se estranho.

Smith situa seu protagonista em uma dessas posições-clichê - o homem solitário na cidade desconhecida, o turista, o amante recém-desiludido sem um lar para onde voltar - para acessar nosso conhecimento coletivo de estruturas narrativas básicas. Lidamos com o sentimento do protagonista como se já o conhecêssemos ou já o tivéssemos visto em vários filmes. Como disse o próprio Smith, ele usa o clichê como ferramenta de acessibilidade. Ao ver esse protagonista nesse ambiente, o espectador reconhece imediatamente o contexto no qual está entrando. Uma vez situados nesse terreno narrativo familiar, Smith pode então nos levar, os espectadores, a fazer a viagem mental que ele quer que façamos.

Embora sejamos confrontados tanto com um personagem como com um local familiares, a narrativa nas obras de Smith progride rapidamente para o âmbito da estranheza. Essa estranheza não tem relação com a trama; raramente há uma trama em qualquer sentido tradicional. Em vez disso, o que experimentamos é o protagonista envolvido numa série de incidentes, sem a imposição de um arco narrativo e sem conclusão final. Essa estranheza se manifesta pelo modo como a história é recontada.

Um exemplo mais antigo disso é a performance de pular corda, Trams Taken and Trams Missed, apresentada em Biella, Turim e Amsterdã em 2001. Nessa performance, Smith narra quatro histórias do ponto de vista de um único protagonista. As histórias contam experiências do protagonista nos bondes de Amsterdã. Embora o tema subjacente às histórias seja uma busca por intimidade humana, elas são contadas de uma maneira impassível, não-emotiva - e ficam ainda mais distantes, porque o narrador conta as histórias enquanto pula corda. Os espectadores são confrontados simultaneamente com dois gestos muito diferentes: a voz que deseja intimidade e o corpo em atividade física repetitiva.

Eu fazia parte da platéia quando Trams Taken and Trams Missed foi apresentada em Amsterdã. Nessa versão, a platéia se reunia ao redor de Gregg sob um arco em uma pequena praça pública, com um quê de particular. O que tornou a performance ainda mais estranha do que a situação, já inusitada, de um homem contando histórias enquanto pula corda, foi o fato de que eu me sentia deslocada em meu papel de membro da platéia. Enquanto contava as histórias, Smith olhava para frente e parecia falar para ninguém. As histórias eram contadas em primeira pessoa, mas ele não estava se confessando, pedindo conselhos ou desabafando por razões terapêuticas. Era uma simples transmissão, para ninguém em particular, de eventos que haviam ocorrido, para uma platéia que eu não conseguia encontrar.

O ato de contar histórias nessa performance ocorre antes da análise. É como se o protagonista estivesse suando as palavras pela ação física de pular corda. Embora as histórias tivessem momentos embaraçosos, não havia vergonha no que era revelado. Havia somente ação e a liberação física do que o corpo havia absorvido. De alguma forma, talvez pelo ato físico de pular corda, a ação do protagonista fosse suficientemente distante para permitir que a verdade viesse à tona, sem pudores e precedendo a autoconsciência.

Talvez seja essa distância, livre de julgamento, que abra espaço para que o espectador entre. Ao falar, o protagonista permite que nós mesmos contemos as histórias que nós mesmos ansiamos por contar. Ao contarmos nossas histórias para nós mesmos ou transferi-las de volta para o artista, damos o primeiro passo rumo ao reconhecimento. Gregg percebeu que, depois de apresentar a performance, muitas vezes os espectadores, confundindo-o com seu personagem, lhe confessam suas histórias.

Voltando à condição da alexitimia. As ações do protagonista são somáticas, ou seja, fisicamente realizadas, porém não ainda processadas, entendidas ou administradas. Parece haver um vazio, uma desconexão entre a história do protagonista e seu contexto. De alguma forma, ele não está verdadeiramente ocupando o espaço no qual se encontra. Ou será que esses dois elementos não acontecem ao mesmo tempo? Os protagonistas de Smith freqüentemente se encontram nessa posição, ligeiramente separados de seu meio por ritmos mais lentos ou gestos discordantes. Essa separação se manifesta de diversas formas, dependendo da obra de Gregg à qual estejamos assistindo.

