As obras reunidas pela 21ª Bienal atestam as formas muito diversas como a ideia de comunidades imaginadas se manifesta e se exercita nas produções artísticas do Sul global. Composta a partir de um edital aberto, a seleção desta edição é marcada pela presença de artistas de povos originários e indígenas de diferentes países, assim como de uma série de trabalhos de grupos de ativismo político e movimentos sociais.

Entre muitos aspectos da experiência contemporânea, os trabalhos exploram o poder dos objetos de evocar a história; os conflitos entre passado e futuro que dão forma ao presente; e a luta pela posse e o uso da terra, que está na base de tantas experiências sociais no âmbito do Sul global. Algumas obras reverberam diretamente o presente e seus conflitos, como aquelas que relatam experiências de deslocamento ou exílio.

Além das instalações, vídeos, pinturas, fotografias e obras de outras naturezas reunidas no espaço do 5º andar, a Bienal é composta por cinco programas de vídeo (que serão exibidos em horários regulares no Auditório do 6º andar) e por uma série de performances, ativações e ações envolvendo o público; entre elas, um serviço de apoio jurídico à população trans e oficinas de conscientização política exploram o rico espaço intermediário entre a arte e outras formas de agir sobre o mundo.

Artistas

Obras

Prêmios e menções

Membros do Júri

Projeto de troféu

O troféu criado pelo artista Alexandre da Cunha para a 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil dialoga com a ideia de sentimento nacional que o historiador norte-americano Benedict Anderson relaciona ao fim dos impérios coloniais, entre outros fenômenos, no ensaio Comunidades imaginadas. A escultura de metal polido que será entregue aos premiados recria um coco com um canudo espetado, imagem onipresente em praias e ruas do Brasil e de países asiáticos. Trazida para o contexto da Bienal, ela remete tanto às economias informais das regiões tropicais quanto, numa nota mais provocativa, à fantasia cenográfica de seus paraísos de aluguel.

O coco de Da Cunha reproduz os golpes certeiros que os vendedores da fruta desferem para transformá-la no recipiente onde se bebe sua água: um corte seco, horizontal, na base, para que pare de pé, e outros, curtos e diagonais, no topo, para livrá-la de parte da casca e abrir o orifício por onde passa o canudo. Para o artista, são gestos propriamente escultóricos, que remetem à ação primitiva da transformação e ao escultor que trabalha uma pedra. De uma maneira que é recorrente em sua prática, ele se apropria do coco como escultura involuntária e, de certa forma, também do seu escultor.

Mesmo operando numa faixa de intervenção mínima, ao recriar as formas e texturas daquilo que chama de esculturas encontradas – um coco, um escovão, uma betoneira de uma tonelada –, o artista faz mais que apenas deslocá-las do contexto original. Sua apropriação, que enfatiza questões formais e aspectos esculturais, produz o paradoxo de evocar temas mais amplos. Daí ele gostar de dizer que é menos um fazedor que um apontador.

Neste caso, o canudo descartável que compõe o troféu-coco e a caixa que o acondiciona, feita de madeira pallet, a mesma dos engradados onde se transporta hortifrúti nos mercados municipais brasileiros, acabam de invocar o legado de invenção e precariedade das economias e culturas pós-coloniais.

Statement do Júri

Hoje em dia, muitos de nós compartilhamos o sentimento de que o passado, o presente e o futuro foram colapsados ou condensados em um tempo único.

Estamos perdendo a posse de nossa própria história e nossa capacidade de enxergá-la com clareza. O fascismo está em ascensão.

Vivemos sobrecarregados de imagens, sob um excesso de comunicação, que leva à falsa ideia de uma comunidade global. Estamos paralisados. O presente nos foi usurpado e se encontra agora nas mãos de uns poucos. Como responder e recuperar o comando dele, agora? Como seguir em frente? Como imaginar o futuro de nossas comunidades?

