Ensaio Daniela Bousso, 05/2007

Da imagem fotográfica à imagem em movimento: Rosângela

A obra de Rosângela Rennó integra um eixo contemporâneo de ação artística que opera relações de trânsito e simultaneidade em espaços coletivos e colaborativos que colocam em debate os clichês da sociedade globalizada. A artista cria a metáfora do nosso tempo por meio da produção de múltiplos sentidos e aciona incessantemente a participação do espectador.

É dentro da idéia de modernidade líquida, formulada por Zygmunt Bauman,* que podemos referenciar essa obra, cujo teor sociopolítico vem em clima de denúncia – sem pretender ser porta-voz da diferença – e provoca uma fricção em reação imediata à nossa condição líquida e fluida. Como diria Bauman, “líquido” é um conceito que define a oposição à idéia de fixidez e de peso da modernidade. A mudança da nossa noção de espaço e tempo deve–se a uma circunstância de sobreposição e instabilidade, que vem ocorrendo desde o início do século 20 e que tem se acirrado na virada do milênio. Na atualidade, estamos diante de uma situação universal em trânsito, feita consecutivamente de aceleração e amnésia, e que promove o apagamento da memória.

O assunto “esquecimento e amnésia” tem sido um foco privilegiado de discussão no campo da arte a partir do advento da globalização no planeta. O uso de jogos que alternam o ficcional e o real produz o que atualmente chamamos de “modo documental” na arte, que encontramos nas obras de artistas como Walid Raad, a jovem Alice Miceli e outros, além da própria Rosângela. Cabe, então, indagar como esta artista tem potencializado essa discussão.

Eu diria que a obra de Rennó constitui uma espécie de “Arquivo vivo”. Arquivo como fonte de resgate da memória, para a construção da história e como estratégia de combate à amnésia. Aqui, arrisco não me deter na descrição da sua obra – desdobrada por mais de vinte anos em arquivos, coleções, bibliotecas, diários, arquivística e vídeos, a partir de fotos, instalações, filmes e objetos – para tentar adentrar o seu percurso em relação à imagem.

Parece certo que o seu interesse não se atém somente ao campo da fotografia. Tanto é assim que era difícil nomear a sua atividade. Se lhe perguntássemos se era fotógrafa, rapidamente ela se esquivava dessa nomenclatura; ela se dizia artista e fazia a diferenciação entre a sua atitude e a dos fotógrafos tradicionais. Penso que o compromisso de Rennó é com a trajetória da imagem e que ela rastreia um percurso que vem da fotografia à imagem em movimento, alcançando a experiência cinemática e atualizando-a por meio do que hoje denominamos Transcinemas ou cinemas do futuro.

Segundo Kátia Maciel, que cunhou esse termo juntamente com André Parente, Transcinema é “o cinema como interface, isto é, como uma superfície em que podemos ir através” [...] “A invenção do espaço tridimensional renascentista, a ruptura com este espaço pela modernidade e a criação do espaço imersivo na contemporaneidade indicam o movimento desta idéia no tempo” [...] “se pensarmos na maneira como, no Brasil, o Neoconcretismo problematiza a quebra da moldura e a espacialização da pintura, esclarecemos um processo que irá resultar na inclusão do espectador na obra” [...] “a variedade de formas a que chamamos de Transcinemas produz uma imagem – relação que se constitui a partir de um observador implicado em seu processo de recepção. É a este espectador tornado participador que cabe a articulação entre os elementos propostos e é nesta relação que se estabelece um modelo possível de situação a ser vivida” [...] “não é o artista que define o que é a obra, nem mesmo o sujeito implicado, mas é a relação entre estes termos que institui a forma sensível. É a este cinema relação criado de situações de luz e movimento em superfícies híbridas que chamamos de Transcinema.”**

A obra de Rennó situa-se no campo dos deslocamentos e dos territórios expandidos, dos desígnios e percursos que, se não cabem na discussão dos meios ou das mídias, ocupam lugares não específicos, espaços intersticiais e de indeterminação, nos quais o espectador, ao modo já proposto por Oiticica, transforma-se em participador da obra. Em qualquer um dos meios em que opera, do colecionismo fotográfico às videoinstalações e às experiências com filmes, o grau de completude da obra dependerá da relação de alteridade, de um “outro” co–autor, de um desencadeamento mental-imagético, para que a obra cumpra a sua função e atinja a sua máxima poética, que é o vislumbre do devir.

Isso significa operar em tal grau de tensão a ponto de modificar o destino das imagens (devir) encontradas em álbuns de família rastreados em brechós, em arquivos prisionais. Visa a apropriação, o deslocamento e a ressignificação destes, a partir de um ato de intervenção da artista que pressupõe a reintervenção do “outro”. Por trás da aparente obsessão de colecionar e arquivar, revela-se a presença constante que é, em última análise, o fio condutor de toda a sua trajetória: a narrativa. Em tudo ela se metamorfoseia, desde as operações com o próprio meio fotográfico até seus mais recentes experimentos com filmes. Interessam os desencadeamentos provocados no perceptum do observador quando em contato com a obra.

Ao constituir novas narrativas que criam imaginários cinemáticos, a obra nos alcança em nossa dimensão corpórea, herança do minimalismo e do próprio percurso das instalações a partir dos anos 1990 na arte. É quando o cinema evolui para a interatividade, configurando a idéia de Transcinema. A ênfase na evolução do cinema – caracterizada desde os anos 1960 pelo movimento do cinema expandido ligado ao experimentalismo, que altera a condição clássica de recepção de filmes: película e platéia/recepção passiva – transparece em Experiência de cinema.

