Com coordenação de Christine Mello, os Painéis sobre o eixo "Investigações Contemporâneas" abordaram as tendências e os caminhos observados nas práticas criativas realizadas nas confluências entre a arte-ciência e a arte contemporânea.

O debate "Circuito de Arte em Deslocamento" aconteceu no auditório e teve a participação de Marcos Moraes (crítico, professor e curador, diretor da FAAP-Artes Plásticas), Rejane Cantoni (artista e professora de novas mídias da PUC-SP), Ricardo Basbaum (artista, curador, professor na Faculdade de Artes Plásticas da UERJ, editor da Revista Item), Leandro Vieira, Eugênio Pupo, Pablo Zurita e Vera Uberti (artistas).

Mediação |

Ensaio Ricardo Basbaum, 2003

Circuito de arte em deslocamento

1. O título desta palestra guarda já uma redundância, na medida em que a própria idéia de 'circuito' já traz em si a idéia de 'deslocamento': há entrada [input] e saída [output], entre as quais se dão processamentos diversos dentro da caixa preta. Fala-se também em 'sistema'. Não que se queira aqui discutir o deslocamento disto ou daquilo, mas perceber deslocamento como movimento ou estado de coisas com o qual se trabalha. 2. Logo, trata-se de pensar o circuito da arte, ou seja, quais os trânsitos que se estabelecem através de seus vários 'nós', entre as diversas componentes do sistema. Fala-se sobretudo em termos de se traçar uma economia do sentido ou do significado da obra e seu jogo de relações, de modo a dinamizá-lo. A obra de arte em um circuito, ou um circuito de arte, surgem como noções para este meio a partir do momento em que a modernidade executa uma dobra sobre si mesma, uma inflexão - em que o moderno deixa de ser apenas crítica da tradição e começa dobrar-se sobre si: torna-se contemporâneo, pós-moderno. 3. Vê-se isso claramente nos anos 50, por exemplo, quando diversos rituais do próprio jogo da arte são encenados pela arte: ver os trabalhos e ações de Yves Klein, Piero Manzoni, Robert Rauschenberg e Jasper Johns. Nestes gestos há um esforço para se começar a articular um outro modo de pensar - por sistemas, por circuitos. Não mais um pensamento linear, evolutivo, em que se supera o anterior tendo como fim a redenção do espaço histórico idealizado. Este novo pensamento sistêmico - em circuito - se faz agora por redes, vizinhança, afinidades, afetos (olhar para si mesmo através do outro sem aniquilá-lo, deixar-se tocar, constituir um campo de relações, um teatro de eventos), desvios. Quando se tem o movimento do circuito como estado de coisas não há pureza, linearidade, projeto ou fim. 4. No campo das artes visuais constuma-se dizer que a noção de circuito ou sistema de arte consolidou-se de modo muito claro nos anos 60, com a chamada arte conceitual, que tomou para si a tarefa de investigar a produção de sentido específica do campo através de um tríplice conjunto de manobras: (1) em que o circuito se torna visível, evidenciado, lançado a um primeiro plano figurativo e operacional; (2) em que as obras são desmontadas em conjuntos de relações, como a muitíssimo utilizada 'relação entre texto e imagem', mas também outras séries envolvendo som, espaço, espectador, etc: temos aí as instalações como meio em que se colocam diversos destes termos em relação; (3) em que a arte é separada da estética para que se discuta não apenas a verdade através do sensível, mas sobretudo se investigue a natureza da obra de arte, as propriedades de um campo artístico, que não mais se reduz apenas a um elemento do jogo formal mas vai ser definido nas relações com seu próprio circuito, e se abrir para um jogo interdisciplinar abordado através de diversas áreas do conhecimento. As poéticas são articuladas como campo de problemas, numa via de ação que se estende da interdisciplinaridade à hipermídia. Não mais se irá falar de gêneros artísticos (pintura, escultura, desenho) mas de meios - sobretudo híbridos - à disposição do artista Exemplos: tanto o objeto específico minimalista (Donald Judd) quanto o não-objeto neconcreto (Ferreira Gullar) são propostos como híbridos pintura-escultura). Aí se situa o nascimento das novas categorias da performance, do objeto e da instalação, assim como as diversas combinações das experiências multimídia. 5. Percebe-se desse modo como circuito / sistema passa a ser um modo de pensar, introjetado na própria concepção do que se quer obra ou estrutura pensável, problematizável. Não se trata de deslocar qualquer objeto, mas de conceber as coisas de outro modo, enquanto entidades processuais que se lançam de imediato à vertigem de jogos de relações, ao seu destino de circulação. Estabelecer, trazer à tona os dispositivos de trânsito e circulação não é simples exibição de coisas em seus caminhos ou trilhos, mas sim perceber sentidos em percursos amplos, valorar desvios, determinar importância ao processo de deslocamento como uma entidade de grupo, elemento coletivo. 6. Organizar as questões em circuito, ordenar as informações em caminhos, sistematizá-las: processo muito importante, pois revela que este gesto (de construir um circuito) é modo e maneira de pensamento, que implica na construção de interface em que se captura o outro e se propõe caminhos e estruturas de produção de valor a partir dos percursos estabelecidos: ênfase na processualidade, proximidade, vizinhança: traçar uma rede, agrupar os pontos a partir do gesto de capturá-los, ordená-los. Daí que o simples gesto de construir o diagrama de um circuito seja ativar um grupo de objetos-relações-ações e produzir fios de pensamento em rede: um circuito é oposto do caldo homogêneo de objetos similares e sem valor: propõe sempre diferenças dinamizadas a partir da singularidade dos nós pelos quais atravessa. Desenhar é propor relações, construir rede, rizoma, conectar o próximo e o distante. A beleza de se desenhar ou propor um circuito é poder arbitrar os centros de atração, aqueles nós a partir dos quais a rede se distribui, avança ou recua. Nesta dinâmica, passagens e conexões são estruturas de produção de valor. 