Entrevista Eduardo de Jesus, 10/2006

Em seus trabalhos, o espaço expositivo é sempre uma preocupação. Você procura dispor as obras de modo a ocupá-lo ou a dar tridimensionalidade à imagem gráfica. Como isso surgiu?

Minha formação é em gravura, e sempre achei que a matriz e seu registro limitavam a finalização que eu queria para o trabalho. Não queria fazer tiragem das peças, finalizava cada uma de um jeito, conjugando diferentes matrizes em diferentes cores e posições do papel. Além disso, a apropriação de material publicitário, principalmente o outdoor, inspirava-me a trabalhar em uma outra escala, em grandes proporções. A questão da tridimensionalidade eu acho que veio com a apropriação das pinturas, das quais eu retirava as figuras femininas que ampliava em dimensões humanas, colando-as nas paredes, quinas, rodapés, adaptando-as ao relevo do espaço. O primeiro trabalho dessa pesquisa chamou-se dobra e, como o próprio nome já sugere, trata-se de uma tridimensionalidade que nasce sempre de um encontro de dois planos, apenas. Uma tridimensionalidade não preenchida, não escultórica, eu diria, mas em diálogo com o espaço expositivo. Nesse sentido, ampliar as “personagens” na escala humana e moldá-las na arquitetura é um convite ao espectador para se integrar à obra, penso.

A apropriação de imagens vindas do ambiente da arte marca alguns de seus trabalhos. Isso é uma tentativa de colocar em jogo a noção de autoria ou uma ironia ao sistema da arte?

Tem os dois aspectos. Acho que essa discussão sobre a autoria é, ainda hoje, interessante; não se desgastou totalmente. Na minha pesquisa, essa questão vem sendo trabalhada por meio da apropriação de tudo: textos, imagens, falas, músicas e até nos títulos dos trabalhos, às vezes. Gosto dessa bricolagem. É divertido recontextualizar as coisas nesse mundo já tão saturado de imagens e tão sedento de novidade. O elemento de ironia está presente em todo o trabalho, não só como referência ao sistema da arte. Tento falar sobre essa busca pela realização pessoal e profissional nesse tempo em que vivemos, em que tão freqüentemente se conjugam solidão e auto-exposição da personalidade (como nos reality shows), crise de auto-estima provocada pela falta de trabalho e crise afetiva em função de uma demanda social cada vez maior pelo sucesso, num contexto em que também os artistas entram em uma disputa “egóica” pelo reconhecimento.

Quando e por que você começou a se interessar pela produção audiovisual?

A imagem em movimento tem dado um rumo interessante à pesquisa, permitindo-me travar um contato mais direto com os territórios e experiências do real, através de imagens retiradas da mídia (TV e rádio), da captura de cenas, ou da apropriação de registros da vida doméstica ou privada, como tenho feito com VHS antigos. O primeiro vídeo foi o Alugo-me, também a primeira experiência de captura de imagens fora do universo da apropriação (que nessa obra acontece no áudio). Há uma preocupação menor com a forma (uma certa pirotecnia técnica e estética sedutora) e cria-se um clima de Bruxa de Blair, com imagens pouco trabalhadas (como as do casamento de Quem escuta o meu sim) que me interessam, também, por essa proximidade com o universo doméstico.

O que você traz do universo das artes plásticas e visuais para essas experiências em vídeo? 

A temática e a pesquisa conceitual permaneceram as mesmas, independentemente de campos de conhecimento e da escolha das linguagens. Penso que cada idéia, dentro de uma pesquisa, pede uma linguagem, e gosto de misturá-las, como fiz com a primeira exibição de Alugo-me (o vídeo passava em uma TV de cinco polegadas embutida numa estrutura sobre a qual foi acoplada uma fotografia). Acho que uma das coisas que vem das artes plásticas, no meu trabalho, é a preocupação com a inserção da imagem audiovisual num contexto espacial. A TV, como moldura, não responde totalmente às minhas inquietações formais. De modo complementar, a pesquisa plástica cresceu e ganhou muito com o vídeo, ganhou esse traço indicial, essa faísca de realidade que acabou fazendo um contraponto interessante com as imagens advindas da pintura. A presença da imagem videográfica na dança, na música e nas artes visuais é cada vez mais constante e, dessa maneira, penso que as contribuições são recíprocas, e os universos das artes plásticas e do vídeo se confundem.