No vídeo Should We Never Meet Again, o protagonista é um jovem que caminha por Paris fazendo um monólogo interno. Ele discutiu com a esposa e se separou, e está tentando pensar em um amigo com quem possa passar a noite. Em sua mente e em voz alta, ele percorre todo o seu círculo de amizades, mas não entra em contato com nenhum deles. De vez em quando uma tela, pintada ou coberta com papel de parede, surge atrás dele. A tela é carregada por uma pessoa sem rosto, como se fosse, ao mesmo tempo, um artifício e um personagem. A tela avança e o envolve, expandindo-se para um espaço interior que consiste em seu próprio padrão. A tela transporta, juntamente com o protagonista, uma série de desconhecidos que surgiram inocentemente ao seu lado, antes da tela. Uma vez envolvidos, esses desconhecidos parecem conhecer em detalhes o problema do protagonista.

O primeiro homem a ser transportado com o protagonista pergunta a ele se ainda deseja sua esposa sexualmente, se ela o faz sentir como se seus mamilos fossem “botões frescos de rosa”. Antes que o protagonista possa responder, o homem põe a mão sob a blusa do protagonista e começa a apalpar seu peito. Inicialmente, seu toque se parece com um exame, como um médico procurando uma doença. Em seguida, o movimento se desacelera, muda de intensidade e se transforma numa carícia. O protagonista parece excitado e começa a perder o controle. No momento de sua entrega, quando sucumbe ao toque, ele toma consciência. Ele volta ao seu 'normal', e afasta o homem - que então reconhece, também, que ultrapassou o limite. O momento é interrompido por um corte, a tela desaparece e eles voltam a ser desconhecidos. A perda de controle é sentida mas não permitida, e a ordem retorna até que a tela apareça novamente.

Ficamos nos perguntando se esse momento realmente aconteceu, do ponto de vista do protagonista, que simplesmente continua caminhando pela cidade e pensando em seus amigos. Talvez essa segunda realidade só esteja acessível ao espectador, através da tela e da câmera. Nossa visão vai além dos envolvidos, penetrando o subconsciente do protagonista, um lugar que podemos visitar, mas aonde o protagonista não ousa ir.

Os figurantes não-transportados em Should We Never Meet Again fazem parte do cenário, no mesmo plano da cidade. Embora isso seja esperado em se tratando de figurantes em filmes, Smith chama a atenção para sua posição enquanto objetos, sem qualquer subjetividade. Essa situação se torna evidente quando um figurante é isolado, em relação ao protagonista, e trazido para dentro de seu mundo como personificação de sua voz interior. O figurante é subitamente revestido de subjetividade, mas não é sua própria subjetividade, e sim a do protagonista. Esse desconhecido, como o homem que acaricia, reflete os desejos do protagonista. Ele surge como uma voz interna - como um anjo, demônio ou sábio, um espelho e um disfarce. O figurante que se transforma em desconhecido é só mais um artifício para expressar os pensamentos desarticulados do protagonista.

Mas os limites não são assim tão claros. Em Should We Never Meet Again, a tela coberta de papel de parede é um artifício que é em parte interioridade e em parte exterioridade. A primeira tela desse tipo a surgir está coberta de papel de parede florido, do tipo que se encontra em velhas casas vitorianas. No entanto, como as fachadas da cidade que a circundam, a tela está pintada com tinta spray.

Quando o protagonista dobra uma esquina, a tela deixa sua posição de repouso ao lado de um prédio, atravessa a rua e puxa o protagonista para dentro de seu espaço interior - o espaço de seu subconsciente. O que essa tela é, e para quem ela é visível, não se sabe ao certo. Se ela é mesmo invisível às pessoas na rua e intimamente ligada à mente subconsciente do protagonista, então quem a vandalizou? Alguém deve vê-la, alguém deve ter consciência dela para interagir com ela e danificá-la. Apesar de não conseguirmos ver quem poderia ser, somos obrigados a nos questionar sobre a acessibilidade e vulnerabilidade implícitas do subconsciente pessoal no contexto de um espaço social compartilhado.

Assim como o narrador em Trams Taken and Trams Missed, o protagonista de Should We Never Meet Again relata seu monólogo interno em voz alta para ninguém em particular. Neste caso, ninguém sequer percebe que ele está falando consigo mesmo. Ainda assim, enquanto espectadores do filme, não temos a impressão de que ele está falando sozinho. Ele simplesmente parece estar expressando o que só é audível em sua mente. Uma técnica parecida com essa, usada no cinema tradicional, é a voz em off, mas neste caso a boca do protagonista se move. Tampouco trata-se do artifício de um monólogo teatral, que é claramente dito à platéia, dentro do contexto da história. Também não é direto como um aparte teatral, aquela fala para a platéia que abandona a narrativa para adicionar uma nova camada a ela, ou para explicá-la.

