Ensaio José-Carlos Mariátegui, 12/2004

Cirurgia de uma memória televisiva

“Nem sequer os mortos estarão salvos do inimigo se o inimigo ganha.” 

Walter Benjamin

Atualmente a televisão é uma força vital para determinar a nossa cultura, nossos valores e até nossas fantasias. Na América Latina, onde mais da metade das famílias, inclusive as mais pobres, tem uma TV em seu lar, esta tem se convertido em um meio contaminado por uma corrupção estrutural. A banalidade em sua crônica de acontecimentos, que parece interessar a todos, gera um susbtituto elementar fundado na oposição a esta banalidade: o pensamento a subverte e dissipa para revelar as coisas ocultas, as coisas valiosas. 

Descobrir a importância do meio televisivo tem motivado a mudança da realidade “re-criando-a” e descompondo-a para conseguir um novo olhar: o que nossa visão cotidiana não nos permite “ver”. Ernesto Salmerón, jovem comunicador social e documentarista nicaragüense, intervém nos “media” com “construções audiovisuais” a partir de suas observações e comentários sobre os acontecimentos à sua volta. Como bom investigador social, reconhece o contexto como parte integral da investigação, quer dizer, hoje é impossível construir uma imagem por si só. 

A série Documentos x/29 transforma uma situação histórica e a converte em “post-histórica”, na lembrança “latente” do presente e na “alarmada” pergunta do futuro. Através de terminologias extraídas do meio digital (como a “POST-POST-POST REVIDEOLUCIÓN EN NICARAGUA”), conta uma história inacabada que uma nova geração quer fazer sua a partir da intervenção digital de uma realidade da qual somente foram participantes inertes quando crianças, através da TV. 

A digitalização, como um formidável instrumento para a decomposição e a recomposição da memória (Documento 1/29), evidencia que já não existe uma única realidade que se sustente. Em um país como a Nicarágua, onde se viveu uma prolongada guerra interna, a memória cumpre um papel fundamental que a TV comercial deseja dissimular, amputar e dissolver. Salmerón nos oferece, por isso, um convite a um conceito crítico difícil, sujo, entendido pela metade, que prova a marca de um processo inacabado: a Revolução Sandinista. 

Na segunda e na terceira parte (Documento 2/29 e Documento 3/29), justifica a necessidade social como conseqüência da biológica. O homem não vive em um universo puramente físico, mas também em um simbólico: língua, mito, arte e religião compõem este tecido social que, assim como o universo biológico, também evolui de modo mais rápido que o ”Homo sapiens”. Por isso o conceito de progresso na sociedade “POST”-industrial não só conota o processo biológico, mas hoje se amplia ao processo de manipulação eletrônica: a informação é o bem valioso, e não mais a coisa (objeto sem informação). 

Mediatizar uma situação (como fazem as cadeias de notícias) alcança o efeito de realidade, aquele resultado que, como menciona Salmerón, já não se alcança com as armas, mas com o eficiente “arsenal ideológico”. Salmerón tem muito claro que é filho do meios, filho da TV, e que pode se deleitar do poder indiscriminatório. Trata de nos revelar a estética midiática das imagens de guerra: as luzes noturnas no céu nos levam a pensar nas balas dos aviões (pouco claras, mas convincentes), quando poderiam também ser fogos de artifício. 

Como projeto conceitual, Salmerón pretende enfrentar a maleabilidade através do uso do meio televisivo, permitindo deformar a realidade, assim como os “media” a deformam para banalizá-la, reduzindo a mensagem real atrás de conteúdo barato. 

Sem dúvida, intervindo delicadamente na TV, como se fosse um ato de uma cirurgia maior, a imagem mostra em forma desencarnada, com todo o “ruído” próprio do meio, com toda a sua visceralidade. É uma intervenção que revela as forças ocultas do meio e o nível de repetição da imagem. 

Esta nova percepção do meio televisivo nos permite desenvolver sensibilidade, conhecimento, e o manejo dele, e nos faz ver como as novas gerações são cada vez mais sensíveis à TV: sabem como digerir os signos e os significados desse meio e tem o poder de subverter a imagem. Por isso, podemos ver com certo otimismo esse futuro, no qual o poder deixa aos poucos de ser monopólio de um punhado de meios hegemônicos para voltar-se à opinião individual. 

Na América Latina, a violência e o sofrimento durante grande parte do século XX têm nos transformado em inimigos da lembrança. Sem dúvida essa lembrança é muitas vezes necessária, pois está vinculada à memória coletiva de um povo, ao sentimento de saber por que ainda não se ganhou. Na Nicarágua, falar bem ou mal da guerra significa ainda um tabu, algo do que não se quer falar, mas onde há mortos que ainda reclamam por justiça. 

Salmerón vem trabalhando, estendendo este laboratório da memória recente do povo nicaragüense, com uma visão própria que tenta expressar intimidade e frustração. Por isso a memória, como uma atividade social, pode servir para reconstruir um espaço e restabelecer o perdido. A memória se transforma, assim, em uma substância flexível de reconstruir fragmentos esquecidos: um povo que deve ver seu passado para construir o futuro.