Ensaio Cezar Migliorin, 08/2006

Landscape Theory

Landscape Theory é um vídeo de paciência. Bellini grava o diálogo entre ele e um homem nos Estados Unidos, enquanto filma um avião que risca o céu. O homem lhe diz que não deve filmar naquele lugar: “as pessoas andam meio nervosas...”, “desconfiam de pessoas filmando grandes estruturas ou grandes prédios...”. Bellini tem a tranqüilidade de perceber que algo importante estava acontecendo ali: o diálogo tem a força de algo que não acontecerá duas vezes, e o artista teve a perspicácia de mantê-lo, em tensão, sem ser subserviente. Aos poucos o diálogo vai tornando a câmera de Bellini cada vez mais perigosa: “outro dia um cara foi preso aqui perto porque estava tirando fotos...” e Bellini mantém a conversa, sem dar razão ao homem, escutando-o. A questão do vídeo não era provocar uma experiência inusitada, radical, uma briga, mas deixar a fala sair, se fazer. Até onde pode ir essa fala? É essa a paciência e a inteligência do trabalho: deixar o texto ultrapassar a comunicação e fazer vibrar um estado do mundo.

Em Landscape Theory o artista consegue materializar a violência de um encontro “casual”; a violência de uma fala, a princípio, amigável. Landscape Theory se concretiza nessas fronteiras: entre a delicadeza dos pássaros que Bellini quer filmar e a natureza privatizada por um cidadão que se vê como responsável pela segurança de todos. O Estado aqui que não precisa mais espalhar placas e regras onde se explicita o interdito. O interdito, o perigo, a ameaça estão em toda parte: nos pássaros, na paisagem, nos viadutos e nos encontros casuais que se pode ter com um estranho na rua.

O terrorismo que destruiu o World Trade Center retorna neste vídeo sem nenhuma imagem do ocorrido e sem nenhuma tela negra que proíba a imagem. O 11 de setembro habita as imagens deste vídeo de cinco minutos. Talvez seja essa materialidade de um estado das coisas que impressiona no trabalho de Bellini; cada imagem que vemos em Landscape Theory transborda a “landscape” apontando para a maneira como uma guerra das imagens foi “vencida” pelos terroristas. O mundo não está aí para ser significado, nos diz o homem que aborda o artista. Tudo isso aí que você está filmando possui, em potência, o que nos ameaça: os grandes prédios, os viadutos, as fábricas de computador e até a paisagem: “Você sabe onde eu poderia filmar sem ser um problema?”, pergunta Bellini. “Não, não sei”, diz o homem. Todo e qualquer lugar está impregnado. 

Em um primeiro momento me perguntei: por que não manter uma unidade espacial entre a fala e a imagem? Por que não manter a imagem do som direto? Entendo que foi trazendo uma multiplicidade de imagens, que ora encontram o texto, ora se distanciam dele, que Bellini conseguiu multiplicar para um espaço infinito o discurso que ali se estabelecia entre os dois. A composição ética e política do espaço que se materializa no vídeo de Bellini não diz respeito apenas ao espaço em que o vídeo se dá, mas a uma realidade da imagem e do espaço em geral. 

Há um embate pelo espaço entre as duas vozes do vídeo. Por um lado há o artista que vê uma microação da natureza - um pôr-do-sol e os pássaros - e se interessa de maneira estranhamente singela e desfuncionalizada por esse espaço. Por outro lado há a voz que vem dar uma “dica” que acaba em “dura” e que vê naquele mesmo espaço uma função. Para o homem, entre câmera e espaço não há ambigüidade. Filmar o espaço e a natureza é um enunciado em si. Dupla captura: dos espaços e das imagens. O embate de Bellini é contra essa captura; é nesse sentido que o vídeo é fortemente político. Produzir uma imagem é um ato de abertura, de apresentação do que ainda está em formação, do que está em germe, do que pode surgir desse processo. Enquanto isso, a voz que aborda o artista diz saber para que servem as imagens, por isso elas não devem ser feitas. “O pintor não trabalha sobre uma tela branca e virgem, ela está repleta de clichês com os quais é necessário romper”, diz Francis Bacon. Se as imagens pré-concebidas sempre existiram, elas atingem hoje uma saturação inédita. O efeito quase cômico do vídeo de Bellini é que ele consegue apreender esse clichê ligado ao terrorismo até nos pássaros que voam ou no pôr-do-sol. Curiosamente, o pôr-do-sol, ele mesmo um clichê, se livra de seu destino ao ser confrontado, tensionado com outro clichê.