Onde ficamos nós, como platéia? Há algo entre nós e a história tal qual contada pelo protagonista, uma vez que este parece não estar falando diretamente com aquela. Talvez, em Should We Never Meet Again, a tela seja a deixa visual para os espectadores. O protagonista e os desconhecidos que aparecem com ele não olham ao redor para estudar o espaço em que entraram e também não o questionam. Quando a tela os envolve, eles simplesmente se comportam de uma forma diferente, mais direta e sensual. Os atores parecem ignorar sua mudança de ambiente, logo devemos ser nós, os espectadores, que precisamos de um contexto para situar o novo comportamento dos atores.

O cenário

Nos filmes de Smith, o restaurante, o bar, o escritório tornam-se analogias da tela. Isso fica evidente no vídeo Background to a Seduction, quando o papel de parede começa a ganhar vida própria. Neste filme, um homem e uma mulher conversam silenciosamente enquanto bebem uma taça de vinho. Embora os dois estejam falando do passado, a conversa se desenrola como um primeiro encontro. Há uma tensão sexual inegável entre eles, mas ela permanece implícita. O cenário - um papel de parede florido - revela os desejos dos personagens: aquilo que não pode ser verbalizado é fetichizado no papel de parede. Em vez de o casal se tocar, as flores saem do cenário para realizar os gestos de flerte latentes entre o casal.

Esse fenômeno de deslocamento nem sempre é tão visível. Sem o artifício do papel de parede, é a cidade-enquanto-cenário que manifesta os desejos não revelados daqueles que nela se encontram. As pessoas, ou 'os figurantes', no caso dos filmes, expressam aquilo que não pode ser expresso pelo protagonista.

Isso acontece no mais recente projeto de filme de Smith, Underexposed. Em Underexposed, os artifícios visuais do papel de parede animado e das telas em movimento são contornados. Gestos físicos desconexos dos atores ocorrem nos próprios espaços que eles ocupam.

Na versão de roteiro de Underexposed (a única versão à qual tenho acesso), Lucky, o protagonista, acaba de chegar em uma nova cidade. Ele está tentando fazer os contatos de que precisa para começar vida nova ali. Em suas tentativas, ele entra em uma série de trocas e encontros em diversos ambientes, como escritórios, birôs ou ruas da cidade. Em um resumo da ação, Smith escreve: “O aspecto peculiar desses encontros é que, por vezes, os personagens fazem movimentos corporais incomuns, desde pequenos tiques repetitivos até seqüências de dança mais elaboradas, como se fossem impulsionados dos pés à cabeça por uma poderosa força rítmica interior”. Embora seja possível sentir a música por trás dos movimentos, ela não é audível, e nenhum personagem faz alusão aos movimentos rítmicos dos outros. Ou eles não têm consciência dos movimentos, ou os aceitam como um comportamento normal e continuam interagindo.

O que era, então, a tela do cenário que saiu do ambiente para envolver o protagonista e transportá-lo para outra esfera; seria ela realmente um elemento estranho, ou seria a precursora daquilo que vemos em Underexposed, onde o mundo interior do personagem é mostrado sem qualquer mediação, invisível aos outros personagens, visível apenas ao espectador? Agora parece evidente que o cenário funcionava como artifício de transição. Sem ele, o espectador vê simultaneamente o interior e o exterior de um personagem. Aquilo que já está ali, sempre, mas que é inacessível aos olhos, é visualizado para nós através da lente da câmera. É como se a câmera fosse um laser ou uma máquina de Raio X que nos dá acesso à 'verdadeira realidade', invisível até ser capturada e projetada. Mas é evidente que a câmera não cria o espaço: ele sempre está lá. O que acontece é que as lentes de Smith, que tudo vêem, nos tornam mais conscientes dele. Nos tornamos conscientes das realidades simultâneas dos indivíduos e entendemos que a realidade interior prevalece, portanto é preciso lidar com ela.

