Meu primeiro interesse artístico foi pela poesia. E ‘não qualquer poesia’ e sim ‘poesia fora do lugar’ (como Augusto de Campos disse num poema). O contato com a poesia, as traduções e os ensaios de Augusto, Haroldo de Campos e Décio Pignatari foi crucial em minha formação, ensinando um repertório de rigor e radicalidade, aguçando um gosto pela experimentação que eu já cultivava. Carlos Adriano

O curta inédito Das ruínas a rexistência (2004-2007), remontagem poética de filmes de Décio Pignatari, é o produto mais recente do cinema particular de Carlos Adriano, que elege o documentário como território de experimentação e caminha “da pele da palavra ao cerne da película”, segundo o poeta Augusto de Campos.

Mestre em cinema pela USP, Adriano é autor de Remanescências (1994-1997), que constrói com onze fotogramas da suposta primeira filmagem feita no Brasil, em 1897, e a A voz e o vazio: a vez de Vassourinha (1997-1998), melhor curta do Festival Internacional de Chicago (2000).

Além de Ruínas, que estréia no CineSesc, o 16º Videobrasil exibe oito filmes realizados pelo artista de 1988 a 2006 no 3º andar do SESC Avenida Paulista.

Artistas

Obras

Entrevista Eduardo de Jesus, 2007

Entrevista

Eduardo de Jesus: Como você descobriu e se interessou por cinema experimental? Foi através do contato com a poesia concreta?

Carlos Adriano: Meu primeiro interesse artístico foi pela poesia. E “não qualquer poesia” e sim “poesia fora do lugar” (como Augusto de Campos disse num poema). A descoberta do cinema experimental não se deu com a poesia concreta, que citava autores como Eisenstein e Godard, mas não o que hoje é tido como experimental mais estrito. O contato com a poesia, as traduções e os ensaios de Augusto, Haroldo de Campos e Décio Pignatari foi crucial em minha formação, ensinando um repertório de rigor e radicalidade, aguçando um gosto pela experimentação que eu já cultivava. Talvez o que me levou ao filme experimental foi algo mais geral: o conselho de Ezra Pound aos jovens: “curiosidade”. Se você se interessa por uma coisa e a ela se dedica, conexões e referências vão aparecer. O fato mais remoto de que me lembro, crucial para um engajamento com o cinema, foi a projeção de Le Mépris de Godard. Era 1981. Esse filme extraordinário me impressionou muito, pelo tema e o tratamento. Mas, vendo hoje em retrospecto prospectivo, acho que, tão ou mais marcante que o filme, foi sua condição de exibição. Num cineclube, sobre a mesa que servia de bilheteria, ao lado do talão de ingressos e da caixa de troco, havia pedaços do filme. O espectador era advertido de que a sessão seria ruim por causa da cópia, literalmente em frangalhos, e que talvez nem chegasse ao fim. Na memória ficou a idéia de que o filme se desintegraria durante a projeção. O que pode ter algo a ver com meus filmes sobre artefatos raros da memória cultural brasileira. 

Sua produção teórica se destaca pela pesquisa rigorosa em torno do cinema experimental, promovendo uma ampliação do debate com a circulação de novas informações. Curadorias como Cinema Russo Experimental (2003) e Peter Kubelka (2002) funcionam como exercícios de reflexão? Qual o movimento inicial e em que medida essa atividade dialoga com sua produção artística e teórica? 

Todos os projetos de curadoria só são feitos com Bernardo Vorobow, produtor de meus filmes. Notável curador de programação, Bernardo foi diretor da Sociedade Amigos da Cinemateca em sua fase mais heróica. Criou e dirigiu o lendário setor de cinema do Museu da Imagem e do Som (SP). Foi convidado para organizar o departamento de difusão e divulgação da Cinemateca Brasileira. Além da generosidade de socializar o prazer e o conhecimento, as curadorias permitem desenvolver o estudo e o método. Com o projeto Kubelka, fomos a Viena, para nos aproximar do artista. Conversas, entrevistas e a visão repetida de seus filmes acabaram “exigindo” a fixação da experiência em livro. Gosto de assistir a filmes. E é inevitável que isso faça parte da formação de qualquer artista, embora não detecte influências particulares em minha criação. Para a crítica, as curadorias podem fornecer matéria de reflexão. Creio que a produção teórica tenha mais a ver com a produção artística, no sentido de buscar investigar o processo de criação. 

Augusto de Campos define seu cinema como “cinepoema”, como um não à “cinemesmice”. Como você define sua produção e em que medida seus filmes dialogam com a poesia, a literatura e a memória brasileiras? 

Cogitei de estudar arquitetura e história na universidade, antes de decidir-me por cinema. Somadas à formação mais ampla da poesia concreta e à ideologia da curiosidade, o diálogo interdisciplinar é quase um dado natural. Por temperamento, não fico à vontade em teorizar sobre a própria obra, embora possa fazê-lo, graças à pesquisa acadêmica. Há constrangimento quando escrevo sobre cinema experimental (como no Caderno Videobrasil) e hesito em automencionar-me. Falando em diálogo, prefiro pensar sobre as ideias dos interlocutores. Neste catálogo, estão enfeixados nas sinopses depoimentos que tive a honra de merecer. No contexto interdisciplinar que você aponta, é curioso pensar no que Caetano diz, por exemplo: “Seu filmes são feitos para o espectador-artista, isto é, fazem do espectador que de fato os vê um artista. E fazem uma diferença na perspectiva crítica de todo o nosso cinema”. Acho que as investigações são irredutíveis à linguagem do cinema. Mesmo quando dialoga com outras disciplinas e vive esta transição com o impacto digital. Sob o risco da simplificação, poderia dizer que me interessa trabalhar sobre vestígios materiais ignotos da cultura brasileira segundo a estrutura do dispositivo audiovisual e uma estética do espanto, ou do encanto.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil": de 30 de setembro a 25 de outubro de 2007, p.16-17, Edições SESC SP, São Paulo-SP, 2007, p. 102 a p. 103.