Texto de curadoria geral Solange Farkas, 2003

Deslocamentos

O Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica chega aos 20 anos. Idade em que, mesmo num país jovem como o Brasil e num veículo recente como o vídeo, já é possível falar em passado. Tempo suficiente para perguntar: para que servem nossas imagens? A quem se destinam? Num mundo que privilegia a uniformidade, elegemos a diferença como caminho.

Reafirmamos essa crença na 14ª edição do Videobrasil. Momento em que a curadoria se confronta com a necessidade de reler-se, relendo aqueles a quem deu a palavra. É uma busca de sentido nas origens, na história e, com ela, um mergulho na produção nacional das duas últimas décadas. A essa retrospectiva se une um tema absolutamente atual: Deslocamentos, eixo curatorial desta edição. O mundo em movimento, curto em distâncias, rápido na internet, mas muito menos democrático do que se supunha. Com fronteiras controladas, dividido em info-ricos e info-pobres, com nacionalismos exacerbados e um número maior de imigrantes e excluídos. Por isso mesmo a idéia de Deslocamentos surge como tentativa de “deslocar-se” no globo para repensar o mundo e usar o movimento como motor da transformação.

A voz dos “sem papel”, daqueles que têm crenças e opiniões divergentes do consenso geral, está incluída na programação do Festival. Faz parte do mergulho “em seu próprio mundo” que os países da América do Sul, África, Ásia, Europa do Leste e Oceania oferecem, por exemplo, na Mostra Competitiva do Sul. É uma tendência reveladora do movimento dos países periféricos – em latitude e em desenvolvimento – do circuito sul.

Não por acaso, o grande homenageado nesta edição é o poeta, letrista, performático, colaborador e amigo querido Waly Salomão. Um contestador que pagou o preço da irreverência e com ela marcou presença na música, no vídeo e no pensamento brasileiro naquilo que ele tem de mais ousado e inovador. Movido pela necessidade de ultrapassar os limites da língua escrita e de levar a prática poética a outros campos da criação, Waly se aproximou da linguagem eletrônica desde os seus primórdios no Brasil. Menos conhecidas que suas participações na música e nas artes plásticas, as incursões do poeta servem como reflexão sobre as possibilidades do vídeo como veículo alternativo e contestador. Sua poesia e personalidade foram absorvidas e transformadas em obras por artistas renomados da videoarte brasileira. A contaminação e a intensidade de sua presença no universo do vídeo está registrada no DVD “Nomadismos: Homenagem a Waly Salomão”, produzido especialmente pela Associação Cultural Videobrasil, com a colaboração de inúmeros amigos, parceiros e colaboradores, para a abertura desta edição especial do Festival.

Se nestes anos o vídeo se impôs na produção comercial de grandes empresas, também se manteve como linguagem de resistência: ágil, barato, quase “livre” se comparado aos trâmites burocráticos e orçamentários que aprisionam a linguagem cinematográfica. A trajetória descrita pela arte eletrônica brasileira em 30 anos, contados a partir das primeiras experiências de artistas plásticos como Antonio Dias com formas primitivas do suporte eletrônico, integra o eixo histórico do Festival, exemplificada na mostra “Made in Brasil, Três Décadas do Vídeo Brasileiro”. A retrospectiva “No Ar e Fora”, com programas feitos para a televisão pelo performer Marcelo Tas, ilumina a trajetória de um dos principais agentes da ofensiva criativa do vídeo independente contra o conservadorismo das redes de TV.

O eixo histórico também faz o exercício da contemporaneidade, ao comissionar performances que relêem e reconstroem momentos-chave do vídeo brasileiro. Em “Onde estão os Heróis?”, Tadeu Jungle revisita seu vídeo “Heróis da Decadên(s)ia”, vencedor do 5º Videobrasil (1987). Em “Quem é Ernesto Varela?”, Tas narra as incursões hilariantes do seu personagem pelo mundo da política e do esporte no país. E em “Desconstruindo Letícia Parente: Marca Registrada”, Luiz Duva usa os procedimentos da manipulação eletrônica para reinterpretar a obra da artista, pioneira em vídeo no Brasil.

A vocação do Videobrasil de atuar como articulador da arte eletrônica que se diferencia nos leva a buscar novos espelhos, distantes do pensamento hegemônico. Essa procura resulta na exposição “Narrativas Possíveis – Práticas Artísticas do Líbano”, com a arte de um país que preserva a identidade e as diferenças diante do olhar institucional do mundo dominante. Como nós, os libaneses tentam resistir ao império do pensamento único. E é na arte eletrônica que mantêm sua singularidade.