Enquanto espectadores, somos assim profundamente confrontados com a natureza complexa do espaço público. Aquilo pelo que Lucky e os outros personagens passam na narrativa parece arbitrário. A percepção está na transparência dos movimentos individuais dos personagens, dentro e fora do espaço psíquico, conforme revelado no âmbito público. O efeito resultante é uma sensação de que as interações sociais pendem de modo desigual na direção dos indivíduos que participam. É como se todos estivessem usando seus iPods individualmente, no volume máximo, enquanto conversam. Nesse sentido, 'conectar-se com sua própria energia pessoal' parece implicar em que a capacidade de cada um de ter consciência de uma freqüência subjacente e compartilhada pode ser um tanto difícil.

O próximo artifício

Qual é, então, a natureza da interação social na obra de Smith? Será que em algum momento as pessoas no roteiro se comunicam ou se conhecem de fato, e será que existe algum senso de intimidade verdadeira entre elas? Dentro da obra dele, as pessoas podem sentir-se sozinhas num espaço social de interação não-real.

Ainda assim, há um forte senso de esperança e possibilidade que emana de sua obra e do ato de contar histórias. Em seu depoimento Smith fala da narrativa como modo de contar sua história para si mesmo. Underexposed encara a vida no âmbito público como um fluxo de ritmos harmoniosos e discordantes, se afetando e colidindo dentro do corpo do indivíduo, mesmo que ele próprio - como os protagonistas de Smith - não tenha consciência disso.

“Uma pessoa incapaz de expressar emoções negativas verbalmente terá dificuldades em descarregar e neutralizar essas emoções, sob os aspectos fisiológico e psíquico. Todos os sentimentos, sejam eles normais ou patológicos, são, em última instância, sensações corpóreas... A incapacidade de expressar as emoções verbalmente implica em uma vida interior deficiente. Inevitavelmente, aqueles que não conseguem atribuir palavras aos seus sentimentos viverá esse déficit também em seus contatos com os outros. Não ter palavras para expressar sua experiência interior é viver marginalmente, consigo mesmo e com os outros.” Alexitimia, Ren J. Muller, Ph.D.

A obra de Smith enfatiza a importância de nossas palavras, para nós mesmos e para a sociedade. Este é o nível político da obra. Somente expressando sua própria narrativa pessoal é que uma pessoa pode criar o potencial para seu próprio reconhecimento, e assumir responsabilidade pelos seus atos. Assim, a obra de Smith pode ser vista em sua totalidade como um artifício de transição. Através das lentes especiais que ele utiliza, vemos revelados comportamentos pessoais e sociais. Embora seus protagonistas não tenham dado o próximo passo para tomar conhecimento de suas próprias ações, nós podemos fazê-lo. Essa é a responsabilidade dos espectadores, a de utilizar a expressão da narrativa pessoal do protagonista como um ímpeto para externar nossa própria narrativa, para que, uma vez dita, possamos dar o próximo passo no caminho da reflexão. Somente a partir daí é que um espaço social verdadeiramente compartilhado se torna possível. 

Entrevista Eduardo de Jesus, 12/2006

O ponto de partida para a performance Notorious (2002) é uma cena de um filme de Hitchcock. Como você incorpora referências do universo audiovisual em suas performances? Existe um intercâmbio entre essas duas manifestações em seu processo criativo?

Em geral, uso referências da tradição do cinema como ponto de acesso a uma obra, para criar uma imagem com a qual o espectador se identifique com facilidade, antes de qualquer coisa, e com a qual se relacione rapidamente, do ponto de vista pessoal. A maioria das pessoas que assistiram à performance apenas estavam ali naquele momento, não foram oficialmente informadas ou convidadas. Pouco a pouco, a performance foi marcando presença na experiência banal daquelas pessoas, gerando sentimentos de déjà vu ou de nostalgia por uma experiência esquecida. Alguns reconheceram aquilo como a cena de um filme de uma determinada época, mas não sabiam exatamente qual. À medida que a performance prosseguia, seu absurdo sutil começou a se expandir para o espaço ao redor, e então ficou difícil distinguir os elementos que faziam parte da performance dos mais incidentais. Eu me interesso pela maneira como performances como essa são capazes de distanciar os espectadores de sua própria experiência cotidiana, acrescentando uma textura e densidade que reconhece algo interior; por isso comecei a trabalhar com essa idéia também em filmes.