O racismo e a opressão tornaram-se endêmicos, atingindo especialmente as comunidades afro-descendentes e os povos originários. As comunidades LGBTQI+ no Brasil e em outros países estão sendo perseguidas. A Amazônia arde! Estamos sendo privados de nossos direitos civis. Isso não está acontecendo apenas no Brasil, mas em todo o mundo, de Standing Rock ao território dos povos Maxakali, de São Paulo a Tunis. Na 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil | Comunidades Imaginadas, vemos que muitas das obras funcionam como uma lente poética apontada para várias questões críticas do nosso tempo.

Trabalhando a partir de pontos de vista que vão do ancestral às questões raciais, das questões de gênero às diversas desigualdades, os artistas alcançaram e apresentaram resultados significativos, que tornaram o processo do júri desafiador e muito instigante. Aprendemos muito com todos – todos os trabalhos e todos os artistas. Dessa maneira, os pontos principais que procuramos nas obras foram aqueles que iam além do questionamento e do documental. Os trabalhos premiados são os que parecem nos fornecer respostas e apontar futuros possíveis.

Decidimos premiar e exaltar dois trabalhos com o Prêmio de Menção Honrosa; a Roney de Freitas e Isael Maxakali pelo filme GRIN, 2016. E Aykan Safoğlu pelo vídeo Off-White Tulips, 2013.

Os artistas Roney de Freitas e Isael Maxakali realizaram um filme altamente crítico e investigativo a partir de importantes testemunhos e imagens de arquivos. Por meio de seu próprio engajamento, foram capazes de retratar as complexas estruturas opressivas contra as comunidades Maxacali, desde a ditadura militar.

O trabalho de Aykan Safoğlu parte de uma colagem narrativa contínua de contextos pessoais, históricos e situacionais que lidam com histórias queer; pareceu-nos muito poderoso, de uma maneira sutil e com um humor particular.

Quanto aos prêmios de residência, sendo o primeiro o Prêmio de Residência Instituto Sacatar, decidimos oferecê-lo à artista Dana Awartani por sua instalação multimídia

I Went Away and Forgot You. A While Ago I Remembered. I Remembered I’d Forgotten You. I Was Dreaming, 2017. Com uma prática consistente que se baseia na expansão da ideia do universal através das manualidades e ofícios específicos de seu contexto sociocultural, a artista poderá se envolver e aproveitar a experiência proporcionada pela residência oferecida por esse prêmio, no estado da Bahia, no Brasil.

O segundo prêmio de residência, o Prêmio de Residência MMCA Residency Changdong, foi destinado a Omar Mismar por seu vídeo SchmittYou and Me, 2016-2017. Empregando uma estratégia muito simples, o artista foi capaz de registrar uma leitura da dimensão do poder subjetivo e da violência que se multiplica hoje no estado global do mundo. Há um alto nível de cumplicidade entre o artista e sua temática, que confere novo significado à noção de engajamento.

O terceiro prêmio de residência, Prêmio de Residência Sharjah Art Foundation, foi destinado a Nelson Makengo por seu vídeo E'ville, 2018. Por meio de seu trabalho, o artista empreendeu uma importante crítica sobre as narrativas pós-coloniais provenientes do Congo. O trabalho propõe a convergência da imagem de ruínas materiais com os escombros da história e da política. O Prêmio de Residência Sharjah Art Foundation oferecerá ao artista o suporte intelectual e a infraestrutura para sua trajetória audiovisual.

O prêmio Ostrovsky Family Fund, foi destinado à artista Thanh Hoang por seu trabalho Nikki's Here, 2018. A poética dessa obra em vídeo encarna uma série de questões contemporâneas ao abordar as relações de trabalho, a intimidade e a resistência à alienação. É notável o uso da duração da obra e a inventividade do estilo visual e narrativo da artista.