7. Daí a importância de projetos como 'brócolisvhs'e 'cinema marginal', onde a simples construção do site reveste-se de significado por ser exatamente interface a partir do qual o pensamento se ordena enquanto produção de um circuito que produz valor para o próprio trabalho - constrói valor -, lançando-se ao mesmo tempo para dentro de si mesmo e para o exterior. Através do website as coisas não são acessadas diretamente, mas através do circuito / interface em que todos os elementos presentes se reforcem mutuamente, produzindo o efeito de geração de sentido. Uma das mais importantes consequências são as possibilidades que se abrem de acoplamento com outras estruturas homólogas. Exemplo: The Atas Group e seu projeto de articulação de vários meios e suportes, que deslizam uns sobre os outros. 8. A própria 'arte do vídeo' já nasce nessa condição de passagem entre linguagens e daí sua inteligência ter sempre sido esta: hibridações, combinações de procedimentos de diversos campos. Ou seja: o específico do vídeo se materializa sempre em encontros, seja da imagem eletrônica com o cinema, da imagem com o objeto-instalação, da imagem com a música, etc. Qual sentido haveria em se buscar o 'puro específico do vídeo'? A singularidade deste meio se localiza mais nos encontros do que em sua auto-definição. Isto está claramente colocado por Nan June Paik já em sua Exposition of Experimental Television, na Galerie Parnass, Wuppertal (1963), onde os trabalhos propostos organizam-se como objetos em que os recursos do aparelho de TV se voltam para si próprios, mas ao mesmo tempo dialogam com o lugar da comunicação e da construção de redes telemáticas. Não há mais como olhar o meio sem considerar sua ampla rede de conexões. 9. A combinação principal para esta compreensão é a associação entre 'cibernética' e 'arte conceitual': noção de circuito + ferramentas para discutir o próprio circuito. Não há como negar a influência de tal combinação nos mais diversos campos do conhecimento, quando se percebe claramente a dificuldade metodológica de se isolar um objeto de contornos estáveis - cada visada é fruto de negociações de fronteiras e limites, assim como é proposição de campo conectivo, rede, território. Pode-se também acrescentar a topologia, como ferramenta renovadora de visualização dos objetos construídos dentro destas possibilidades das coisas em deslocamento. 10. Deslocar o circuito só pode ser pensá-lo, utilizá-lo, reconfigurá-lo para mais uma intervenção - redesenhá-lo. Há aí uma imperatividade do presente: funcionamento e permanente atualização. Um circuito não tem futuro, só o presente de seus usos e deslocamentos aqui e agora. Entretanto uma dimensão virtual se faz presente na medida em que mobiliza possibilidades de seu programa. Enquanto for capaz de viabilizar encontros e conexões um circuito permanece existindo; sem isso, cristaliza-se, hibernando até sua próxima possibilidade conectiva. Sejam dinâmicas de grupo, coletivos, revistas, laboratórios, a eficiência das mutações propostas por todas estas possibilidades de intervenção se dá na medida da habilidade de se perceber conexões entre as coisas, mantendo sua capacidade vibratória de produzir desvios e redesenhar - ainda que momentaneamente - seu mapa de ligações ou - de modo mais perene - impor um novo traçado para os processos, fazê-los literalmente passar por aqui. 11. Assim, circuito é também o informe, o redesenho, o ultrapassamento de limites olhando para fora de si no exercício de uma voracidade conectiva. Talvez aqui, nesse voltar-se para o exterior, se encontrem pistas estéticas: o êxtase sensorial se dá sempre como o próximo link ou conexão - ao mesmo tempo consumo e transgressão, pois as ligações em um circuito se dão sobretudo entre heterogêneos (relações, afinal): a diferença é a partícula que acopla. Seja 'oficial' ou 'aternativo', tudo são circuitos - diferindo entretanto em termos de amplitude, maleabilidade, alcance e fluência das conexões, potencial de auto-remissão que busca valor em si, na qualidade das conexões (isto é, ligações fortes, fracas, estáveis ou instáveis, conforme o caso). Abre-se o caminho para uma compreensão política das dinâmicas afetivas, quando se tem a amizade como forma política de construção da proximidade na distância, enfatizando as membranas e regiões de contato e agrupamento entre sujeitos singulares e acreditando no potencial transformador de tais processos (nada de amizade fraterna cristã, pacto de sangue ou intimidade compulsória com o poder: o que se quer aqui é o trânsito afetivo como política de alianças entre aqueles que vibram na dimensão de um combate que é aquele da dinâmica produtiva das ações coletivas. Ver Francisco Ortega, Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault (Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2002). 12. Diante das poéticas do processo, sob a dinâmica do trabalho em progresso, não há como concluir, mas sim colaborar na continuidade (imprevista e acidentada) destes percursos. [texto feito para o debate realizado no 14ºVideobrasil em 01/10/2003]