Em Background to a Seduction (2004) e Should We Never Meet Again (2005), você altera o tempo-espaço dos vídeos, usando compressões e cortes que tornam as narrativas não-lineares, e você as relaciona a uma espacialidade heterogênea - uma heterotopia, como definiu Foucault. Como você lida com as possibilidades que o vídeo oferece para a criação dessas narrativas?

Um dos principais temas desses filmes é a intimidade, muito embora essa afirmação seja sempre imprecisa, uma vez que não estou estritamente interessado na intimidade no sentido interpessoal. Estou interessado na intimidade em relação à maneira como o indivíduo navega o espaço em geral, seja ele público ou privado. Proponho a intimidade como uma simples proximidade ou sensibilidade com relação àquilo que está presente no espaço que ocupamos; os vetores múltiplos (tanto internos quanto externos) que nos influenciam enquanto nos movimentamos pelo espaço, e um certo sentimento de que somos cúmplices das condições em que nos encontramos. O que há de conveniente no vídeo é o fato de que ele permite que se trabalhe de um modo muito discreto em diversos contextos, públicos e privados; a câmera pode ser embutida em uma situação com uma certa facilidade, e simplesmente capturar o que está ali, sem atrapalhar muito. Assim, pode-se realizar uma cena em que a ação roteirizada se integra completamente à realidade do lugar, e a narrativa se transforma na soma de todas as partes, todos são figurantes. O trabalho em vídeo também permite que se trabalhe com o espaço ocupado pelo espectador (videoinstalação), incluindo elementos que podem sensibilizar a consciência que os espectadores têm de sua própria presença. Por fim, a história que está sendo contada é irrelevante, ela é só um meio de trazer o espectador para mais perto do centro de sua própria narrativa.

Em Should We Never Meet Again, a platéia deixa o espaço aberto das ruas e é arremessada para o interior de espaços fechados, como se fossem casas. Como você teve a idéia desses “cenários”, que lhe permitem criar passagens de um contexto espacial para outro?

Como acontece com a maior parte das minhas idéias, essa nasceu de uma coisa bem 'tola', a imagem de um homem carregando uma tela que podia transportar pessoas estranhas e possibilitar trocas íntimas entre elas. Depois disso, escrevi várias versões e enfim me dei por satisfeito com aquela que eu era menos capaz de explicar. Gosto da maneira inconsciente como esse filme foi criado, ele me surpreende a cada vez que o vejo - de onde vêm essas imagens? No cenário, o personagem principal chegou a um estado de desespero em que sua vida parece fechada e plana. Então foi interessante criar um equivalente visual dessa característica plana que, ao mesmo tempo, tem o potencial de abrir espaço para a profundidade e a densidade.

Você sempre aparece em seus próprios vídeos. Em The Interview (2002), você interpreta uma mulher (é impossível não pensar em Rose Sélavy). A possibilidade de atuar vem de seu trabalho no campo da performance?

Sempre transitei entre minha formação original, de pintor, e atividades mais performativas e de colaboração, trabalhar no teatro, performances em espaço público e finalmente o vídeo. Para mim, o aspecto performativo e o processo de filmagem são os aspectos mais prazerosos do meu trabalho. Isso porque são aspectos nos quais tenho menos controle sobre todos os elementos, preciso de uma abordagem intuitiva e também tenho que confiar nos demais envolvidos. Em outras técnicas (pintura, edição, escrita), me sinto muito mais no controle e consciente de mim mesmo. Uma vez que me interesso mais pelas coisas que são expressas de forma involuntária, ou que vão além daquilo que se tenta dizer de forma consciente, me sinto mais atraído pela performance, porque ela envolve e compromete o artista de maneira mais completa, nos níveis físico e intuitivo. Seus vídeos são econômicos na utilização de efeitos e processamento de imagens, e se concentram mais na narrativa e na atuação. Por que essa opção pela simplicidade na imagem, que às vezes se assemelha aos esquemas formais do cinema comercial? Na verdade, alguns de meus filmes exigem muita pós-produção (aqueles que envolvem 3D ou elementos de animação), mas não acho esse aspecto do processo muito prazeroso. Talvez eu seja contra re-trabalhar muito a imagem porque o que me interessa é expor mais 'o que está ali', na realidade banal. Para fazer isso, conto mais com uma química que potencialmente existe entre o caos incontrolável da realidade mundana e as coisas que escrevo e represento nessa realidade. O que me interessa é desacelerar o espectador até que ele se torne consciente de seu tempo e espaço presentes e, para tanto, muitas vezes é suficiente trabalhar com o aspecto da atuação, o cenário e o ritmo da edição.

