Ensaio Cauê Alves, 2004

“o corpo é nosso meio geral de ter o mundo”
Merleau-Ponty

A compreensão do trabalho de um artista a partir de seus dados biográficos, embora seja um método recorrente na história da arte, é uma abordagem que pode limitar a leitura das obras e propiciar associações que com o tempo se mostram equivocadas. Zola, amigo de infância de Cézanne, talvez enfatizando demais o caráter do pintor, não pôde perceber o sentido da pintura de seu amigo. Ele foi o primeiro a chamar-lhe de gênio, mas também o primeiro a se referir a Cézanne como um fracassado, “gênio abortado”, como se sua obra fosse apenas uma manifestação doentia. Se o sentido de uma obra não pode ser determinado pela vida do artista, é inegável que ambas se comunicam. No caso de Lia Chaia, uma jovem de 26 anos – mas que já possui um nome bastante difundido, como se ele fosse mais velho que a própria artista –, essa relação é bastante orgânica.

Não se trata aqui de compará-la a Cézanne, porque além de suas obras terem pouco em comum, o artista como um gênio é uma categoria que, se já não foi, deveria ter sido abolida na arte contemporânea. Num percurso ainda tão curto, em relação ao que projetamos em sua trajetória, não há momento na vida de Lia mais importante que o processo de sua formação. Desde pequena ela vive e habita o mesmo espaço de diversas obras de arte. Filha de professores universitários e colecionadores de arte contemporânea, freqüentou exposições desde os mais tenros anos. Em sua casa sempre esbarrou em peças de artistas e conviveu com paredes lotadas de pinturas que, de acordo com as novas aquisições, foram sendo cuidadosamente reconfiguradas em novas montagens. Jamais compreenderemos a obra de um artista em relação aos fatos cotidianos de sua vida se pensarmos em relações de causa e efeito. Não há equações capazes de estabelecer medidas e porcentagens da influência do ambiente sobre a produção. Se as referências de Lia a outros artistas, escritores, músicos ou dançarinos nunca poderiam determinar sua obra, do mesmo modo o sentido dela não pode sair apenas de sua biografia. Talvez o inverso seja mais interessante: seu trabalho exigiu essa vida, essa relação íntima com a arte, e o modo como a artista se relaciona com o mundo faz parte dele.

Um dos primeiros trabalhos que apresentou ao público, realizado ainda enquanto cursava Artes Plásticas na FAAP, foi o vídeo “Desenho-corpo” (2001). Em 51 minutos, tempo de duração de uma caneta esferográfica em contato com a pele, a artista desenhou sobre si mesma. Essa espécie de performance privada tornada vídeo, se por um lado explora a intimidade do corpo, excluindo tudo o que está fora dele, por outro aborda a relação entre a fragmentação e a unidade estrutural do corpo. A continuidade e as descontinuidades das linhas que perpassam todos os seus membros são análogas aos enquadramentos ora abertos, ora fechados da câmera. Antes de seu corpo ser tratado como objeto, ou como suporte para a obra, ele é a própria obra de arte. Ele é corpo reflexivo; nele subjetividade e objetividade se fundem. Mais do que ocupar um espaço, o corpo é o próprio espaço e esse é seu modo de se realizar como corpo, a sua maneira de ser. Afirmar que o corpo de Lia é uma obra de arte não é apenas elogiar a beleza e a sensualidade de seus volumes, algo que o vídeo nem explora, mas justamente chamar a atenção para a inseparabilidade entre a expressão e o expresso pelos seus gestos. A caneta, mais do que um apêndice do corpo, parece se integrar a ele. Além de tocar a pele com a caneta, a sua mão sente seu próprio corpo através desse objeto que transforma gesto em desenho. Ao mesmo tempo em que o corpo desenha ele é desenhado; trata-se também de um desenho reflexivo. Por isso, não se pode afastar seu corpo, como núcleo significativo, da obra de arte.

Já em “Madrugada” (2003), a experiência com o corpo se dá de modo diverso. Trata-se de uma série de fotografias em que a artista encarna uma prostituta decadente que se mostra quase nua na cidade, mas com a dignidade de uma heroína. É menos o corpo de Lia que está em jogo do que o da personagem. Embora, como em “Desenho-corpo”, também não exista uma narrativa, trata-se de uma encenação. O bom humor da moldura rosa-choque e cafona, que enquadra a heroína mascarada, reverbera em sua figura perversa e grotesca que se assemelha a de um bufão da commedia delʼarte.

Uma das marcas de Lia é a variedade de temas e a desenvoltura que mostra em meios tão distintos como gravura, pintura, escultura, instalação, performance, dança, vídeo, fotografia ou sons, muitas vezes usados de modo híbrido. Durante sua estadia na Cité des Arts em Paris, onde participou do programa de residência, realizou a intervenção urbana “Um mundo” (2003). Trata-se de uma operação simples e delicada, como sua própria personalidade, que deixou os parisienses intrigados. Lia inseriu uma série de bexigas com desenhos de estrelas em dezenas de esferas nas extremidades de pequenos postes de ferro, pouco mais altos que nossa cintura, que se enfileiram nas calçadas de Paris. Como mostram os registros em fotografia, a repetição de balões de borracha de diferentes cores no caminho dos cidadãos quebrou o olhar viciado e cotidiano de muitos passantes. De diversas cores, essa sutil interferência, realizada numa escala reduzida em relação à cidade, mas nem por isso menos eficiente, promoveu uma espécie de alinhamento de pequenos planetas e céus estrelados. O trabalho forma uma espécie de carta celeste e joga com a relação entre o micro e o macro que a cosmologia não cessa de investigar. Com bom humor, característica marcante da obra da artista, essa interferência nos remete à figura do clown e à famosa cena de Chaplin, no filme “O grande ditador”, brincando e dançando com o mundo como se pudesse dominá-lo completamente.

