Curadoria convidada |

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Obras

Texto de curadoria Christopher Cozier, 2003

Impressões aleatórias, locais aleatórios

Há algo de muito excitante em conseguir trabalhar por conta própria sem ter o peso de convenções acadêmicas ou expectativas críticas que podem ser levadas demasiado a sério quando se continua fazendo ou observando algo no mundo ao redor. A pessoa se sente um tanto à deriva, mas ao mesmo tempo liberada e capaz. Em sua mente, a pessoa desconfia que o trabalho poderia ser sobre quem ela é e não sobre o que ela representa nessas outras narrativas. A introspecção se torna desafiadora, em vez de passiva, e observações aleatórias se tornam estratégicas. O que está se tentando é des-ver e ver ao mesmo tempo.

A sociedade caribenha pode ser considerada um dos primeiros locais de construção colonial neste hemisfério. O começo de uma certa relação problemática com a mitologia da Modernidade na qual ainda somos percebidos como unidades de mão-de-obra ou como unidades de consumo na conversação global. É justamente por isso que esses locais industriais foram fundados. Pouca coisa além era/é exigida ou esperada.

A partir do final dos anos 1970, a antena de satélite ganhou tanto destaque na paisagem quanto o sempre representado coqueiro. Um foi trazido para nossas praias por barcos ou pelas ondas via correntes globais mudando nossa paisagem física para se transformar num enganoso símbolo do “Tropical” e de todas as suas indulgências; o outro chegou através da mídia eletrônica atual, das ondas do ar. Mas isso não é novidade para qualquer um que tenha navegado pela arena da pós-“adequação estrutural” com sua escolha ampla e prontamente disponível de canais a cabo, assim como de armas automáticas.

Quando tive de escrever este texto fiquei imediatamente aturdido. Se eu parasse para olhar, a coisa continuava se mexendo. Ilhas são circunstâncias fluidas. Elas continuam sendo locais em que o insulamento e o isolamento se cruzam e negociam com a abertura e a confluência com o mundo mais amplo, tudo ao mesmo tempo. Rios deságuam nos mares abertos, os ventos e as ondas atuam nas praias. Barcos, aviões e pessoas vêm e vão todo dia. Toda vez que alguém decide escrever alguma coisa há a sensação de que a circunstância está mudando.

Em conseqüência, não é de surpreender que haja uma grande produção de vídeo e tecnologia numa ilha como Trinidad, onde eu moro, por exemplo, e na maioria das ilhas do sul do Caribe. Cada ilha tem muitas produtoras e pelo menos uma ou duas emissoras de televisão e até mais. A maioria delas é de propriedade privada ou parcialmente estatal. A maior parte da produção se concentra em objetivos estatais guiados pelo regime político do momento e, de forma pesada, por agências de publicidade para a propagação de marcas locais e internacionais.

Há o ocasional clipe para o músico local, o espetáculo de beleza ou concurso de talentos, os noticiários, as tentativas de produzir novelas locais e os costumeiras súplicas/queixas por apoio de produtoras locais de vídeo e cinema. A maior parte disso teve início do início a meados dos anos 1960 porque, com a Independência, veio a televisão como nossa janela para o mundo exterior e com ele vieram mais instruções relativas a Desenvolvimento e Modernidade.

Há escassez de espaço e apoio para a produção de vídeo fora desses domínios aceitos de racionalização. Não há espaço para o sonho. Não há espaço algum, legitimador ou legitimado, para ver ou para contar uma história. Isso não é visto como necessário. Não há locais formais ou informais para que isso ocorra ou seja disseminado. Na mesma medida em que a tecnologia para produzir trabalhos em vídeo se torna cada vez mais acessível por meio de câmeras digitais e softwares mais baratos, o espaço para esse trabalho continua física e criticamente remoto e inacessível. Há os ocasionais festivais de cinema locais que exibem vídeos nos intervalos, mas a maior parte desse trabalho é vista fora das ilhas, em situações como o Videobrasil.

Na verdade, esses artistas aqui apresentados não estão muito familiarizados uns com os outros nem com o trabalho de cada um. Apenas um deles tem treinamento formal em produção de cinema e vídeo e, assim, tem um público cativo por trabalhar para a mídia estatal onde ele vive. Isso significa que as ligações, as conversas e as narrativas que estão se desenredando nesses trabalhos só agora estão ocorrendo para todos nós, até para mim, no processo de montar este projeto. O que esses artistas têm em comum é a similaridade das condições em que operam. Suas respostas têm menos a ver com representação, e sim com articular a si mesmos com a tecnologia disponível. Uma perspectiva crítica se molda em conseqüência de suas investigações.