Dos dois prêmios de aquisição, o primeiro Prêmio Sesc de Arte Contemporânea foi concedido ao artista No Martins por sua série de pinturas #JaBasta!, 2019. Estes retratos são uma notável declaração de afirmação e protesto. Os trabalhos se relacionam com a história da arte do retrato com uma mensagem urgente contra o racismo e a desigualdade. Empregam escala, um olhar revolucionário, políticas e mídias subversivas para criar um assertivo e poderoso chamado à ação.

O segundo Prêmio Sesc de Arte Contemporânea foi concedido ao coletivo Movimento de Luta Nos Bairros, Vilas e Favelas, por seu trabalho Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados, 2018O vídeo representa uma ação coletiva, significativa dos movimentos sociais e civis que respondem à injustiça no Brasil, que por sua vez correspondem em grande parte a todo o mundo. O trabalho fala a um presente de suspense e a um futuro social desejado. A lente ativa se combina à ação da comunidade. O resultado é tremendamente vibrante.

O júri concordou por unanimidade em conceder o prêmio Estado da Arte à artista Gabriela Golder por sua seminal instalação de vídeo em quatro canais, Laboratorio de invenciósocial (O posibles formas de construcciócolectiva), 2018. Este trabalho é um acúmulo de conhecimento de coletivos e cooperativas para criar uma ferramenta eficaz de mudança, destinada a trabalhadores de todo o mundo. A artista apela ao agenciamento de possíveis maneiras de controlar e organizar a economia, em direção à equidade. Trata-se de uma possível fórmula descolonizadora, de resistência às realidades e ruínas capitalistas e industriais. A instalação propõe uma sincronicidade visual, relacionando seres humanos, máquinas e os resultados de seu trabalho, para criar uma unidade de vozes, ações e vidas.

Texto de curadoria 2019

Imaginações Comunitárias

GABRIEL BOGOSSIAN, LUISA DUARTE, MIGUEL A. LÓPEZ

Comunidades imaginadas, o livro de Benedict Anderson 1 que empresta seu título à 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, é um estudo sobre as origens do nacionalismo e sua expressão administrativa, cultural e política. As nações e as nacionalidades, afirma o autor, são constituídas por exercícios imaginativos nos quais a seleção e o esquecimento têm papel tão importante quanto os conteúdos supostamente originais (ou originários) consolidados nas identidades nacionais. Lilia M. Schwarcz, na introdução da edição brasileira ao livro de Anderson, destaca como exemplo o caso do Brasil: no século 19, “em pleno Império”, nós nos imaginávamos em um país europeu, “no máximo indígena”, enquanto mais de 80% da população era de negros e mestiços.

Atestando o caráter imaginativo da identidade nacional, continua Schwarcz, a mestiçagem, que até então assombrava nossos intelectuais e homens de ciência, passa, nos anos 1930, a ser vista como uma espécie de redenção, e a capoeira, o candomblé e o samba são tomados como símbolos de brasilidade. Contemporaneamente, em nosso mundo saturado de mercadorias, o nacionalismo ainda mobiliza pequenos e grandes afetos, e seus símbolos são vistos, seja nos estádios e nos dias pátrios, seja nas disputas bélicas ou comerciais em curso na arena internacional.

Imaginário não é, está claro, o oposto de real: é preciso, segundo Anderson, imaginar as nações de maneira consistente e sistemática, e mesmo planejá-las, para que se realizem; tal gesto nos vincula a uma rede comunitária e afetiva de sentidos. Em seu livro, Anderson defende também a importância do capitalismo editorial e das comunidades de leitores para a consolidação de uma ideia de nacionalidade; hoje, as redes de informação continuam criando suas próprias comunidades internacionais de consumidores de notícias, verdadeiras ou falsas, e redefinindo o curso dos debates políticos em diferentes países.