Em Quem escuta o meu sim (2005), uma das imagens vem da TV, especificamente do reality show Big Brother Brasil. Existe alguma relação entre essa apropriação e as imagens vindas de outdoors publicitários em Nada que você não queira (2002)? Para você, trata-se de um mesmo campo de imagens?

Sim, claro. O universo publicitário está presente no Big Brother. É publicidade o que todos desejam ali, já que só um ganhará o dinheiro e todos os outros serão agraciados com a divulgação da própria imagem. Quando escolho essas imagens, gosto de brincar com os clichês, com a ausência da figura masculina, perceber como se dá a presença dos dois gêneros nas representações imagéticas em geral. Nessa imagem do Big Brother, o homem não tem os braços e as pernas (como em uma pintura do surrealista Paul Delvaux, que usei na obra (In)verso). Há uma correspondência não apenas com o lugar de onde vêm essas imagens, mas também com o universo temático a que se referenciam. As duas coisas (contexto e suporte) são, no trabalho, inseparáveis.

Qual a relação entre Alugo-me (2004) e Quem escuta o meu sim (2005)? Um amplifica o outro, há continuação ou não há qualquer diálogo?

Ambos trazem essa qualidade precária da imagem não-profissional, e isso já é um embrião da minha pesquisa atual, que discute o potencial estético presente no ordinário da vida, que se dá para além da forma e para além da realização da obra de arte. Em ambos, o espaço da casa é trabalhado e constrói-se uma “presença através da ausência”. Em Alugo-me, as vozes habitam as casas vazias e, em Quem escuta, uma sala de jantar é apenas sugerida pelos quadros da parede (que têm movimento e história) e é habitada pela trilha sonora. A imagem do Big Brother, no segundo, traz, da mesma forma que o programa de rádio, no primeiro, essa idéia do espaço público (a mídia) que adentra o espaço privado (a casa). Quem escuta é um trabalho pouco pretensioso, é quase complacente, não tem o elemento perturbador de Alugo-me, essa idéia de uma solidão matricial que fere. Mas penso que há, sim, uma ampliação, na medida em que trabalha o espaço de uma forma mais elaborada e que coloca em diálogo imagens de diferentes naturezas e texturas. Além disso, cada looping tem uma duração, multiplicando diferentes combinações de imagem e som.

Como surgiu o “link” entre imóveis disponíveis para aluguel e pessoas disponíveis para relacionamento que move o seu Alugo-me? Como você descreveria (e que simbolismo evocam) os espaços que a câmera percorre?

Passei um tempo procurando casas para alugar, e olhei muitas, sempre reparando nos vestígios deixados por aqueles que ali moraram, aquelas coisas de que a gente só consegue se livrar em dia de mudança, mesmo. Percebi que a casa é um espaço de presença, mesmo no contexto da ausência. E eu me sentia estranha ali, como se estivesse entrando em um espaço que não era meu. As mulheres em busca de um novo amor também já haviam estado “presentes através de uma ausência”, nos textos que apareciam nas outras obras, retiradas de propagandas de videntes e de livros de auto-ajuda. O que antes era o “povoamento” de um espaço vazio (o espaço expositivo), por meio de falas quase sem voz, transformou-se, em Alugo-me, no preenchimento desse vazio aparente pela voz, que se torna corpo. A edição de várias casas em seqüência e o vídeo em looping terminam por evocar a infinitude da nossa busca por algo que, como um vazio a ser preenchido, está sempre por vir.