Entrevista Eduardo de Jesus, 04/2004

Como você se interessou por audiovisual? Esse interesse veio da Antropologia via documentário?

Se eu for pensar no início de tudo, o interesse pelo audiovisual começou com o interesse pelo cinema, muito antes de eu saber o que era Antropologia ou mesmo o que era documentário. Provavelmente, o cinema ficcional vem antes de tudo e é a base do meu interesse pelas imagens, até hoje. Já a Antropologia, minha área de formação, está presente mais como uma porta de entrada para uma questão muito cara ao documentário, que é o reconhecimento da alteridade. No movimento de reconhecer o exótico no familiar e o familiar naquilo que é exótico, o antropólogo se aproxima do bom documentarista. Dessa forma, foram os textos de Malinowski e Clifford Geertz, muito mais que os filmes etnográficos, que me empurraram na direção do documentário, ao reconhecer o conceito antropológico de alteridade como a questão primordial na ralização de documentários. Daí que, após a faculdade, só me restou tentar fazer documentários. Tive a sorte de começar com uma produtora de vídeo que realizava documentários, mas que tinha um pé na videoarte. Foi trabalhando na PaleoTV, junto com o Kiko Goifman e com o Jurandir Müller, que percebi como o documentário poderia ser uma liguagem híbrida o suficiente para, inclusive, deixar de ser chamado de "documentário" e pairar acima das classificações. Desse ponto em diante passei a realizar documentários, ficção, vídeos experimentais, videoinsatalações, instalações, performances e esculturas sem distinção entre elas, é tudo arte. A única diferença é que às vezes fica bom e funciona, e às vezes não.

Em sua obra percebemos aspectos formais ligados ao documentário em obras de caráter nitidamente experimental. Como você relaciona experimentação e documentário em seus trabalhos?

Experimentação e documentário são coisas irmãs. Talvez o documentário seja o gênero mais aberto às experimentações em termos de linguagem cinematográfica e televisiva. É a televisão, justamente, o veículo que exibe os documentários, que é avessa às experimentações, e não o gênero em si. Os documentários a que assistimos na TV são institucionais e medonhos, mas basta uma volta descompromissada em alguns festivais especializados, ou até mesmo em alguns sites, para percebemos que o gênero é um terreno rico para a experimentação. Isso porque, como mencionei na questão anterior, o documentário é híbrido: pode ser cinema verité, cinema direto, docudrama, curto, longo, institucional, autoral, didático, jornalístico, pode tratar de qualquer assunto, pode ter locutor em off ou não, pode incorporar o seu próprio making of, em suma, pode muita coisa, o que dificulta até sua própria definição. Portanto, creio que o documentário é o tubo de ensaio perfeito para quem realiza vídeos autorais, experimentais, artísticos, ou como quiserem classificar. No entanto, não penso que o trabalho experimental seja um passo além do documentário, algo livre de suas amarras formais, ao contrário; hoje em dia, o experimentalismo em vídeo sofre de vários cacoetes, tornando-se quase que um gênero específico como a comédia, o western ou os filmes de guerra. Falta ao experimentalismo a objetividade romântica e inalcansável dos documentários: a pretensão de as imagens serem apenas o que se vê nelas. O que é visto é aquilo que é, e mais quase nada.

Existe uma certa direção temática que parece aproximar diversos de seus trabalhos. Como, por exemplo, as questões do corpo nos documentários Olhos Opacos (1998) e Na Lona (2002), e solidão na série Não Há Ninguém Aqui (2000-2002). Como esses temas aparecem? Existe algum método de pesquisa para as abordagens?

É engraçado, mas sinto que os temas estão sempre com a gente. O difícil não é fazer com que eles apareçam, mas o oposto. Às vezes penso que "preciso me livrar desse tema, ele me persegue há anos!". E isso é algo que podemos perceber nos trabalhos de vários artistas contemporâneos, aquela repetição quase minimalista dos temas. Não se trata de algo negativo, mas sim de uma característica da época em que vivemos: a reiteração quase obsessiva e esquizofrênica das mesmas questões. Nos trabalhos mencionados (Olhos Opacos e Na Lona), a questão do corpo está presente quase que da mesma forma, apesar das abordagens diferentes. Nesses trabalhos trato da questão da falência do corpo, do momento no qual ele pára de funcionar, mostrando-se frágil e ao mesmo tempo superando-se: a cegueira em Olhos Opacos, o nocaute em Na Lona. Na trilogia Não Há Ninguém Aqui o tema é, sem dúvida, a solidão. No entanto, em cada vídeo ela adquire um vetor diferente. Há a solidão presente nos anúncios sentimentais dos jornais das grandes metrópoles e o seu caráter anônimo (Não Há Ninguém Aqui #1), há a solidão do artista naquele momento de sua vida em particular (Não Há Ninguém Aqui #2), e a solidão da clausura, da imobilidade (Não Há Ninguém Aqui #3). Atualmente, o próprio cinema é o tema no qual tenho trabalhado. Método de pesquisa, portanto, não existe. Ocorre apenas o desejo de se livrar desses malditos temas através dos trabalhos. 4. Sabemos de suas incursões na música. Como, em seus trabalhos, a música é trabalhada? Existe um processo de troca entre música e imagem em seus trabalhos? Sou um músico diletante, tenho duas bandas de rock e levo esse diletantismo a sério, com direito a dois ensaios semanais, gravações de CD e shows para públicos sempre diminutos e nem sempre amáveis. Talvez por essa razão, a música, na maioria da vezes, seja o ponto de partida dos meus trabalhos. Para ser mais preciso, não só a música, mas o som de uma maneira geral. O som da secretária eletrônica na trilogia Não Há Ninguém Aqui, o som do trajeto sobre trilhos de trem em Cassino, Filme de Estrada, ou até no caso de Ficção Científica, o som dos diálogos de um filme do Tarkovski, por exemplo. Trata-se de ruídos, barulhos, vozes toscamente gravadas, que serviram de matéria-prima para os trabalhos. Mesmo quando há alguma música composta especialmente para o trabalho, ela geralmente surge antes das imagens, como no caso de Cassino, Filme de Estrada, no qual a trilha foi composta antes das gravações e com base na imaginação do que seria encontrado, tanto sonoramente quanto imageticamente, naquela locação em particular. É como se eu me colocasse no lugar dos personagens do documentário Olhos Opacos, cego, ouvindo os sons para imaginar as imagens, porém afortunado com a visão.

Algumas de suas videoinstalações também tratam da questão do corpo, como foi a passagem do single-channel para o ambiente da instalação em relação à abordagem temática.

Acho que não sei respoder a essa questão... Será que posso pensar um pouco mais nisso?

Você foi premiado no 14º Videobrasil com o vídeo Ficção Científica (2003), quase um ensaio que mostra a estrutura dos filmes de ficção, através da apropriação de sons e da alteração das imagens comuns. Qual foi a principal motivação para a realização dessa série sobre o cinema?

O vídeo Ficção Científica é o segundo vídeo dessa série e até o momento já foram realizados Filme de Horror e Cassino, Filme de Estrada. A idéia básica dessa série é a realização de vídeos sobre alguns gêneros cinematográficos, daí o título Vídeo de Cinema. Gêneros como o western, o musical, a comédia, o policial etc. baseiam-se na repetição de padrões narrativos e temáticos com uma margem de alterações limitada. Cada gênero cinematográfico possui um formato que lhe é peculiar. As platéias sabem o que esperar de uma "comédia romântica", de um "terror adolescente" ou de um "filme de ficção científica", por exemplo. São rótulos que a crítica, o público e a história do cinema se encarregam de difundir e sedimentar, construindo conceitos que, pela reiteração, se perpetuam como convenções genéricas, criando um verdadeiro paradigma do que seria o "cinemão" hollywoodiano. O projeto Vídeo de Cinema se propõe a uma leitura crítica desses gêneros, típicos do cinema clássico hollywoodiano, através do vídeo experimental, isolando elementos que os caracterizam em sua essência, que se repetem nos filmes, e os padronizam a ponto de definir-lhes como gênero. É interessante notar que o vídeo experimental e a videoarte se relacionam diretamente com a música, com as artes visuais, com a dança, com a performance, e com outras disciplinas artísticas desde os anos 60. No entanto, o diálogo com o cinema comercial clássico ainda é incipiente: o dito “cinemão” raramente é objeto de interesse da produção em vídeo. Pelo contrário, é o cinema hollywoodiano que se beneficia da produção experimental, a fim de tomar emprestado dela inúmeros recursos visuais que, após algum tempo, figuram nas salas de exibição em algum blockbuster de sucesso. A proposta desse trabalho é, portanto, fazer o caminho inverso, utilizando a linguagem eletrônica do vídeo como instrumento de releitura do cinema comercial. Dado que a narrativa do cinema de entretenimento sempre foi algo a ser contraposto pela produção de arte eletrônica contemporânea, esse projeto pretende fazer desta mesma narrativa a matéria-prima para a produção experimental: reiterar o cinema comercial por intermédio dos seus gêneros, clichês e padrões, transformando a sua natureza através do que lhe é peculiar, aproveitando o poder de síntese das imagens eletrônicas para falar de cinema por seus próprios meios, ou seja, pelas imagens.

O prêmio do Videobrasil é a residência e o desenvolvimento de um projeto no Le Fresnoy - Studio National des Arts Contemporains. Qual é sua proposta de trabalho?

Ainda não estou totalmente decidido, mas provavelmente continuarei a série Vídeo de Cinema durante a residência na França. Pelo fato do Le Fresnoy se localizar no norte da França, estou pensando em realizar o vídeo Filme de Guerra, a partir de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, tratando em especial do "Dia D", da invasão da Normandia.