Ensaio Ricardo Casas, 10/2007

Martín Sastre, autodidata

Nasceu no Hospital Britânico de Montevidéu, em uma sexta-feira, 13 de fevereiro de 1976, às 13h, aquário com ascendente em gêmeos, dragão no chinês. É o maior de três irmãos, atualmente vive na Espanha.

O cinema começa a existir por volta de 1885 e, quase simultaneamente, começam a ser vistos alguns filmes estranhos, que posteriormente foram chamados de “cinema experimental”. Muito vinculados à literatura, mais precisamente à poesia, tivemos nossos antecedentes uruguaios em Pupila al viento (1949), de Enrico Gras e Danilo Trelles, com Rafael Alberti declamando seu poema na trilha sonora. Depois, Largo pétalo, do arquiteto Alberto Mántaras, realizado em 1958 com Pablo Neruda em off e na tela. O cinema continua a ser escasso no Uruguai até que aparece o vídeo, em meados dos anos 1980, e, com ele, várias mudanças.

O que vinha sendo “experimental” se converte em “videoarte” e depois em “arte”. Sempre vinculado a outras artes, como se pedisse licença. Podemos mencionar algum trabalho de Hugo Ulibe e Guillermo Casanova para dar caminho a um grupo de realizadores, já mais ligados à plástica, inclusive à dança, que fundam o Nuva (Núcleo Uruguayo de Videoarte), na segunda metade dos anos 1970, do qual se destacam Fernando Alvarez Cozzi e Enrique Aguerre.

Esses jovens criadores se livram das amarras de toda a tendência anterior, e começam uma obra criativa e original, gerando um verdadeiro movimento artístico, com autonomia e rigor na utilização da linguagem audiovisual.

Entre os filhos do Nuva, podem-se mencionar Paula Delgado, Dani Umpi e Martín Sastre. Este último começa já de pequeno nos cursos de cinema para crianças que Eloy Yerle organizava na Cinemateca Uruguaya, depois passou pelo desenho, pela escultura e pela Faculdade de Arquitetura...

Em 1999, a Aliança Francesa de Montevidéu lhe pede para organizar uma instalação para uma mostra de videocriação. Consegue emprego na galeria da Aliança e daí divulga um press release anunciando que, por conta da morte de “Robert Quenedit”, “Jaquelín Quenedit” chegaria ao Uruguai como parte de uma turnê mundial para exorcizar a maldição da família. Conseguiu que alguns jornalistas solicitassem entrevistas com alguém que nunca desembarcaria, já que havia morrido anos antes.

Depois dessa intervenção midiática, obteve uma bolsa de estudos na França e, na volta a seu país, se dedicou seriamente à criação audiovisual, que o leva a dirigir vídeos ao chegar o início do século. Em 2000 apresenta The E! True Hollywood Story e Heidiboy, ao mesmo tempo em que expõe em Nova York Big, quisiera ser grande, chamando a atenção por sua originalidade e desembaraço, sobretudo ao se considerar que vinha de um país tão cinza e tão conservador como o Uruguai.

O vídeo é um falso documentário em que o autor é o entrevistado e termina por revelar-se um artista que surge da pobreza de seu povo para alcançar o cume de Hollywood. Uma espécie de ironia sobre a sua própria história, em que o artista força os extremos e converte o relato quase em comédia.

No ano seguinte, vêm Masturbated Virgin I, Masturbated Virgin II, Sor Kitty: The Missionary Nun. Sastre começa a utilizar os ídolos de nossos dias, de nossa querida sociedade de consumo, no caso, Britney Spears, então vivendo o drama de sua virgindade. Novamente o artista se coloca em primeira pessoa, agora já convertido em herói, uma espécie de apóstolo ou Superman doméstico capaz de salvar sua heroína. Sem recursos sofisticados, sai correndo pelas ruas com um cotonete gigante nas mãos.

Muito influenciado pelo pop, a proposta visual do artista não tem pudor. Com escassos suportes tecnológicos, ele recria um mundo de fantasia apelando para dados da realidade. E nos defronta com a outra face dessa realidade, tão frívola e cruel que nos recorda a Factory de Andy Warhol, ainda que no caso de Sastre sejam as próprias stars que aparecem na tela.

O humor é a chave para meter o bisturi em suas histórias. Elas conseguem a cumplicidade imediata do público, que desfruta de fazer parte desse mundo cheio de cor e de idéias visuais.

