Ensaio Jacqueline Lacasa, 2007

Às vezes me sinto feliz

“Às vezes sinto uma felicidade prazerosa e macabra, muito parecida à de Glenn Close cozinhando o coelho da filha de Michael Douglas.” Miss Tacuarembó, Dani Umpi

Montevidéu, 16 de junho de 2007, três da manhã. Acabo de chegar da casa de shows Central, onde havia uma festa-homenagem ao Pachamama, um dos clubes noturnos outrora emblemáticos da cidade. Dani Umpi aparece em cena junto a um grupo particular de pessoas que tensionam a percepção entre o que pode se denominar pop ou kitsch.

Don’t You Want Me, o hit do Human League na década de 1980, é a música eleita pelo Dani Umpi performer, e o público fica seduzido e à espera. Pouco depois, entra o grupo Palangano, vozes perfeitas, movimentos grotescos cuidadosamente projetados e um estado de emotividade que contagia, nem sempre presente na cena montevideana, caracterizada pela sobriedade e pelo recato, ainda que se trate de arte e de prazer.

Dani se sobressai por um momento, com seu corpo delineado, naturalmente caprichoso, dedica a canção a seus amigos e a todos os que participaram do Pachamama. Ao vê-lo sair do palco, pode-se pensar no improvável que é fixar Dani Umpi em apenas um clichê, porque ele possui a capacidade de se colocar em tantos quantos deseje ou em tantos quantos o espectador possa encaixá-lo.

A razão para essa mobilidade está longe do acaso. Corresponde, isso sim, ao fato de que o pilar que contém sua figura e estratégia conceitual se sustenta em muitos campos de produção que se vinculam por zonas de contato: melodrama, ambigüidade, ficção e cotidianidade abrem espaço a outros territórios possíveis.

Essas zonas têm uma interconexão precisa, funcionam como dispositivos carregados de afetividade e de conceitos que mobilizam a passividade do espectador. 

Alter ego

A obra de Daniel Umpiérrez é multinodal e rizomática. Seu posicionamento no campo artístico denota várias formas de operar dentro de uma estratégia conceitual que se consolida como work in progress. Não se pode fazer uma leitura só, sem pensar no vaso que se conecta a outro ponto da rede. 

Nelson Daniel Umpiérrez Núñez nasceu em Tacuarembó em 1974 e reside desde 1993 em Montevidéu, onde se formou bacharel em publicidade e comunicação artística e recreativa. Paralelamente a essa formação, foi desenvolvendo sua atividade como artista visual, integrando originalmente um grupo de ação artística denominado Movimiento Sexy, para depois continuar sua carreira de forma individual, navegando tanto no terreno da curadoria (um bom exemplo é a mostra Tics, no Cabildo de Montevideo, em 2004), quanto no da crítica, por meio de um de seus alter egos, a arquiteta Adriana Broadway.

Entre os nodos que podem ser freqüentados, também a escrita é um dos destaques. De suas obras narrativas, as três que até o momento ganharam edição são: Aún soltera (2003, Ediciones de Eloisa Cartonera, Buenos Aires), Miss Tacuarembó (2004, Interzona, Buenos Aires) e Sólo te quiero como amigo (2006, Interzona, Buenos Aires). 

Sua literatura propõe visitar micromundos a partir de uma técnica direta que reduz a distância com o leitor, em um estilo similar ao das telenovelas, o que tem levado a que o comparem a Manuel Puig, o conhecido escritor de, entre outras obras, O beijo da mulher-aranha. Também deu a conhecer sua poesia em edições da galeria bonaerense Belleza y Felicidad.

Em sua atividade como cantor, vem traçando um perfil único como performer. A mise-en-scène e a escolha das músicas criam, desde o álbum Perfecto, atmosferas insólitas e sedutoras que transitam do canto lírico à bossa nova, passando pelo pop internacional e o folclore. Nelson Daniel Umpiérrez Nuñez foi criando Dani Umpi: artista visual, cantor, escritor e performer; a arquiteta Adriana Broadway, crítica e curadora; e Nelson Nilson, estudante de arquitetura politicamente correto. Todos são integrantes e intérpretes desse maquinário de criação que poderia ser visto como uma grande telenovela.

Todos esses aspectos se fazem presentes nos vídeos selecionados para o FF>>Dossier – Ilarié, Compraré, Try to Remember, No hay cómplices, Zona urbana e Wonderland –, porque neles surge a faceta do performer que escolhe, com agudez, música e atmosfera, aproximando-nos de universos e situações que se movem ao ritmo das histórias que escapam de um aparelho de televisão.

Cotidianas

Em Ilarié, Dani Umpi intervém no Museo Juan Manuel Blanes, espaço destinado às belas artes e que contém um dos acervos mais importantes do Uruguai. Em suas paredes, a modernidade é uma via de acesso a um passado não tão distante. O artista se apropria do espaço museológico com certa irreverência, rompendo talvez o silêncio sacro que propõe o museu. Isso se denota não só na música de Xuxa, mas em sua própria vestimenta, uma palheta contundente de laranja forte que corta os eixos impostos pelo espaço.

O vídeo propõe um passeio duplo por um local que, de modo simbólico, estabelece a relação não-linear entre artista, espectador e espaço museológico. A câmera cria continuidade entre artista (que intercepta o olhar) e obra histórica. A mise-en-scène é anacrônica; os movimentos, a voz e a apropriação do espaço, com uma quota de capricho, revelam parte do que o artista desenvolverá nos anos seguintes.