Aí, o nacionalismo ganha tons tóxicos e reaparece como subtexto de eleições nacionais – EUA e Índia, Itália e Brasil, entre outros tantos exemplos –, na votação do Brexit e nos debates em torno do aquecimento global. Ecoando seus mantras, massas digitais de humanos e robôs impactam a governança global; a mais recente crise europeia da imigração foi campo fértil para manifestações de um nacionalismo tão feroz quanto racista e, na era da opinião pessoal, mesmo alguns de nossos pequenos líderes se posicionaram pelo Twitter perante esses grandes temas.

Como título da 21ª Bienal Sesc_Videobrasil, Comunidades imaginadas resume uma investigação em torno da presença de certas preocupações comunitárias nas produções artísticas do Sul global. A arte, tradicionalmente convocada ao exercício imaginativo do nacionalismo a fim de fornecer as imagens que lhe dão substância, aqui aparece em chave invertida, nas sombras dos monumentos e nas lacunas das imaginações oficiais. Nesse sentido, a presença, pela primeira vez, de artistas e coletivos de povos originários e indígenas de diferentes países se destaca nesta edição, marcando um alargamento das fronteiras do Sul abrangido pela convocatória.

Fundamentalmente nações sem Estado, maoris, guaranis e matis são alguns dos povos representados na exposição e em seu programa de vídeos, um gesto inicial no sentido de dar ouvidos à vibrante produção contemporânea do mundo indígena. Tendo em vista o caso brasileiro, em que a imagem de um índio genérico foi evocada ao longo de décadas como símbolo das origens do país e da identidade de um nacionalismo mestiço, a exibição dessas obras busca lançar luz sobre suas poéticas contra-hegemônicas e suas redes de legitimação, em um momento em que, para além do mundo da arte, vivemos violentos ataques aos direitos indígenas e à integridade de seus territórios.


O partido curatorial descrito na convocatória da 21ª Bienal mencionava o ressurgimento do nacionalismo neste começo de século, e as comunidades nativas, originárias ou indígenas, como temas iniciais de interesse. Em um processo desse porte, no entanto, um partido jamais abolirá o acaso; a seleção apresentada é, assim, naturalmente mais ampla e diversificada que o texto que a anunciava. Ela inclui, por exemplo, de modo inesperado e bem-vindo, uma série de trabalhos de grupos ativistas e movimentos sociais. Em vídeos, publicações, ações com o público e serviços oferecidos à população trans, eles buscam assinalar disputas sociais correntes e ampliar, a partir de sua inserção em circuitos institucionais de arte, os sentidos das comunidades do presente.

As obras dos 55 artistas participantes da Bienal estão distribuídas entre o Sesc 24 de Maio e este catálogo. Após o processo de seleção, foi possível reuni-las em cinco grupos, no intuito de delinear os eixos conceituais desta edição. Com limites naturalmente porosos e interpenetrando-se a todo tempo, esses eixos apontam para diferentes exercícios de imaginação comunitária e propõem um circuito de sentidos que se reflete, de modo aproximado, na disposição das obras no espaço expositivo.

Esse circuito destaca, primeiro, a capacidade que certos objetos têm de evocar a história, como se guardassem as memórias de seus diferentes proprietários ou refletissem um cruzamento de significados que combina arte, tradições nacionais e cultura de massa. Os conflitos entre passado e futuro que dão forma ao presente aproximam um segundo conjunto de obras, no qual a permanência da tradição, às vezes como trauma, e a ideia da moradia como lugar simbólico das raízes são temas-chave. As raízes, desta vez lançadas sobre o território, e os conflitos pela posse e pela exploração da terra que estão na base da experiência social no Brasil (assim como em outros países do Sul) aproximam um terceiro conjunto de trabalhos.

Os dois núcleos finais ultrapassam o espaço expositivo e ocupam outros andares do Sesc 24 de Maio, além do programa de vídeos desta edição. Com forte presença de produções negras e LGBTQI+, o primeiro inclui obras que reverberam mais diretamente o presente e seus conflitos. O último conjunto, com obras de imigrantes de diferentes origens, traz relatos sobre experiências de deslocamento ou exílio, nos quais a perspectiva estrangeira enseja a revisão do passado e dos horizontes de futuro. As propostas de ações envolvendo o público, em particular, tratam de ativar diretamente essas reflexões e, junto aos programas públicos, amplificar os desdobramentos desta Bienal.