Nesse ponto, o artista chega a Madri, com uma bolsa da Fundação Carolina. Lá realiza La Trilogía Iberoamericana, integrada por Videoart: The Iberoamerican Legend; Montevideo: The Dark Side of the Pop; e Bolivia 3: Confederation Next. Já convertido em Walt Sastre, adentra o túnel do tempo para criar uma aula sobre a videoarte na América ibérica, uma espécie de cruzada épica nunca vista antes.

Uma história de sucesso na qual Hollywood se vê substituída pelo desagradável hiper-realismo dos meios de comunicação. Dentro de um gosto muito kitsch, desfilam personagens como Carmen Miranda, Kurt Cobain, George Bush, CNN, Ho Chi Minh e o próprio Martín Sastre, transformado no galã da hora, leia-se Tom Cruise ou Richard Gere em seus melhores momentos cinematográficos.

Na América Latina, segredos e mentiras vão definindo sua história. Os mais brilhantes expoentes do Centro Europeu de Inteligência são enviados para investigar, em Montevidéu, o segredo do sucesso de Martín Sastre. Os jovens experts descobrem uma cidade deserta e Sastre cantando karaokê pelas ruas. Uma história retrofuturista que fala de colonialismo ao revés, com fundo de quintal “sudaca” e financiamento europeu. Essa obra leva o artista a ganhar o Prêmio ARCO de Madri, aos 28 aninhos.

Bolivia 3 apresenta o duelo entre Martín Sastre, representante da Arte Ibero-Americana, e Matthew Barney, representante da Arte Norte-Americana. A metáfora dessa confrontação é a desigualdade entre os oponentes, uma espécie de Davi e Golias que não abandonam a luta.

Em Madri, Sastre teve um programa de televisão com entrevistas e ações performáticas, que por sua vez levavam o esquema televisivo aos territórios da arte. “Interessa-me expandir os limites, trabalhar sobre eles e dissolvê-los. Não estou de acordo com que se restrinja a arte, quando o restante das coisas se expande”, afirma.

E a ironia se apodera de nosso artista. Talvez com a perspectiva da velha Europa, cria o que batizou de The Martín Sastre Foundation for the Super Poor Art, exortando os mecenas do século 21 a adotar artistas latino-americanos, colocando-se novamente no lugar protagônico de um mundo que endeusa personagens por capricho, e não por talento.

Digamos que tenha terminado a crise de valores do século 20, quando a Bíblia era colocada ao lado do aquecedor, como diz o tango argentino Cambalache. Agora o jogo é outro: se você me agrada, eu compro. O site da Fundação é tão atraente, tão fino, tão sugestivo, que quase não delata a grande ironia de seu conteúdo. Ele seduz mais que ordena, porque tem a razão dos valentes, daqueles heróis puros de filmes dos anos 1940.

As exposições importantes vão acolhendo Martín, desde o Palais de Tokyo, em Paris, com sua obra Playlist, até a 26ª Bienal de São Paulo, em representação do Uruguai. Depois Dublin, Nova York, Edimburgo, Genebra, Sydney, Gênova, Xangai foram conhecendo uma série de obras que seguem inéditas em seu próprio país.

O reconhecimento internacional é sempre maior que o nacional, para todo artista uruguaio, uma regra que não se altera com o tempo. É que não há nem direitas nem esquerdas para o tratamento da arte em um “paizinho” como o nosso. Em 2005 estréia Diana: The Rose Conspiracy, durante a Bienal de Veneza, uma ficção em que pleiteia haver descoberto que Lady Di não morreu sob a ponte D’Alma de Paris, mas vive e está escondida em um bairro da periferia de Montevidéu. Uma irmandade secreta de freiras resolve resgatar Diana de Gales, seu membro mais importante.

Ela não fala, mas é vista com sacolas de compras nas ruas de um bairro pobre e comendo churros com um namorado mais jovem. Simultaneamente, vemos imagens de arquivo que as redes de notícias internacionais emitem, ao descobrir que a princesa não morreu. Nas palavras do autor, como A Bela Adormecida ou Branca de Neve, Diana devia escapar de seus inimigos, como quando as princesas dos contos de fada se escondiam dos malvados e terminavam em cabanas perdidas no bosque…

Nesse mesmo ano, a The Martín Sastre Foundation concede uma bolsa de estudos para Charlotte Seidel, Susi Pietsch e Annemarie Thiede, três artistas alemãs da Bauhaus de Weimar, para viver em Montevidéu através do programa Seja um artista latino-americano, criado pela Fundação.