Nesta obra, quatro seqüências de imagens intermitentes aparecem e desaparecem. A projeção em uma cortina de fumaça que movimenta imagens em gelo seco é criada a partir de fotos de arquivo organizadas em quatro seqüências fílmicas, com oito segundos de duração cada. A instalação conta com a espacialidade das videoinstalações, mas a materialidade efêmera das imagens em movimento projetadas constitui uma espécie de tela volátil. A cortina de fumaça evoca a condição fantasmagórica das lanternas mágicas do século 17 e remonta aos primórdios da história do cinema.

Curiosamente, Rennó trabalha com quatro gêneros do cinema nestas seqüências: amor, família, filme de guerra e policial, cada uma com 31 fotografias. O jogo ficcional entre amor e morte permanece como integrante de sua obra, juntamente com a narrativa. O que nos intriga é perceber como estes quatro gêneros soam como clichês da crise no mundo contemporâneo. Existe algo mais assustador e, finalmente, mais recorrente do que a idéia da morte e da impossibilidade do amor romântico, das relações familiares ou grupais na modernidade líquida?

Segundo Bauman, os padrões de liquefação hoje se deslocaram do campo político para o da vida privada, e os laços de dependência e interação vêm sendo sistematicamente negados, justamente para não manterem a sua forma por um tempo estendido: tudo tende a se desfazer de forma a se tornar fluido. Tudo que é fluido escorre e se dilui, nos escapa, mas também não nos compromete. E, quanto aos clichês da guerra e da violência, ainda que postos sob forma de vigilância e punição, não estaria Rosângela, em última instância, encetando um discurso sobre a opressão? A cada seqüência que some na fumaça, não estamos sendo colocados diante do inevitável escape, da inexorável evanescência de tudo que nos concerne em tempos atuais?

As aparições e desaparições das seqüências cinemáticas colocam o público em um tipo de experiência única, onde a intermitência e a interrupção, além de provocarem no espectador a sensação de estar diante do fugaz, daquilo que escapa sem possibilidade deste intervir, o faz lidar com um momento de suspensão e estranhamento. Aí é que a artista opera um mecanismo extremamente sofisticado no jogo da percepção. O intervalo de tempo entre uma seqüência e outra nos traz a sensação do apagamento, da perda de algo que permanece em nível subliminar; ficamos, de súbito, diante do impalpável e do inefável, eis a crueldade desta forma de opressão: quando sentimos que vamos perder algo ou que este algo vai se apagar e se perder no túnel do tempo, aí é que queremos reter este algo que se esvai antes que possamos compreendê-lo ou sequer tocá-lo.

Em Experiência de cinema, não é a amnésia em si que nos causa assombro, mas a impossibilidade de detê-la, a sua irreversibilidade. Tudo isso sem falar no caráter inovador do experimento com uma outra forma de fazer cinema, este cinema expandido ou Transcinema, almejado desde o Surrealismo, passando pelo cinema experimental dos anos 1960 e finalmente chegando à relação de interatividade com o participador entre os anos 1990 e 2000.

Afora isso tudo, Rennó ainda cria uma situação de suspensão e suspense que chega a nos lembrar filmes como O discreto charme da burguesia e O fantasma da liberdade, de Luis Buñuel, onde a dissociação de fatos e realidades provoca em nós a sensação de termos que remontar um quebra-cabeça para recompor o todo. A suspensão de temporalidades em Experiência de cinema não nos permite elaborar a narrativa, e a angústia da urgência por outra seqüência gera, no intervalo, um sentimento de desolamento e solidão. Novamente entra em jogo, agora pelo avesso, o combate ao apagamento e à amnésia, uma das máximas na poética desta artista.

Em tempo, arrisco pensar que os arquivos, as bibliotecas, as coleções, os álbuns, os personagens “trouvés” de Rosângela Rennó vêm vindo, há mais de duas décadas, para integrar uma grande narrativa, ainda que desconstruída. O seu percurso em relação à imagem não se atém à condição poética; há uma investigação formal que desembocou na experiência da imagem em movimento. O “Arquivo vivo” de Rennó é mais que um testemunho transgeneracional, pois tem no centro dos seus experimentos a interatividade e a força sensória da imagem-relação. Já é, como diriam os cariocas. Sempre foi e já é Transcinema.

Daniela Bousso é doutora em artes visuais, comunicação e semiótica. Dirige o Paço das Artes, em São Paulo, desde 1997, e é curadora do Prêmio Sergio Motta de arte eletrônica, que criou em 2000. Entre seus trabalhos como curadora destacam-se as exposições Excesso (1996), Arte e Tecnologia (1998), Por que Duchamp? (1999-2000), Metacorpos (2003) e Ocupação (2005), todas no Paço das Artes, São Paulo; as Salas Denis Oppenheim e Tony Oursler, na 24ª Bienal de São Paulo (1998); a Sala Especial Rafael França na Bienal do Mercosul (2001), Porto Alegre; e a 3ª Paralela à Bienal (2006), São Paulo. Com artigos publicados em revistas de arte, editou os livros Artur Barrio: a metáfora dos fluxos 2000/1968 e Intimidade, pelo Paço das Artes. Especialista em planejamento e estratégia de políticas públicas para a arte contemporânea e arte tecnologia, organizou o I Simpósio Internacional de Arte Contemporânea Padrões aos pedaços, o pensamento contemporâneo na arte, no Paço das Artes (2005).

* BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

** MACIEL, Kátia. Transcinema e a estética da interrupção em limiares da imagem, Antonio Fatorelli e Fernando Bruno, (org.), Rio de Janeiro: Maud, 2006.