A África do Sul tem uma produção artística importante (Jane Alexander, Kendell Geers, William Kentridge, Candice Breitz, Zwelethu Mthethwa, entre outros). Como você vê essa produção na atualidade?

É difícil generalizar em se tratando da produção na África do Sul, porque há muitas direções e formas diferentes de trabalhar. O que considero interessante ali é o fato de que as questões sociais e políticas estão sempre muito perto da superfície na vida cotidiana, assim como a busca de cada indivíduo por uma identidade que seja mais aceitável do que aquela que foi imposta durante o apartheid. Também por esse motivo é um lugar muito intenso para se viver e trabalhar.

Quais serão seus próximos projetos?

Estou desenvolvendo um projeto que terá o formato de um musical ou um videoclipe; exceto pelo fato de que não vai haver qualquer música.

Biografia comentada Eduardo de Jesus, 12/2006

A questão do espaço aparece com intensidade na produção de Gregg Smith (Cape Town, 1970). Muitas vezes derivada de performances nas quais ele é o ator ou um dos atores, sua obra em vídeo mostra as potencialidades do meio para explicitar as heterotopias típicas das relações contemporâneas do espaço. Fruto de uma trajetória que aponta para um intenso hibridismo entre práticas artísticas, como pintura, vídeo e performance, seus trabalhos sempre se relacionam, de alguma forma, às situações e contextos nos quais são produzidos. Sem criar imposições totalizantes, eles conseguem revelar os ritmos da política e da vida social, reverberando os muitos esquemas pelos quais somos submetidos. “A arte não reproduz o que vemos. Ela nos faz ver”, diz Paul Klee. A obra de Smith produz em nós esse outro olhar.

Algumas das principais realizações do artista têm origem, segundo ele próprio, no período que passou recolhido em um pequeno ateliê no centro de Cape Town, no fim da década de 1990. Formado pela Michaelis School of Fine Art da Universidade de Cape Town (1988-1991), vivia “uma desilusão com a criação e a venda de objetos”, depois de alguns anos trabalhando com pintura, murais e performance. Pesquisando na Biblioteca Municipal da cidade, descobriu as teses do psicanalista austríaco Bruno Bettelheim, que sugeria tratar vítimas de autismo e danos psíquicos com atividades que redirecionassem o indivíduo para o presente, promovendo desejos positivos. “A idéia me pareceu particularmente útil diante da condição traumática da psique sul-africana da época”, escreve Smith.

O “insight” inspirou uma linhagem de ações de intervenção urbana, como A Book of Giving (1999), em que o artista saiu às ruas de Cape Town com 25 rosas, deu a primeira a um passante, a segunda à pessoa que o presenteado sugeriu e assim por diante. No fim do dia, ao entregar a última rosa, havia atravessado a cidade onze vezes. A intervenção The Lovephones, apresentada em Cape Town (2000) e Londres (2001), se estrutura em torno de narrativas pessoais. Dessa vez, Smith busca e registra histórias de amor reais, contadas pelos protagonistas, e usa telefones públicos para colocar as gravações à disposição de ouvintes escolhidos pelo acaso. Em Londres, o projeto contou com o apoio do Gasworks e da artista Tara Sampy.

Entre 2001 e 2002, integrado ao programa de residência artística do Rijksakademie van beeldende kunsten (Real Academia de Artes Visuais) de Amsterdã, cria uma série de performances. Em Notorious, que mostra também na Alemanha e no MIP - Manifestação Internacional de Performance, em Belo Horizonte (2003), contracena com outros atores em recriações públicas de fragmentos do filme homônimo de Hitchcock, que se repetem uma dezena de vezes seguidas, como em um looping. Em Trams Taken and Trams Missed (2001), escolhe espaços públicos para narrar, enquanto pula corda, histórias de encontros supostamente ocorridos no transporte público de Amsterdã. Em We Met at the Busstop (2001), aborda pessoas em pontos de ônibus e narra, enquanto dança, uma história que teria vivido com um viajante depois de um encontro casual.

