Biografia comentada Denise Mota, 10/2008

Há dez anos, Marcello Mercado deixou a Argentina e as preocupações de ordem pessoal e artística que seu país lhe inspirava para mergulhar no que descreve como “o controle das máquinas”. Do computador doméstico, evolui para um arsenal de ferramentas que dão suporte à complexidade e à ousadia experimental de uma obra marcada pelas conexões entre arte e ciência, pintura e genética, performance e tecnologia. 

Nascido no Chaco, o artista conheceu cedo as confluências entre vida, morte, ciência e tecnologia. O pai, médico, o levava a tiracolo em suas visitas a hospitais. “Vi situações extremas. Cheirei-as também.” Por sua parte, a mãe, bioquímica, despertou no garoto a tendência a perceber os fenômenos mais triviais a partir da ótica orgânica, ação-reação: “Se, depois de correr, me doíam as pernas, ela dizia: ‘Você acumulou ácido lático’.” 

Os experimentos químicos caseiros aliados ao conhecimento da dor e das misérias humanas vivenciadas nos corredores de instituições que refletiam o sempre problemático sistema público de saúde latino-americano resultaram em um “teatro bioquímico”. “É isso o que faço hoje. Se somarmos o rádio com transistores que eu escutava o dia inteiro, construí um mundo entre os 540-1.600 quilociclos que sobrevive até hoje.” 

As primeiras obras, realizadas na década de 1980, buscam temas como corrupção, burocracia, falhas éticas da política argentina, religiosidade, sexo e morte. É o que atestam vídeos como The Torment Zone (1992) e, posteriormente, The Warm Place (1998), em que extratos de passagens bíblicas acompanham imagens de cirurgiões e pacientes dentro da sala de operação. Ativismo político, elementos da cultura de massas, críticas a sistemas econômicos ineficientes e cenas de abatimento de galinhas cabem sob o peculiar guarda-chuva de associações proposto por Mercado. 

A performance se introduz logo em sua obra. Nos primeiros atos, se deixa flagrar reescrevendo textos ouvidos nos programas científicos a que assistia pela televisão. Depois, desenvolve uma série de leituras dirigidas a animais e a cadáveres, e realiza várias delas durante cirurgias. A performance em que lê escritos de Karl Marx enquanto visita um parque de diversões dá origem ao vídeo Das Kapital (2004). No trabalho, que acaba de ganhar novos oitenta minutos, Mercado faz uma leitura da obra do pensador alemão a partir de uma ótica biológica e digital. 

A Alemanha foi o marco da inflexão ocorrida na trajetória do artista. Convidado para trabalhar na Academia de Mídias de Colônia em 1998, viu-se diante de um aparato que expandia imensamente seu universo de ferramentas, composto, até ali, por um computador caseiro. “Ali aconteceu uma enorme transformação cultural, ali mudou meu sistema de produção. A tecnologia me permitiu fazer o que eu queria e muito mais.” 

Contornar a “enorme angústia de aprender a manipular todas aquelas máquinas” equivaleu a criar um método próprio de aprendizado. Com desenhos e anotações, o artista destrincha o leque de possibilidades aberto pelos computadores. No processo, deixa para trás as mazelas da terra natal e avança na exploração dos elementos de pesquisa com que se sente à vontade desde a infância, os princípios matemáticos e bioquímicos. 

A eles, alia elementos do universo que conforma suas ambições hoje: desafios propostos pela tecnologia, visões alternativas de teorias político-econômicas e investigações com materiais orgânicos submetidos a intervenções eletrônicas e digitais. Essa fase se reflete em trabalhos como Das Kapital e The Chemical and Physical Perception in the Eye of the Cat, in the Moment of the Cut, criação desenvolvida a partir de mecanismos de transmissão da dor e premiada durante o 16º Videobrasil (2007). 

Mais recentemente, o artista explora uma vertente de expressão que descreve como pintura experimental. São trabalhos feitos em laboratório, que envolvem o uso de DNA, e que também podem combinar seus experimentos de bioarte com pintura tradicional. Entre as mais recentes, está Cabeza (2006), que pode ser vista clicando aqui 

No momento, o artista realiza a reedição de 25 de seus primeiros vídeos e prepara para 2009 uma instalação que envolve elementos de obras anteriores. Para o ano que vem, também desenvolve um projeto de “bioarte-performance” a ser feito em um “laboratório de alta tecnologia”. 

O futuro, aos micróbios pertence. A partir da afirmação de que está “evoluindo rumo a um ecossistema” dominado por esses organismos, assertiva que costuma acompanhar seus escritos, Mercado se explica: “A virulência dos micróbios combinada com a virulência de nossa ignorância é uma forma possível de futuro. Nós somos milhares de anos, e os micróbios são uma forma de eternidade. Ou seja, no fundo, sou otimista”.