“Você assiste a noticiários? Lê jornais?” Pergunta o homem, explicitando o que lhe produz como agente do poder. No modelo pan-óptico, trabalhado por Foucault, é toda uma arquitetura que expõe o indivíduo à visibilidade que faz com que esse olhar sobre o indivíduo seja introjetado, tornando-se ele próprio responsável por sua vigilância. A indignação do homem com quem Bellini conversa é porque este que filma ainda não incorporou a vigilância. Cuidado! Eles vão te ver e te punir. Mas aqui, diferentemente da base disciplinar de Foucault, a vigilância é antecipatória e preventiva. O senhor vigia o câmera para antecipar um risco que o artista (e ele próprio) correm, e a polícia vigia quem filma para antecipar o risco que “todos nós” corremos. Em uma cadeia de predições, instaura-se a vigilância contemporânea.

Landscape Theory é uma vitória; no mesmo momento em que discute uma fala que normatiza o espaço e a imagem, produz uma imagem não-normatizada que expõe, com grande intensidade, a tentativa de imobilizar o ato de criação de imagens. No vídeo de Bellini é a imagem e os espaços quaisquer que se insubordinam. Isto não é vigilância, gritam as imagens do vídeo, sem que Bellini perca a tranqüilidade ao perceber em ato que estava captando algo precioso. Mas, o que se materializa neste trabalho é que toda câmera é uma câmera de vigilância e que todo espaço deve ser vigiado. No vídeo é um homem qualquer que assume esse papel do olho do poder, um olho que tudo pode e que não é individual; não é dirigido a um indivíduo com determinadas características de raça ou nacionalidade, mas pelo seu modo de operar a natureza e a tecnologia. No caminho aberto por Foucault, entendemos que as construções subjetivas não estão separadas de formas de visibilidade. São essas formas que se fazem singulares em cada momento histórico e que em Landscape Theory se dão a ver no que no contemporâneo há de específico: uma transformação do espaço em relação à visibilidade e às formas de controle. 

No vídeo, a responsabilidade pela segurança não é mais função do Estado, mas de cada comunidade, de cada cidadão. A segurança não é mais pensada em termos de um padrão de Estado, mas como contrato local onde cada um é responsável pela sua segurança e pela segurança da comunidade. Nos Estados Unidos, onde o vídeo acontece, essas políticas ficaram conhecidas com ações como “neighborhood watch” ou “tolerância zero”, mas é em toda a relação com o Estado que essa privatização da segurança se dá. Basta atentarmos para a familiar forma de o Estado ser visto hoje, não mais como provedor, mas como parceiro; não é o Estado que presta serviço de saúde, mas é ele que deve dar limites para as assistências privadas - que o sujeito pode ter, ou não. O sujeito é hoje, como no vídeo de Bellini, responsável pelo seu próprio destino. É isso que o homem que aborda o câmera tem a dizer; se você quiser filmar, pode filmar, mas é melhor não, você pode ser preso. Por outro lado, ele se acha responsável pela sua segurança; é isso que autoriza esse homem a ver a câmera e a arquitetura como uma ameaça. 

A arquitetura urbana, pelo menos desde a metade do século 19, foi instrumentalizada pelo Estado em nome da ordem pública e da cidadania. As reformas urbanas acontecidas nessa época atestam as preocupações com segurança e saúde na reconstrução das cidades. As cidades tornavam-se mais transparentes e “organizadas”. Por volta de 1880, os padrões que Haussmann aplicou em Paris estavam espalhados em cidades distantes como Santiago e Saigon (Marshall Berman). Curiosamente, em Landscape Theory, refletindo os atentados de 11 de setembro, é a arquitetura urbana que é resignificada. As grandes obras, sinônimo de progresso e ordem, tornam-se o que ameaça, caos potencial, armas de crime a serem vigiadas. 

Somos responsáveis por nossa segurança, por nosso contínuo desenvolvimento, educação, saúde pessoal e pelo controle de nossos riscos. Em outras palavras: a “moratória é ilimitada” (Deleuze). Essa moratória inclui agora o terrorismo, ele não pode nunca deixar de ser gerido e a responsabilidade é nossa (nos diz o senhor que aborda o cameraman). Filmar uma ponte é tornar-se devedor de uma explicação. A sociedade de controle, como nos apontou Deleuze, atua por modulação entre instituições. Se na sociedade disciplinar estávamos passando de uma instituição à outra - da escola/exército/fábrica/hospital - na sociedade de controle essas passagens não se fazem mais por corte. Cada instituição possui fluxos e forças que são levados de uma para outra. Assim como os fluxos de uma instituição estão freqüentemente se atualizando em outras, são as próprias identidades que estão em crise e passam, elas também, a operar em fluxos. O que assusta neste trabalho é que o “fluxo” terrorista/criminoso parece disperso e a todos abarcar; são forças venenosas e totalitárias que demandam ações multiplicadoras e insubordinadas, como este trabalho de Bellini.