Há pouco anos o artista de Trinidad Mario Lewis fez um implante de lentes para corrigir um problema de visão. Enquanto fazia uma série de exames médicos, ele começou a ver sua situação em termos metafóricos. O uso de sua própria experiência pessoal como uma metáfora e de seu “eu” como signo não é uma abordagem que podemos considerar corriqueira numa sociedade tão em desacordo com a imagem de seu eu. O que devemos fazer com a idéia do “ponto cego” que é título de uma de suas mostras? Conforme disse o artista, “uma área privada de visão ou entendimento”, na qual nós sofremos “a incapacidade de reconhecer ou reagir coerentemente e/ou efetivamente?”.

Assim, nós nos tornamos parte de seu “exame visual”, no qual ele queria “conduzir o espectador a uma introspecção crítica”, a um espaço onde nossa “percepção visual e condicionamento sociológico” fossem questionados. A imagem do artista tendo seus olhos testados remete à imagem feita por Rodchenko de Osip Brik, como também a “Máscaras e Espelhos” de Lygia Clark, assim posicionando seu processo de investigação no ponto em que ele se cruza com narrativas diversas, porém interligadas. Lewis documentou pessoas e espaços em Cuba e nos Estados Unidos em seus dias da independência e respectivas revoluções e eles se fundem uns nos outros de maneiras desorientadoras.

Natalie Butler, da Jamaica, questiona por meio de suas investigações em vídeo: “De que modo nos ligamos com o que está à nossa volta? Geralmente nos movimentamos com demasiada rapidez e nossos sentidos estão sobrecarregados demais para que possamos digerir adequadamente o que está por aí o tempo todo. Desacelerar, usando a tecnologia mais para observar do que para reconfigurar, faz com que eu me mantenha focada na essência das coisas”. Em seus trabalhos há menos estilização e mais neutralidade e registro direto de locais e eventos, a exemplo de sua sombra recuada num lago ou de uma iluminação estática de rua.

Numa visita recente à ilha de Aruba, fiquei cara a cara com o excêntrico general Richard Amaya Cook, a quem reconheci imediatamente porque havia visto o vídeo de Remy Jungerman no ano passado em Roterdã. No guia turístico não havia menção a ele ou a seus fortes e torre de vigia. Da mesma maneira que o general havia delineado seu próprio território, Jungerman havia reconfigurado os marcadores de reconhecimento para leitura de onde estávamos. Soube agora, numa ida a San Nicholas, que eu estava lá assim que vi o general ocupando-se de seus afazeres. Jungerman especula com freqüência sobre o caos e a natureza aleatória dos modernos sistemas de tecnologia e comunicação que, ao mesmo tempo, o assustam e intrigam.

A atrevida estratégia de Osaira Muyale de registrar sensações e reflexões aleatórias é um meio importante de se afirmar. Em boa parte do trabalho atualmente produzido nesta região, texto/palavra e imagem se fundem como componentes de um mecanismo simbólico. Essa é nossa única defesa contra uma conjuntura histórica e de mídia que persistentemente nos silencia. As observações de Muyale definem a forma ou condição desse silêncio.

Os trabalhos de Yao Ramesar transitam auto-inconscientemente entre o documental e o fantástico. Sua obra freqüentemente nos indaga se um processo de documentação pode se tornar o meio de construção de um vocabulário de auto-expressão. O processo documental de Yao Ramesar muitas vezes é a reação altamente subjetiva e estilizada a seus temas e ao espaço que eles ocupam. Ele fica circulando em torno desses temas, em vez de tentar prendê-los num ponto ou de presumir que eles podem ser definidos. Documentação e auto-expressão se unem não tanto para distorcer ou competir com a circunstância, mas para se atracar com o modo com que ele as vivencia no tempo e no espaço.

Este trabalho, como boa parte do trabalho caribenho contemporâneo, é generativo e avaliatório. Ele simplesmente começa a falar; a contar sua história, e com isso expressar seus vários pontos de vista. Não se trata de um esforço empreendedor visando a inclusão em outras narrativas. Ele pode simplesmente se cruzar com elas devido às circunstâncias ou à forma com que hoje em dia redes curatoriais mais amplas e dispersas são lançadas.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "14º Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 133 a 136, São Paulo, SP, 2003.