Ensaio Christine Mello, 05/2006

corpo duVA

Um dos primeiros trabalhos realizados por duVa - como assim ele gosta que grafemos seu nome - é o vídeo experimental Grotesque, com duração de quatro minutos, criado em 1987. Um dos seus últimos é a videoperformance Grotesco Sublime MIX (GSMIX), apresentada em 2005. Dos anos 1980 para cá, são duas décadas de projeto poético que ele desenvolve. As questões aqui levantadas são: por que falar de duVa hoje e sob quais circunstâncias?

Há muitas formas de perceber a presença de um gesto, uma ação estética e seus contextos criativos, assim como há também muitas formas de falar do plano simbólico de uma obra. Contudo, há uma experiência subjetiva no cerne de cada leitura. Melhor seria abordar, aqui, múltiplos tipos de caráter, no que diz respeito à noção do grotesco, e, desse modo, optar pela análise daquilo que consideramos um caráter híbrido e disforme na obra do brasileiro, nascido em São Paulo, em 1965, Luiz Duva.

Por que duVa?

Primeiro, a sua existência artística não trata de interpretar o mundo, trata de experimentar o mundo. É a questão do pensamento como estratégia, ou processo de subjetivação, como afirma Deleuze. Não se trata, portanto, de apresentar duVa como um sujeito, mas sim apresentá-lo em sua dimensão de pensamento-artista.

O início de seu percurso, nos anos 1980, foi pela ficção. Uma tarefa relativamente árdua num país como o Brasil, que se compõe cotidianamente por meio das novelas da TV. Como instituir então, nesse gênero, um deslocamento de linguagem?

Deus come-se é um vídeo de duVa realizado em 1990. Nele, a figura de um homem é fragmentada minuciosamente pela edição eletrônica. A ação da obra, como um quebra-cabeça, ou uma construção em abismo (a edição dentro da edição), é elevada à própria dimensão desconstrutiva dos discursos da arte. Nesse vídeo, é o processamento que transforma conceitos em imagens. Trata-se de uma das principais marcas da criação em meios eletrônicos em que, para além de todo o humanismo da visão conduzida pelas câmeras, como diria Dubois, é a mão que toca, apalpa, tateia, se infiltra, edita e, por conseqüência, imprime os significados.

Como um geômetra, por meio dos múltiplos recortes que procede sobre a tela, duVa concebe em Deus come-se um tipo de edição matematicamente construída. Nela, ele exerce o controle semântico e sintático através da decomposição de um corpo em pleno ato ficcional. Tal corpo revela um caráter ambíguo, que só o meio eletrônico dá conta, na medida em que, aparentemente, esse corpo está fixo e ao mesmo tempo se movimenta numa série de cortes sucessivos. E mais, enquanto o corpo humano é retalhado, kafkaniamente ele se depara com um inseto. De forma simultaneamente angustiante e irônica, um boi é degolado, desmembrado, sangra e é morto. Enquanto isso, o inseto e o homem procuram devorar, ou dominar, um ao outro. Tais corpos dialogam e se reconhecem a partir do outro. No entanto, é a imagem e o som do vídeo - metaforicamente falando - que os come, os devora e os subverte por meio do efeito trágico de purgação, ou uma visão excessivamente próxima. Melhor, a imagem tem a capacidade de transformá-los em um corpo dessemelhante, grotesco, híbrido de homem e animal, como uma negação da criação divina. 

Se Deus come-se foi gerado no cerne de um processo criativo iniciado há duas décadas, falar de Luiz Duva hoje significa, antes de mais nada, falar de uma proposição poética consistente, que não só resiste à passagem do tempo como tem a capacidade de imprimir uma percepção de mundo. Sob esse raciocínio, é possível notar também a dimensão atemporal em que essa percepção se expressa. Por exemplo, assim como o holandês Peter Bruegel imprimiu a sua percepção grotesca na Renascença, é possível notar na contemporaneidade gestos estéticos similares dessa mesma natureza sendo impressos, quer seja nas obras de artistas como Matthew Barney, no contexto internacional, quer seja nas obras de artistas como Luiz Duva, no contexto brasileiro.

Por que a estética do grotesco?

Apontar experiências estéticas do grotesco na obra de duVa representa associá-lo a um repertório voltado à discussão das contradições humanas, que no Romantismo, no século 19, foi traduzido por Victor Hugo por meio de operações contaminadas, que suscitam escárnio e riso, que passam da tragédia à comédia, do sublime ao grotesco. É nesse momento que Hugo*, em oposição às normas clássicas, afirma, por meio do drama moderno, o princípio de mistura dos gêneros, de rejeição das regras, de recusa da imitação dos modelos e da liberdade na arte.