As duas últimas performances ganham versões em vídeo em 2001: em Trams..., Smith narra quatro histórias enquanto nada, joga squash ou fuma charutos. Em We Met..., conta o mesmo encontro para a câmera, como se estivesse prestando um depoimento à polícia. Os trabalhos parecem definir a direção que estabeleceria para a obra em vídeo do artista: uma passagem que nasce do desejo do registro da performance, mas evolui ao incorporar estruturas narrativas. A idéia está por trás, também, de The Interview (2002), em que cria um inusitado diálogo entre um homem e uma mulher, fazendo os papéis de ambos e colocando o espectador na subjetiva ora de um, ora de outro. Esse diálogo direto com a câmera reverbera os procedimentos do cinema moderno, que se abre para nos incluir na narrativa.

Também deriva de experiências performáticas Background to a Seduction (2004), construído a partir de uma série de apresentações para vizinhos em Roubaix, pequena cidade no norte da França onde o artista viveu entre 2003 e 2004. No vídeo, selecionado para o 15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, vemos um casal - que conversa no mesmo cenário - a partir de perspectivas e situações diversas. Enquanto o diálogo se desenrola, somos arremessados a diferentes lugares, e nos vemos em uma situação na qual espaço e tempo passam a se situar na fluidez de um espaço tipicamente heterogêneo, aberto e fluido. Essa viagem em um lugar só tem como pano de fundo uma espécie de papel de parede - do qual, vez por outra, uma pequena flor se desprende e “voa” pela tela.

Esse mesmo modo de operar o espaço, criando situações de passagem e de não-linearidade, volta a ser experimentado em Should We Never Meet Again (2005), apresentado como videoinstalação e, depois, single channel. No vídeo, Smith caminha pela rua monologando consigo mesmo; eventualmente, um transeunte carregando uma grande tela passa por ele e acaba por transportar toda a ação para outros espaços. Mais uma vez, o artista toma o vídeo como ponto de partida para uma complexa abordagem do espaço por meio de uma narrativa não-linear. De espaços abertos e públicos, somos levados a espaços íntimos e privados.

A distância entre impulso e gesto é o tema comum às performances do artista - as mais recentes incluem Love, Jealousy and Wanting to Be in Two Places at the Same Time e It's not What You Do, It's the Way that You Do It. Em paralelo, a atuação de Smith avança para a promoção de encontros, residências e projetos coletivos de intercâmbio envolvendo artistas sul-africanos e de outros países. Em 2003, realiza pela primeira vez o Very Real Time, projeto que abriga ações e residências de um mês entre Joanesburgo e Cape Town, estimulando a produção sobretudo de performances e obras socialmente engajadas. Ligadas à RAIN Artists Initiatives Network, as residências reúnem artistas como a brasileira Cintia Marcelle, que desenvolveu com Jean Meeran, na primeira edição, uma contundente série de fotografias na qual se misturam à paisagem.

“O projeto tenta examinar as complexas forças históricas, sociais e geográficas que influenciam a vida cotidiana do indivíduo e encontrar maneiras de alterar e superar barreiras psicológicas. Por meio da troca, pretende criar paralelos e comparações com outras partes do mundo”, explica Gregg Smith sobre o Very Real Time, que está na segunda edição.

Referências bibliográficas 12/2006

Gregg Smith
Imagens, sinopses e o texto integral dos vídeos e performances do artista, além de uma amostra de suas pinturas e projetos de arte pública. No link Texts, há ensaios de teóricos sobre obras de Smith. Em Background, o artista fala de sua formação: “Meu trabalho freqüentemente gira em torno de dilemas pessoais que envolvem a discrepância entre impulso e gesto. A idéia de um looping emocional é uma preocupação constante e, sem dúvida, um resquício de ter crescido no campo psicológico fechado do apartheid”.

Very Real Time
Com frentes em Cape Town e Joanesburgo, o programa de arte contemporânea coordenado por Smith oferece residências na África do Sul a artistas locais e estrangeiros, com ênfase na realização de projetos não-objetuais que toquem as questões de um país onde “emoções complexas continuam a reger até a mais simples das trocas entre indivíduos”. 

Artthrob
Com artigos, biografias de artistas e notícias sobre exposições e residências, o site retrata a produção artística contemporânea da África do Sul há cinco anos. É editado pela artista e curadora Sue Williamson, que esteve na Mostra Africana de Arte Contemporânea (2000), promovida pela Associação Cultural Videobrasil.

Videobrasil On-line
Bio, fotos, entrevista-manifesto e links para obras de Gregg Smith que participaram do Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil.