Entrevista Paula Alzugaray, 03/2007

Ao criar uma tecnologia inédita para captar imagens geradas pela radioatividade da zona de exclusão na Ucrânia, em seu Projeto Chernobyl, que está em andamento, você me remete aos inventores das bases tecnológicas que, no final do século 19, levaram ao início do cinema. Naquele momento, a invenção de aparelhos para captar imagens em movimento correspondeu a motivações técnico-científicas. Que tipo de motivação – artística, política ou científica – te leva a inventar um objeto sensível à radioatividade?

Meu interesse por Chernobyl começou porque eu achava impressionante imaginar esse lugar assolado por um mal que está em todo lugar, mas é invisível. Achei que seria interessante ir até lá e produzir imagens, mas comecei a me perguntar: que tipo de imagem específica eu poderia produzir daquilo? Eu não queria partir para uma forma de documentação tradicional, com imagens ilustrando um texto, mas queria mexer com a própria fabricação da imagem. Pensei o que aconteceria se a história e o contexto daquele lugar estivessem representados no processo de formação da imagem. Eu nunca tinha feito um paralelo direto com o início do cinema, mas é interessante pensar assim porque, em um dos desdobramentos do projeto, penso em justamente construir uma lanterna mágica. O cinema narrativo que conhecemos hoje é apenas uma forma de criar sentidos em imagem. Se olhamos para o início da história das imagens em movimento, há 8 mil formas de operar essas máquinas de visão e 8 mil formas de incutir sentidos em imagens. Então, adoro inventar coisas e brincar de cientista maluca, mas é claro que a motivação não é só técnica.

Essa sua verve de inventora já tinha aparecido antes?

Eu nunca tinha inventado um dispositivo de criar imagens, mas sim uma forma de dar a ver imagens de uma forma específica. No projeto do Camboja (88 de 14.000), eu construí uma máquina que fazia cair areia e projetei as imagens sobre uma cortina de areia. Mas a máquina só funcionou dois dias, durante o tempo da filmagem, depois quebrou. Era tudo muito precário. Mas as posturas conceituais dos dois projetos (Camboja e Chernobyl) são muito parecidas em minha busca por criar uma imagem específica de um lugar, procurando dar a ver sua particularidade. O trabalho do Camboja levanta uma questão totalmente documental, porque as imagens são documentais: são os prisioneiros do Khmer Vermelho. Minha questão era: como dar a ver aquelas imagens de uma forma específica, denotando o contexto em que aquilo foi produzido? Em Chernobyl, me interessava o fato do lugar ser vazio, mas pleno de algo invisível. Então, me ocorreu que a questão central era justamente de visibilidade. De início pensei em visibilidade física, por causa dessa energia que está em todo lugar mas não é vista, mas isso acaba tocando outras camadas de visibilidade social e política.

Uma fotografia do invisível pode ser considerada uma fotografia documental?

Acho que de alguma forma ela documenta, sim. Sou a primeira e provavelmente a única artista no IRD (Instituto de Radioproteção e Dosimetria), entre físicos, engenheiros. No início, eles acharam meus experimentos engraçados. Mas já há vários deles interessados em refazer o meu experimento, com bases científicas, hiperorganizadas. Porque o que eu faço, faço para ter um resultado visual, o que é interpretado por eles como um documento.

Esse me parece um projeto de documentação bastante complexo, porque tem como foco duas categorias de registro: o registro da radioatividade emitida pela matéria e o “registro político da cidade fantasma”, como você colocou em uma entrevista. O registro da cidade fantasma acontece em vídeo e em anotações publicadas em forma de diário, no blog. Você produz um relato na primeira pessoa que me parece realizar uma vertente contemporânea da antiga categoria dos filmes de viagem.

Eu não tinha imaginado fazer um blog, foi um convite do Jornal do Brasil. Eu nem gosto de blog, tinha um pouco de preconceito com essa mídia. Mas, como esse projeto tem uma pesquisa imensa e todo um processo que decorre de uma decisão conceitual, achei que tinha a ver documentar. Então, digamos que essas imagens “mais tradicionais” documentam o processo. E o blog é o lugar para as minhas questões: como é que você penetra num lugar chamado “zona de exclusão”, que, por definição, é um lugar que te exclui? Não sei, só tateando, não tenho respostas. O projeto todo vai se construindo na medida em que vai se desenvolvendo. É um experimento empírico. Por isso achei que tinha tudo a ver fazer um diário. Os exploradores já tinham essa tradição de documentar o processo, eles faziam em formato de livro. Li o diário do Darwin: ele ficou cinco anos morando num navio, explorando o mundo e, só daí, concluiu a Teoria da Evolução. Tudo aconteceu em percurso. O processo é um pulo no desconhecido.

A democratização das tecnologias da imagem tirou do fotógrafo-viajante do século 19, ou mesmo do fotojornalista do século 20, a exclusividade da cobertura dos fatos distantes do mundo.

E como tudo é uma questão de testemunho, pouco importa se está bem enquadrado ou fora de foco.

Hoje todo mundo viaja e todo mundo fotografa tudo. Sobraram poucos lugares a que poucos têm acesso. Teu projeto tem essa particularidade: você encontrou uma forma de entrar em um território em que ninguém entra e trazer um relato de lá. E depois de superar toda dificuldade de penetração, você ainda inventa um novo modelo de documentação. Você está dando um novo sentido a atividades que tinham ficado obsoletas?

Eu realmente tenho interesse por esses lugares não-vistos, ou inacessíveis. As fronteiras, as terras-de-ninguém. Por causa desse interesse, comecei a pensar em campos minados, que são espaços inacessíveis fisicamente, em que realmente ninguém entra. Daí usei a imagem do Robert Capa, no projeto Dízima periódica. A última imagem que ele produziu em vida foi a de um campo minado, na Ásia, momentos antes de pisar em uma mina. Nos meus trabalhos, há várias imagens que remetem ao impenetrável.

Em 88 de 14.000, ao projetar as imagens dos prisioneiros cambojanos sobre uma tela de areia, você se refere ao tempo contido nas imagens?

Sim, essas são as últimas imagens que foram feitas dessas pessoas em vida. A S-21 era uma prisão de extermínio do Khmer Vermelho. Eles tentavam ser altamente organizados e fotografavam todos que entravam lá. As fotos têm o nome da pessoa e a data de entrada na prisão. Essas estão entre aquelas imagens de horror de que falávamos. São imagens horríveis. Só não são explícitas, como mães com crianças mortas. Então, minha questão aqui era como dar a ver essas imagens, de uma forma significante, que trouxesse a força, o sentido da história. Mas sem fazer isso de uma forma ilustrativa, como num documentário ruim.

A idéia de “dar a ver” está incutida entre funções do documentário clássico, já que “docere” (dar a ver, mostrar, revelar), em latim, é a origem da palavra documento.

Contar uma história de forma narrativa, como no cinema, é só uma das formas possíveis de dar a ver. Seis mil pessoas foram fotografadas e tiveram as datas de entrada registradas. Pensei em descobrir as datas de execução dessas pessoas. Então, esse trabalho lidava também com o que separa um ponto e outro e se aproxima dos trabalhos da Dízima.

Os tempos de projeção de cada imagem variam de acordo com o tempo de vida?

Sim, de acordo com um parâmetro inicial, eu queria que todas as imagens fossem visíveis. Então, peguei todos os negativos originais (que hoje estão no Museu do Genocídio, no local da antiga prisão, e ficam ao deus-dará, mofando, porque o Camboja é uma bagunça), fiz ampliações novas e fiz uma pesquisa sobre as datas da execução no Centro de Pesquisa do Genocídio (que é mantido na capital do Camboja, pela Universidade de Yale). Das 6 mil imagens, achei 88 datas de entrada e saída. A areia, então, é uma forma de marcar o tempo. A duração é questão central do vídeo: um dia equivale a um quilo de areia. Então, há um tanto de areia específico para cada pessoa. A idéia era realmente criar uma implicação para imagens que vemos de forma obscena, entre o comercial de pasta de dente e a novela das oito. Eu espero que elas possam ser realmente experimentadas.

Observo em vários de seus projetos uma vontade de se debruçar sobre momentos da história. A história é outra motivação?

Principalmente a memória. Meu trabalho também é permeado por questões políticas extremas, que acabam em tragédias. Uma vez me perguntaram porque eu não trabalhava com o 11 de Setembro. Eu acho complicado: primeiro, porque o evento está aqui na nossa cara. Depois, a gente vê isso em todas as mídias, por todos os lados. Há tanta imagem, que causa indigestão. É como as imagens de horror do fotojornalismo: a mãe segurando a filha morta, na capa da Veja. Há uma certa obscenidade, essas imagens só têm valor no momento. Logo passa o comercial de pasta de dente, a gente vai jantar e nem parece que acabou de ver uma coisa tremendamente horrível. Você é atirado a uma posição passiva. Mas qual a real implicação daquilo a que você acaba de assistir?

É papel do artista pensar a real implicação dessas imagens?

Nós, artistas, não estamos produzindo imagens e olhando para o mundo? Aqui há uma questão de presença: como você olha. Comecei a me interessar pelos eventos que são esquecidos. As implicações do Khmer Vermelho ainda são muito presentes no Camboja e conformam grande parte da realidade social de um lugar que é totalmente fodido, mas não estão em capa de jornal e ninguém fala sobre isso. Chernobyl é mais ou menos a mesma coisa. Com a diferença que, no Camboja, eu abordo um evento que já aconteceu e que deixou suas marcas. Já a contaminação em Chernobyl é presente. Então, respondendo à pergunta (sobre a motivação na história): é mais uma questão de pensar como nos relacionamos hoje com o nosso passado. É uma questão de responsabilidade. Eu não agüento olhar para essas imagens e, por não ter escolha, concordar com a forma de condução que está sendo feita. Não, eu não quero assim.