Além dos vídeos, pinturas, instalações e demais obras dos artistas participantes, esta edição traz também uma seleção de joias africanas em metal da coleção do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) e uma seleção de capas de O Snob, jornal caseiro que circulou entre 1963 e 1969 no Rio de Janeiro e foi um dos precursores da imprensa LGBTQI+ no Brasil. As joias, produzidas por grupos ashanti, fon e iorubá, foram integradas ao MAE-USP no fim dos anos 1970 e são exibidas, em sua maioria, pela primeira vez. A seleção das peças ficou a cargo do pesquisador e curador Renato Araújo que, desde 2003, trabalha com a coleção do museu. Para as capas de O Snob, que tem todas as suas edições guardadas no Arquivo Edgar Leuenroth, na Unicamp, a referência foram as pesquisas de Rogério Costa, que gentilmente cedeu o vasto material levantado durante sua investigação.

Joias e publicações, evocando aqueles que as usaram ou leram, permitem vislumbrar as variadas formas que assume nossa imaginação comunitária. Nesta exposição, reforçam também a dimensão museal de uma bienal. Em tempos em que nossos museus queimam, a presença de coleções guardadas em arquivos e museus universitários dá nova mostra da importância dessas instituições para a vida cultural do país.


De forma semelhante, os programas públicos da 21ª Bienal buscam, nas interseções entre diferentes campos e saberes, o diálogo com o pulso do presente que caracteriza suas escolhas curatoriais. O mundo que parece colapsar à nossa frente, varrido por ventos retrógrados, o faz em reação às imensas conquistas das últimas décadas. Depois de uma série de avanços no território dos costumes e das chamadas micropolíticas, que encontram no campo da arte toda uma revisão histórica sob um ponto de vista decolonial – incorporando, de maneira decisiva, paisagens estéticas/éticas produzidas no chamado Sul global –, testemunhamos uma espécie de contrarrevolução, que em parte responde à visibilidade alcançada por uma multiplicidade de existências antes silenciadas. Essa conjuntura ultrapassa a vida social e política: tem o poder de embotar também a imaginação, a subjetividade e o inconsciente, o que é um de seus aspectos mais desafiadores.

Desdobrando-se em um ciclo de debates, conversas com artistas, visitas guiadas e performances, os programas públicos elegem e buscam vocalizar perguntas que ecoam certas urgências do nosso tempo. Como inventar uma nova imaginação política? Que sentido as práticas de povos indígenas e grupos LGBTQI+ podem dar à ideia de comunidade? Qual o papel, em tempos de subjetividades colonizadas, da produção simbólica dos movimentos sociais? Quais insurreições micropolíticas pedem passagem neste momento? Com essas indagações, buscamos acolher vozes e corpos sensíveis aos impasses de nossa época, a fim de imaginar – e inventar, partilhar, trocar –, juntos, outras e inauditas formas de habitar o porvir.


A exposição e os programas públicos são acompanhados por duas publicações que ampliam as reflexões do projeto, documentando as obras escolhidas e oferecendo diferentes pontos de vista sobre comunidades imaginárias e imaginações comunitárias. Além deste catálogo, elas incluem um livro que reúne uma série de contribuições teóricas dos participantes dos programas públicos da 21ª Bienal, a ser lançado no final de 2019.

Com o deslocamento do Videobrasil para o modelo de bienal, consideramos importante introduzir, no catálogo, ensaístas, pensadores ou escritores não diretamente ligados à exposição (ou a algum de seus artistas em especial), mas que buscam adensar as discussões relacionadas e oferecer uma perspectiva sobre questões politicamente relevantes. A publicação torna-se uma extensão reflexiva, para além de um registro, da bienal.