Parece que a criatividade não tem limites para Martín Sastre, e o desafio é demonstrar que ainda há força no continente latino-americano, mais vontades que possibilidades, ainda que esse personagem se vire para conseguir o que quer. E é assim que chega à Inglaterra, em 2006, por meio de uma bolsa da Site Gallery, de Sheffield, para realizar o projeto Freaky Birthday, inspirado no filme de Hollywood Freaky Friday (Sexta-feira muito louca), em que uma jovem quer ocupar o corpo de sua mãe para conseguir entender como se vê o mundo a partir do lugar do outro. E Sastre descobre que nasceu no mesmo dia que Robbie Williams. Um sonho se converte em realidade, e Martín chega a conhecer a fama e o êxito de Robbie, viver na pele do outro com olhos de um artista latino-americano.

Sua relação com o “mundo real” tem várias arestas. Por exemplo, o trabalho com a banda espanhola de eletropop Fangoria (La mano en el fuego), a colaboração com o ator Nacho Vidal e a marca de roupa masculina EBP, além de vários clipes publicados no YouTube e uma longa lista de et ceteras.

Sastre não está alheio aos mitos contemporâneos. De Britney Spears a Paris Hilton, eles formam um discurso que lhe permite ironizar sobre este mundo em que nos cabe viver. A mundialização é um dado sempre presente em suas obras, desde os objetos que compõem seus desenhos até os fragmentos de filmes, documentários, ficção ou animação. Criam um mundo pós-industrial em que nada significa o que é, senão em função do contexto. Os sonhos se tornam realidade facilmente, bem como a fama, a possibilidade de se converter em estrela ou a possibilidade de se converter em artista latino-americano, ou seja, pobre. O pop aí é uma forma de ver o mundo, de ir além do que parece, de compor um espaço-tempo próximo à fantasia, essa fantasia que nos invade a partir das telas todo o tempo, distinta da realidade do noticiário.

“O Uruguai é um território pequeno que não tem uma cultura muito arraigada e autóctone. Um lugar de cruzamento entre o latino-americano como origem geográfica, a contribuição da imigração européia majoritária e a forte invasão da cultura norte-americana”, já disse Sastre.

Não é casual que Martín Sastre viva na pátria de Almodóvar. Também não por acaso sua fonte de inspiração continua a ser o Sul, Montevidéu, sua terra, essa que o expulsa, mas que lhe dá tantos temas para representar. Talvez esse garoto que aprendeu a decodificar imagens com Eloy Yerle esteja procurando um mito para acreditar, depois de se dar conta de que a fama é puro conto, divertindo-se como protagonista, herói de uma comédia humana que constrói a cada dia, enquanto prossegue na busca.

É que somos tão sérios, os uruguaios, que necessitamos de um espaço para tirar a máscara da transcendência e começar a desfrutar do humor de Martín, este que briga com o império, que descobre segredos de mitos (vivos e mortos), modesto a partir da soberba, que canta e dança como os grandes artistas e que nos aproxima de um universo onde tudo é possível. E, se não há dinheiro, fazemos do mesmo jeito, porque Martín é um gênio. “O avassalador registro do real por parte das redes de notícias (onde se percebe uma realidade simultaneamente destacada, ‘produzida’ e eventualmente gerada pelos meios) é simplesmente o primeiro sinal de um cataclismo de dimensões descomunais que demonstra o avanço do real sobre a fantasia. E o terror e o caos vieram com o advento da era Bush, quando as guerras transmitidas ao vivo pelas telas de nossos televisores e a onipresença das câmaras de vigilância produziram efeitos de realidade tão potentes que arruinaram Hollywood, a grande fábrica de sonhos”, afirma o artista.

Todos somos Gardel, todos somos Martín Sastre!

Obrigado, Martín.

Curador e cineasta, Ricardo Casas (Montevidéu, 1955) criou no Uruguai o Divercine - Festival Internacional de Cine para Niños y Jóvenes e o Iman – Instituto de Medios Audiovisuales para Niños y Jóvenes, e escreveu, com Graciela Dacosta, o livro Diez Años de Video Uruguayo (1995). Seu Palabras Verdaderas (2004), sobre Mario Benedetti, foi premiado como melhor documentário latino-americano no Festival de Lleida (Espanha). Em 2000, assumiu a vice-presidência da ASOPROD – Asociación de Productores y Realizadores de Cine y Video del Uruguay, que o reelegeu em 2005. Integra a Comissão Diretora da Cinemateca Uruguaya.