Biografia comentada Denise Mota, 10/2007

TRAJETÓRIA PROFISSIONAL

Na pátria de Joaquín Torres García (1874-1949) e ao abrigo da Cinemateca Uruguaya, duas das instituições artísticas mais nobres do pequeno país austral, a experiência pessoal de Martín Sastre – o reinterpretar constante da avalanche de conteúdos importados à luz do cotidiano e sob um filtro de saudável desconfiança (o artista diz que, desde pequeno, sempre sentiu que tudo a que assistia por meio de uma tela “era armado”, como conta na Entrevista para este Dossier) – desembocou em uma obra satírica, fiel aos mais mínimos detalhes que fazem a engrenagem midiática girar, triunfal, em todo o mundo e capaz de despertar empatia nos mais diversos (tele)espectadores, porque não prescinde das fantasias explícita ou implicitamente alimentadas pelo homem comum.

Torres García, criador do universalismo construtivo – doutrina estético-filosófica em que se interconectam princípios de proporção, unidade e estrutura, em busca de uma arte autoctonemente americana, “poderosa e virgem”, como definia o artista, teórico e professor –, foi quem ilustrou o hoje mais que conhecido conceito de reinterpretação histórica, ideológica e cultural da América do Sul a partir da representação do continente americano de ponta-cabeça, transcrita no mapa América invertida, que o mestre uruguaio desenvolveu nos anos 1940.

Meio século depois, Sastre atualiza essa proposição: inventa a Confederação de Nações Americanas, império sul-americano liderado pela Bolívia e que desbanca os Estados Unidos do posto de manda-chuva mundial após derrotá-lo na Batalha pelo Controle da Ficção. Bolivia 3: Confederation Next, título da saga, representou o Uruguai na 26ª Bienal de São Paulo, em 2004.

Da Cinemateca, Sastre absorveu todo o aprendizado que a organização destinou ao público infantil após o fim da ditadura no país, em 1985, estímulo mais do que explosivo para um fanático das telas, grandes ou pequenas, como se define o artista: “Sempre fui viciado em audiovisual. Se há uma imagem em movimento, aí estou, consumindo”.

Entre os primeiros experimentos em vídeo resultantes de uma infância e adolescência recheadas de imagens em movimento, surge The E! True Hollywood Story, trabalho de 2000 que em muitos aspectos já estabeleceria os elementos fundamentais de obras posteriores do artista: a emergência de sua condição como popstar, o protagonismo assumido nas narrativas, a revelação de alguma informação ou fato transformador e espetacular, a ponte que se estabelece entre o mundo doméstico e trivial do cidadão anônimo e a realidade de vaudeville inerente aos famosos.

Em The E! True Hollywood Story, Sastre explora o que há de sensacional ou inusitado em sua biografia – o fato de haver tomado gasolina quando bebê, a confusão entre a figura do Papa e a de um astro de rock – para criar uma espécie de introdução a uma personalidade fora do comum, genial e visionária, intrigante e sedutora, que se desdobrará em novas aventuras, sob fantásticas circunstâncias, nos vídeos seguintes.

O artista leva passagens de sua vida pessoal ao terreno da cultura de massas, reformulando-as com os apelos do pop, mas não só. Também dilui as fronteiras (se ainda as há) entre arte e cultura popular, massificando gêneros supostamente herméticos, como a performance ou a videoarte.

Um exemplo flagrante é o programa de televisão que conduziu na Espanha em 2003, onde deu vazão a toda a “cultura de sofá” acumulada durante anos de telespectador da TV argentina, apresentando-se com os trejeitos e estilos das divas eletrônicas do país vizinho.

A estética acompanhou outro feito concretizado nesse ano: o lançamento da The Martín Sastre Foundation for the Super Poor Art, criada para canalizar patrocínios a jovens artistas latino-americanos.

No vídeo homônimo de 2003, onde apresenta os objetivos e o funcionamento da organização, o autor aparece no paradigmático cubo branco da arte contemporânea, também vestido de branco e envolto em um colar de pérolas. A visão é a de um guru-mecenas que, no cume dos circuitos tradicionais da produção artística – espaço que conquistou graças a uma incomum sagacidade e apesar de vir do “quintal” sul-americano –, prepara, fomenta e opera a reformulação desse sistema ou ao menos a redistribuição igualitária das benesses contidas no reservatório de abundância do Primeiro Mundo. “Prada para todos”, deseja Sastre, em postura de oração.

Mais recentemente, os ricos e famosos britânicos vêm sendo alvo da atenção do artista. Em 2005, com Diana: The Rose Conspiracy, Sastre voltou à adolescência grunge no Uruguai da década de 1990 para contar como a princesa de Gales escapou aos maléficos planos dos “arquitetos” da ordem mundial e, ao contrário do que a humanidade pensa, vive e é feliz na periferia de Montevidéu.

No ano passado, o criador deu início ao registro de uma nova epopéia: trocar de identidade e viver no corpo de Robbie Williams, que por sua vez também viverá seus momentos de latino-americano. O vídeo, em conclusão, pode ser visto parcialmente no YouTube – hoje o Shangri-Lá da criatividade audiovisual para Sastre, o lugar onde passa horas navegando.

Além do término de Freaky Birthday, o artista também está trabalhando no projeto de um novo programa de televisão, território que já não lhe oferece novidades, mas no qual acredita que ainda existe espaço para criar. “Acho que já vi toda a TV que tinha que ver. O tipo de narrativa está ficando obsoleto. Tudo me parece lento e, depois de um tempo, me entedia. A TV me parece um meio estruturado demais – maquiagem, cabeleireiro, técnicos para tudo... por causa da publicidade, agora é um meio controlado, enquanto o YouTube é o oposto, é desestruturado, com frescor e com uma estética nerd que me interessa”, comenta Sastre. “De todas as formas, a televisão é um meio a investigar, em que ainda restam coisas a ser inventadas.”