Na visão de Guinsburg, é pelo paradoxo, pelo inverossímil e pelo vórtice abismal, que a arte do grotesco desestabiliza e movimenta tudo quanto toca, desequilibrando relações harmônicas, justapondo no mesmo plano axiológico o elevado e o baixo, o refinado e o grosseiro, o belo e o monstruoso, o trágico e o cômico**. É nessa direção que ocorre o deslocamento de linguagem nas proposições de Luiz Duva. E não é só um deslocamento de ordem semântica como também de ordem sintática. O deslocamento ocorre tanto em procedimentos singulares (como no caso de Deus come-se pela ruptura da ficção) quanto pelas circunstâncias limítrofes a que ele submete o meio eletrônico no conjunto de sua obra.

Tal afirmação advém do ato de observar o gesto perceptivo de duVa como uma inteligência voltada ao inconformismo, à hibridez e à desorganização das formas. Em Deus come-se, o grotesco ocorre pelo modo como há a desarticulação, ou a desagregação do todo pelo fragmento, com o objetivo de explorar, no vídeo, múltiplas visões e seus mais complexos procedimentos. O deslocamento vem, nesse caso, pela desconstrução do movimento e pelo modo como ele desfaz conformações simétricas no contexto de edição do trabalho. Ou seja, pela inserção do movimento como um elemento ficcional no próprio plano da imagem-vídeo. 

Deus come-se não é, porém, o único exemplo em que gestos grotescos e deslocamentos de linguagem ocorrem na produção de duVa. Tais fenômenos ocorrem também em Jardim Rizzo (1992), em Momentos antes... (1995), depois em The bodymen lost in heaven (1996), entre outros. Todos são vídeos ficcionais e todos são realizados sob a problemática do grotesco. 

O grotesco surge, dessa maneira, na prática artística de duVa sob a lógica da reversão. É por essas e outras razões que, em sua obra, a ação estética do grotesco advém, portanto, do modo como ele promove uma linguagem incompatível com as normas preestabelecidas, revelando, assim, a expansão das formas expressivas.

Feito uma geléia geral, a leitura acerca da linguagem de um artista que atravessa passagens midiáticas, ou paisagens desterritorializadas, pode ser considerada, como diria Plaza, como a leitura de universos paralelos e simultâneos que tendem a perder seus contornos e fronteiras fixas. Assim, a trajetória de duVa no painel da arte brasileira, como uma sensorialidade múltipla, pode ser vista hoje sob a forma de um desenho móvel e disforme no campo da imagem e som em meios eletrônicos.

Corpo coletivo

Às vezes refletimos como se a imagem no mundo contemporâneo não mais pudesse se exprimir. O problema não é mais fazer com que a imagem se exprima, mas provocar-lhe uma outra instância de força. 

A imagem é uma construção simbólica, implica que a sua produção passe por uma série de operações que consistem, no presente caso, em trabalhar com a expansão do meio eletrônico na atualidade. Compete, então, ao artista, a partir dessa realidade, trazer à tona novas circunstâncias para o esquema sensório-motor da imagem.

Luiz Duva opera novas circunstâncias para a imagem contemporânea por meio da desordem do seu sistema sintático. Ao rígido determinismo da edição em seus primeiros trabalhos, duVa inicia, no final dos anos 1990, um processo de inserção do acaso e do aleatório no campo da produção da imagem. Ele passa a articulá-la pela lógica da imprecisão e nela incorpora o imprevisível e a mobilidade da informação. 

O vídeo, antes produzido por duVa para o monitor de TV, desloca-se agora para outros espaços sensórios. Ele expande, assim, o movimento da imagem para o ambiente arquitetônico das videoinstalações, bem como para as sinestésicas e imersivas improvisações dos espetáculos VJings.

Em 2001, duVa realiza Corpomóvel 1 e 2, um misto de instalação e performance. Essa obra é composta como um kit móvel de produção, edição e manipulação de imagem, em que, de uma só vez, ele grava, edita e apresenta o trabalho junto ao público. E o movimento da imagem, de ficcionalizado e instalado, passa a ser também performado. 

Sob essa natureza mais híbrida, surge, ainda em 2001, um outro corpo expressivo em sua imagem, o corpo coletivo produzido nas live images, ou nos chamados espetáculos de vídeo ao vivo. Nesse período, é por meio de parcerias, como as realizadas com o Videobrasil, que resultam trabalhos como PVC (2001) e A mulher e seu marido bife (2001).