Mas então por que não enfrentar um fato vivido recentemente?

Não sei responder a isso ainda. Mas acho que temos que tomar muito cuidado. Morei um tempo na Finlândia, fazendo uma residência num centro de arte contemporânea, e lá alguns colegas eram artistas europeus. Todos, absolutamente todos, faziam um trabalho de arte contemporânea de cunho social, quase no limite da assistência social. Eu ficava um pouco preocupada com isso, porque parecia uma postura de alívio de culpa: vários deles vinham de países riquíssimos, que engendram essa situação geopolítica na qual estamos hoje, e faziam trabalhos com comunidades pobres, sem querer impor a elas uma “forma branca de supremacia ocidental”, acreditando que a arte contemporânea seria uma parada elitista. Cuidado: elitista é quem acha isso. É quem acha que, só porque o outro sujeito saiu da favela e não tem o mesmo acesso à cultura que a gente tem, não pode entrar em conexão com um fenômeno que está acontecendo na frente dele. Eu espero poder tocar em questões políticas de uma forma responsável.

Na escolha dos temas, você não se reporta só a acontecimentos passados, mas também distantes. Por que não se remeter ao que acontece ao lado? Não teve interesse em pensar o acidente radioativo de Goiânia, por exemplo?

Sim! Goiânia é sempre muito presente nas discussões sobre o Projeto Chernobyl no IRD. Até porque a contaminação em Goiânia foi causada pelo mesmo elemento que hoje é o mais presente em Chernobyl, o Césio 137. Se esforços não forem feitos na tentativa de “limpar” o lugar, serão anos e anos, no mínimo 300, até que possa ser habitável de novo. Chernobyl foi realmente um desastre, e a contaminação que se dá quando um acidente desse porte acontece é muito extensiva. Já o caso de Goiânia foi diferente, não tem nem comparação, ainda bem. Explicando com os meus parcos conhecimentos, foi mais ou menos isso: as pessoas arrombaram um cofre de chumbo de uma fonte de Cs 137 que estava dentro de um aparelho de radiografia abandonado (sempre fico pasma, como assim “abandonado”??!!). O Cs 137 dentro desta fonte estava na forma de um pó azul brilhante (brilha no escuro). As pessoas não tinham idéia do que era e esfregaram na pele, comeram (!!!) e saíram carregando por aí. Causando contaminação externa e interna. Essas pessoas tiveram índice de contaminação altíssimo e ficaram muito mal, ou morreram. Mas apenas essas. De resto, na época do acidente, a área onde essas pessoas moravam e as vizinhanças foram isoladas e todos os objetos, roupas, etc. foi tudo apreendido e analisado para checar se estavam contaminados. O solo do lugar também foi analisado, mas não teve mudança significativa. Meu orientador e vários outros lá do IRD trabalharam na limpeza de Goiânia. E ainda choveu nos dias seguintes à contaminação, espalhando e diluindo tudo. Como a quantidade de Cs 137 era pouca (nem se compara com a do reator), além de ter sido limpo em alguma medida já na época, o resto foi meio que diluído na natureza. Por isso, lá não tem uma “zona de exclusão” como em Chernobyl. Eu poderia tentar, em Goiânia, conseguir imagens com meu pin-hole de chumbo de partes onde se tivesse uma idéia que ainda há contaminação. Também poderia tentar conseguir uma imagem do Pão de Açúcar, que é uma rocha naturalmente radioativa. Mas como é muito pouco radioativa, iria demorar anos para fazer uma imagem, sem garantia nenhuma de que saísse alguma coisa mesmo depois de muito tempo de exposição.

Ao preservar o interesse em como abordar o “outro”, o documentário se reporta a estratégias da antropologia. No Projeto Chernobyl você se confronta com a ausência desse “outro”. Com que alteridade está trabalhando?

Nem eu sei. Essa alteridade deverá se constituir na medida em que eu olhar para ela. Em física, diz-se que um fenômeno só acontece se há um observador olhando para ele. É por aí.

O vídeo Ínterim/auto-retrato, em que você traça o percurso de seu rosto até o rosto de sua irmã gêmea, está longe de ser documental. Mas ele compartilha com o documentário uma indagação sobre os limites entre eu e o outro.

Vejo também uma conexão dessa questão com o projeto Dízima periódica. Esse é o campo, na matemática, que investiga justamente a extensão do limite entre um ponto e outro. Isso é um buraco negro, um problema que na matemática não conseguem explicar: como é que o 0,9999 infinitamente vira o 1. Em Ínterim, estava tentando olhar para a questão da identidade e do auto-retrato: é claro que há infinitas formas de definir a identidade de uma pessoa. Mas aqui eu fui tentar examinar todas as possibilidades que eu poderia ter sido até chegar a ser a minha irmã gêmea. Cheguei a tantas quantas o meu programa de computador conseguiu criar.