O riso, seja o espontâneo ou o artificial, já foi tema de um trabalho de Lia em fotografia e na intervenção realizada no evento “Genius Loci – O espírito do lugar”, em 2002, no bairro de Vila Buarque em São Paulo. Na ocasião, a artista distribuiu sorrisos recortados de anúncios de revistas e convidou o público a estampá-los em seus rostos, ironizando a felicidade como objeto de consumo e brincado com elementos da publicidade.

A cidade é um campo de investigação constante em seus projetos. No vídeo “Cidade pictórica” (2003), uma câmera parada registra o movimento de paisagens embaçadas pela garoa caindo sobre um vidro. O limpador de pára-brisa marca os cortes e desfaz a refração da luz proporcionada pelas pictóricas gotas de chuva. Ao contrário dos impressionistas, que pintavam ao ar livre, a artista recolhe suas impressões no interior de um carro, local em que muitos cidadãos das megalópoles passam grande parte de suas vidas. O tempo esticado, o tempo lento da chuva que parece não ter fim, se contrapõe à aceleração urbana. O vídeo dialoga com o folclore e o estigma de Terra da Garoa, e dificilmente seria feito por alguém que não vivesse num lugar como São Paulo.

Além da cidade, a vegetação, as árvores e a relação reificada do cidadão com a natureza integram suas pesquisas. “Verdejar: verde no branco no verde” (2003) são pinturas de plantas estilizadas e geométricas sobre paredes e telas que compõem uma espécie de cenário de floresta. Depois de secas, a artista retira as telas das paredes pintadas, abrindo janelas brancas no interior da pintura mural. Recolocadas na parede oposta, sobre um fundo branco, esses fragmentos verdes, antes negativos da pintura, tornam-se novamente positivos. As telas usadas para impedir a aderência da tinta à parede funcionam como máscaras e, ao mesmo tempo em que parecem condensar toda a pintura, mostram que não suportam tal carga. É como se realizassem um movimento de expansão e contração.

Se até então os trabalhos da artista oscilavam entre temas do campo e da cidade como alternativas, investigando ora a paisagem urbana, ora a natural, “Vereda” (2004) pode ser compreendida como síntese dessas questões. O verde na cidade, assim como nos muros de “Vereda”, está em segundo plano, atrás de camadas de cimento que, mesmo quando mescladas com anúncios publicitários, organizam o espaço urbano, estabelecem os limites entre dentro e fora e bloqueiam a nossa visão do horizonte. Com uma espécie de ponta-seca, a artista faz entalhes e incisões que, em vez de constituírem a matriz usada para a impressão de uma gravura, trazem à tona tons esverdeados que colorem as linhas do trabalho final. Como cada parte precisa ser concluída antes de a massa secar, a técnica também remete ao afresco. Os desenhos de Lia brotam silenciosamente e avançam sobre a parede. Seu traço se desenvolve com a mesma espontaneidade das formas orgânicas e naturais, mas sem deixar de ser “coisa mental”, de se mostrar enquanto desenho. Tudo se passa como se essas folhas de hera, que se esparramam e logo se petrificam como fósseis, tivessem encarado a mitológica Medusa. A cidade consegue conviver com a vegetação apenas quando a imobiliza e controla.

A preocupação da artista é com o embrutecimento e a frieza dominantes nos espaços em que vivemos. Na cidade, seu olhar se dirige às áreas verdes cada vez mais restritas em minúsculos canteiros, às podas violentas que mutilam árvores para dar passagem a fios elétricos e à firmeza de raízes que resistem e destroem calçadas.

Os arbustos geométricos que ocupam a área central de “Vereda” foram moldados pela vontade de racionalizar e domar a natureza. Fragmentos da mata atlântica, que ocupam livremente o espaço como bailarinas que arriscam movimentos não coreografados, são tão rigidamente esculpidos quanto os clássicos jardins franceses. Se por um lado as plantas se apresentam em cavaletes de madeira, discutindo a tradição da pintura e a bombardeada questão da representação, por outro esses arbustos se parecem com aquelas artificiais mulheres da televisão que tratam seus corpos como se pudessem dominá-los completamente, como se não houvesse uma subjetividade que os habitasse, como se eles não fossem mais do que imagem. Essas esculturas antropomórficas remetem aos silicones e às violentas cirurgias pelas quais passam tantas modelos. O tema do corpo, abordado inicialmente no vídeo de 2001, reaparece de modo sutil em “Vereda”. Não se trata mais do corpo reflexivo da artista, mas de uma ironia em relação ao modo como o corpo é compreendido, recurso conquistado nesses anos pela sua obra.

O desenvolvimento do trabalho de Lia, embora não se dê de modo linear e homogêneo, indica alguns caminhos. A exploração da esfera íntima, de “Desenho-corpo”, foi aos poucos se abrindo para interferências em locais públicos que provocam uma série de estranhamentos na cidade. A busca da ampliação do espaço e a realização de projetos de esculturas são soluções espontâneas e livres exigidas pelo percurso de sua pesquisa e pelo próprio amadurecimento da artista. Há centenas de caminhos sempre imprevisíveis a escolher. Retomar projetos, seja dando continuidade, seja rompendo com suas premissas, está entre seu leque de opções. Arriscar num único caminho, ainda mais se tratando de Lia, seria uma aposta fadada ao fracasso.

São Paulo, agosto de 2004