Em Vermelho sangue (2002), videoperformance apresentada em conjunto com o músico Wilson Sukorski, doze telas de projeção são especialmente criadas para o 1º Festival Brasileiro de VJs - Red Bull Live Images. Nelas, duVa inscreve a linguagem indeterminada e permutacional do scratch, ou do arranhamento eletrônico da imagem, assim como dialoga, de forma imersiva, com o ambiente vivencial da cena eletrônica.

Do controle formal, a expressividade em sua imagem adquire novas dimensões. Já não se trata mais de uma imagem decomposta de forma calculada, ou sob a ordem do acabamento advinda de um produto audiovisual, como em Deus come-se, mas, aos poucos, o seu processo criativo torna-se mais apto ao informalismo, ao descontrole e ao inacabamento. Assim, seus trabalhos passam a coexistir em diálogos mais plurais e colaborativos pelo espaço, acolhendo, dessa maneira, o corpo criativo do outro, também em deslocamento, no ato de visitar, entrar, viver e partilhar suas videoinstalações e videoperformances. 

Em seguida a essas experiências, duVa apresenta, em 2003, a videoperformance Desconstruindo Letícia Parente: Marca registrada, um exercício minimalista de apropriação e desconstrução de outra videoperformance. No caso, ele opera a desmontagem de Marca registrada (1974) de Letícia Parente. Essa última, obra pioneira da videoarte brasileira, não diz respeito ao campo das live images. Trata-se, antes de mais nada, de uma homenagem à artista Letícia Parente por meio da expansão de sua imagem para três telas simultâneas e da reconfiguração de suas idéias no âmbito das manipulações de vídeo ao vivo.

Mais recentemente, duVa tem ampliado ainda mais a dimensão da imagem no campo do improviso e do agenciamento da obra com o público. Para tanto, ele passa a incluir em seus procedimentos as interfaces e a interatividade. É desse modo que ele realiza a instalação Demolição (2004). Nela, duVa propõe uma forma de demolição virtual da imagem. Tal efeito de demolição é produzido a partir dos acionamentos dos botões de uma interface, em que o público, diante de uma projeção, rege os acontecimentos como num videogame e, esteticamente falando, demole a imagem.

corpo duVa

De modo muito particular, duVa insere hoje a dimensão musical em seu trabalho através do sampleamento de imagens. É por meio desse cruzamento de procedimentos entre amostras de imagem e som, ou jogos sinestésicos no plano tecnológico, que a imagem passa a ter a capacidade de produzir um som. Se, como a música, a imagem eletrônica existe apenas no tempo, ou seja, na duração, no ritmo, na freqüência - como observa Machado - podemos analisar que, no sentido oposto aos pioneiros da videoarte (a grande maioria, como Paik, provenientes da área musical), duVa reativa esses diálogos abstratos, de forma inversa, reconduzindo tais imagens ao campo das experiências sonoras.

Fruto dessa ampla gama de experiências, o amadurecimento artístico de Luiz Duva ocorre num momento em que a sua escritura audiovisual mais radicalmente se apresenta como expressão cinemática, plasticidade e sensorialidade: é prenhe de automovimento. É na busca por essas novas substâncias estéticas que a sua trajetória adquire a dimensão de um corpo poético, ou um corpo duVa. Tal corpo diferenciado, impuro, indeterminado, despadronizado e disforme de linguagem, expande a própria dimensão midiática e retorna às origens: torna-se sombra, cintilação, desenho, pintura, fotograma, frame, sampler, torna-se ele próprio, imaginário contemporâneo e pensamento.

* Hugo expõe tal visão no Prefácio de Cromwell (2004). 

** Guinsburg expõe tal visão na apresentação do livro O Grotesco, de Wolfgang Kayser (2003). 

Referências bibliográficas

DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990 / Gilles Deleuze; tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992.

DUBOIS, Philippe. Video, Cine, Godard. Buenos Aires: Libros Del Rojas/Universidad de Buenos Aires, 2001. [Apresentação de Jorge La Ferla] 

HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime: tradução do Prefácio de Cromwell; tradução e notas de Célia Berrettini. São Paulo: Perspectiva, 2004.

KAYSER, Wolfgang. O Grotesco. São Paulo: Perspectiva, 2003.

MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário. O Desafio das Poéticas Tecnológicas. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 1996.

MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Comunicação e Semiótica PUC/SP, 2004. [Tese de Doutorado]

PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo/Brasília: Perspectiva/CNPq, 1987.