Ficcionais

Compraré e Try to Remember são dois trabalhos que compartilham zonas de ficção. No primeiro vídeo, a cena se desenvolve na parte traseira de um carro, em que o cantor e membro do star system passeia em um conversível acompanhado de duas damas enquanto canta a balada de José Luis Perales. O passeio não acontece pela ampla avenida de uma grande cidade, a canção não tem glamour e as damas não se ajustam ao protótipo esperado. No entanto, a ficção se desenrola de forma completa e verossímil, como em um road movie cult.

Na segunda obra, o artista reitera sua chegada a um espaço em que a cenografia propõe contemplar o absurdo. A razão se valida na espera dos amigos em uma festa-surpresa, que o cumprimentam com bexigas, serpentinas e bolo de aniversário. A melodia se repete a cada cena, interpretada por um novo artista. O homenageado muda seu estilo e a surpresa a cada seqüência. A espontaneidade termina sendo um estímulo para o simulacro. Já não importa quantas homenagens possam ser feitas, tudo aponta para a “diferença e repetição” deleuziana, para poder indicar e pensar mais além do que se toma como previsível.

Formatos ambíguos

No hay cómplices é quase uma obra de music hall. Umpi se move dentro de um estrito registro estabelecido pela coreografia. Tudo se define com simetria, cada personagem está contido em sua função e cada peça cai em um lugar preciso. O artista põe corpo e voz, revelando uma personalidade mordaz e sensual, a serviço do prazer ou da loucura amorosa. Nesse jogo quase histérico, o alcance da perfeição formal da coreografia não impede que haja frescor e sedução.

Zona urbana potencializa a ambigüidade da proposta artística, já que é o registro do programa homônimo da TV aberta uruguaia. Para promover seu espetáculo, Dani Umpi apresenta, com o músico Adrián Soiza, uma performance na qual canta enquanto corta vegetais. Inesperadamente, começa a atirar os alimentos à equipe de jornalistas do programa. A apresentação culmina em batalha generalizada, até que os jornalistas deixem seu lugar de supostos espectadores. O vídeo gera todo tipo de questionamento: qual é a verdadeira performance? Qual é o papel do artista? Qual é a função dos meios de comunicação de massa? Sem dúvida, o registro é eloqüente, e Dani Umpi surge como um super-herói de série televisiva que luta por seu universo com armas tão particulares quanto certeiras.

Melodramáticas

Wonderland. Cada território tem suas próprias maravilhas, cada setor de produção intelectual ou artística também. Os ritos, as festas e as entregas de prêmios a determinada trajetória são, sem dúvida, uma tela para produzir e ser visto. Dani Umpi foi indicado para uma premiação como jovem revelação do ano. Isso o leva a participar de um evento que se realiza anualmente no Uruguai. 

Com glamour em escala montevideana, ou seja, com recato e discrição, os convidados vão chegando à festa. Umpi cumprimenta, circula e em seu braço leva o bracelete de Charly García “Say no more”. Senta-se à mesa e, a partir desse instante, a fronteira entre simulacro e verdade se dilui. Animando a festa, com a cumplicidade de muitos colegas, começa-se a exagerar a felicidade pela premiação do artista. Entre euforia e confusão, o objetivo é festejar Dani. 

A festa termina, o jovem sem seu prêmio se senta sozinho na escadaria de entrada do salão de festas. Ao filmar o próprio evento, o artista intervém no lugar público e nos meios de comunicação. Sem abandonar a ironia, se expõe, mas, sobretudo, expõe essa cenografia como criação e, portanto, ficcionaliza a crescente ilusão e a decepção, como em uma telenovela virtual.

Dândi Umpi

Slavoj Zizek denomina “imaginário virtual” a experiência fenomenológica que estrutura nossa relação com outras pessoas e objetos a partir da representação de imagens idealizadas que apagam elementos que tornariam insuportável ou impossível nossa experiência. Como exemplo, menciona que, quando interagimos com outra pessoa, nos esquecemos que o outro transpira ou sente fome. Dani Umpi exacerba o imaginário virtual até levá-lo ao limite. A solenidade é subvertida, o drama é convertido em espetáculo, e a felicidade é meramente outra categoria dentro do imaginário virtual. O frescor com que sabe se salvar desse labirinto lhe permite seguir o fio de Ariadne enquanto mantém conversações com Dionísio.

Nessa metamorfose programada, não há prévio aviso e as condições inverossímeis a que nos submete o artista dão lugar à criação de um universo com um imaginário particular, que filtra e desativa os dispositivos convencionais de assimilação da arte. Nesse território, Dani Umpi passeia como um dândi, distinguido por sua particular elegância, entre a cultura de consumo massivo e a imensa capacidade de indicar que a verdade (Zizek dixit) só pode ser alcançada adotando uma postura subjetiva, comprometida e parcial sobre a criação artística.

Crítica, curadora, jornalista de arte e artista plástica, Jacqueline Lacasa (Montevidéu, 1970) assumiu em 2007 a direção do Museu Nacional de Artes Visuais do Uruguai. À frente da instituição, está implementando seu projeto Museo Líquido, que inclui a criação de uma midiateca e a intensificação na recepção de artistas e mostras internacionais. Em 2006, coordenou a edição de Palimpsestos: escritos sobre arte contemporáneo uruguayo 1960-2006 - Cuadernos de arte contemporáneo, e esteve no encontro da Associação Internacional de Críticos de Arte em Paris. Formada em psicologia, integra a Associação Uruguaia de Críticos de Arte e a FAC - Fundação de Arte Contemporânea do país. Como artista, participou da 9ª Bienal de Havana (2006) e da Bienal de Arte do Mercosul de 2005 e criou o periódico La hija natural de JTG (Joaquín Torres García).