Nesse sentido, convidamos para escrever pessoas vindas de geografias e contextos culturais e políticos diversos: Gladys Tzul Tzul, ativista e socióloga maya k’iche’; Erica Moiah James, historiadora da arte e professora da Universidade de Miami; e Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, curador, biotecnólogo e diretor artístico da SAVVY Contemporary de Berlim. Seus ensaios enfatizam formas distintas de construir vínculos e comunidades, e de resistir aos modelos de pertencimento do Estado nacional e aos discursos nacionalistas que têm ressurgido com força, através de partidos de ultradireita e de políticas econômicas neoliberais.

Tzul Tzul parte de sua experiência pessoal para se perguntar sobre as implicações de pensar a política a partir de uma chave comunal, destacando como os modelos de autorregulação social das práticas comunais indígenas permitem ressignificar os conceitos de riqueza, propriedade e uso. A autora deixa claro que, ao falar do comunal indígena, não se refere a uma identidade ou a uma essência, mas a uma estratégia e “uma forma particular de relação social” que permite construir uma vida compartilhada e dinâmicas de autonomia, excedendo e desafiando as formas patriarcais de governo estatal e suas políticas de representação, frequentemente colonialistas ou paternalistas.

No segundo ensaio, James observa como os espaços queer permitem imaginar novos territórios de existência, para além dos limites normativos das sociedades do Caribe. Seu texto oferece uma reflexão sobre o Caribbean Queer Visualities, projeto curatorial recente, exposto na Irlanda e na Escócia, que propôs um ambicioso panorama das intersecções entre arte e sexualidades dissidentes, reclamando a imaginação como espaço de regeneração afetiva e de luta social.

A impossibilidade de fazer a exposição circular pelos países do Caribe, por conta de problemas econômicos e, sobretudo, do conservadorismo, evidencia as dificuldades que as instituições locais enfrentam, ao mesmo tempo em que revela a força da estética, ao imaginar um Caribe onde a reivindicação da autodeterminação sobre os corpos se converte em uma forma de solidariedade intergeracional, e ganha significação política ao reclamar noções alternativas de pertencimento.

Finalmente, Ndikung escreve sobre o conceito de “des-outrização”, uma noção fundamental no programa que o espaço de arte SAVVY Contemporary vem desenvolvendo em Berlim ao longo dos últimos anos. Como ele coloca, “a des-outrização começa pelo reconhecimento de atos e processos de outrização”; isso significa fomentar processos de resistência a ser “outrizado”, imaginando alternativas à construção da identidade social e encorajando outras formas de filiação e produção simbólica. De modo similar, reagindo ao ressurgimento de exposições que enfatizam determinadas regiões geográficas, o autor observa como, em muitos casos, isso “tende a se tornar uma compensação pela falta de um envolvimento adequado com a questão da diversidade no nível da programação, da equipe de trabalho e do público”.

Este catálogo inclui também uma intervenção especial de Marilá Dardot. Nos últimos anos, a artista desenvolveu uma série de desenhos para colorir com base em imagens jornalísticas que frequentemente mostram representações de violência e morte. A artista emula o formato best-seller do livro de colorir, que acumula funções pedagógicas, de entretenimento familiar e até mesmo de terapia contra o estresse. No catálogo, assim como na exposição da 21ª Bienal, os desenhos de Dardot reproduzem uma série de notícias sobre situações ocorridas no Brasil entre 2017 e 2019 – período marcado por um virada conservadora na orientação política do país –, incluindo sempre a data e a fonte de onde cada imagem foi tirada. Assim, a artista nos convida a estabelecer uma relação própria com essas representações, que também poderão ser coloridas nas salas de exibição da 21ª Bienal.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. De 9 de outubro de 2019 a 2 de fevereiro de 2020. p. 41-45. São Paulo, SP, 2019.