Pela primeira vez, o foco do Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil se concentra na produção do sul geopolítico das artes. Os Panoramas representam com exclusividade a produção desse eixo, o que nos permite concentrar nossos esforços na localização das produções emergentes e revisar histórias sólidas na área da arte eletrônica em regiões vitais dessa geopolítica estética. A idéia é criar um mapa imaginário que nos deixe cotejar produtos díspares e conquistas correlatas, examinando semelhanças e dessemelhanças na tentativa de estimular artistas e curadores de culturas diversas ao debate formal e informal de nossas práticas, articulações e interações possíveis.

A mundialização da informação, sabemos, não se faz em benefício daqueles que pretendem manter crenças, opiniões e comportamentos divergentes. É na preservação de nossas diferenças que repousa a reafirmação de nossa identidade. Partindo desse ponto de vista, o Videobrasil busca se tornar um espaço estável para o debate e o intercâmbio de idéias, imagens e projetos entre os países da América Latina, Europa do Leste, África, Oriente Médio, Ásia e Oceania. Com a convicção de que temos muito a dizer – entre nós e ao resto do mundo.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 23 a 25, São Paulo, SP, 2003.

Texto de apresentação 2003

Eixo Histórico_Apresentação: Leituras e Releituras

Ao chegar à 14ª edição e à marca de duas décadas, o Festival elege a sua própria história como eixo curatorial paralelo. Este programa relê, à luz da contemporaneidade, figuras emblemáticas e obras-chave da história do vídeo brasileiro. Três performances, sobretudo, exemplificam esse olhar atualizado sobre a questão histórica. Em “Onde Estão os Heróis?”, Tadeu Jungle decupa e encena seu vídeo “Heróis da Decadên(s)ia”, vencedor do 5º Videobrasil (1987). Luiz Duva usa os procedimentos da manipulação eletrônica para desconstruir e reconstruir a obra “Marca Registrada”, da pioneira Letícia Parente (1930-1991). E Marcelo Tas revisita o desconcertante repórter Ernesto Varela, personagem-símbolo da contaminação da linguagem das produtoras independentes na TV aberta, em “Quem é Ernesto Varela”.  Uma mostra mapeia as incursões de Tas pela TV, incluindo “Fora do Ar”, programa que criou para a Globo e que jamais foi exibido.

Membro do Conselho Consultivo da Associação Cultural Videobrasil e criador do personagem Waldez, uma espécie de Ernesto Varela local, o curador argentino Jorge La Ferla assina o ensaio “Contra o espetáculo do consenso”, em que fala da importância do Videobrasil para a arte eletrônica latina – e de cuidar para que ela siga existindo em um panorama dominado por decadência e entretenimento. Gabriel Soucheyre, diretor do festival de videoarte de Clermont-Ferrand, na França, assina uma seleção de obras de artistas franceses que passaram pelo Videobrasil, de Robert Cahen a Jérôme Lefdup – e que compartilham com a videoarte do circuito sul “o gosto renovado por uma pitada de risco que os guia numa busca constante, seja ela artística, estética, filosófica ou política”.

A trajetória descrita pela arte eletrônica brasileira em 30 anos, contados a partir das primeiras experiências de artistas plásticos como Antonio Dias com formas primitivas do suporte eletrônico, está descrita e exemplificada na mostra “Made in Brasil, Três Décadas do Vídeo Brasileiro”. Com pesquisa e curadoria do crítico Arlindo Machado, ela reúne 50 obras de dezenas de artistas fundamentais, dos pioneiros (como Dias, Aguillar e Annabela Geiger) às produtoras independentes e os maiores expoentes das formas mais contemporâneas de videoarte.

20 anos

O Videobrasil surgiu há 20 anos para mapear a produção dos artistas que começavam a experimentar o suporte eletrônico, então recém-surgido. Nos primeiros dez anos, em edições anuais e nacionais, serviu de vitrine para a produção independente que explodia – e contaminaria a impermeável programação das TVs com novas cabeças e novas linguagens –, e para experimentos promissores na área da videoarte, vista nos espaços sagrados das artes da época com resistência. Realizado até ali pela Fotoptica e pela Secretaria de Estado da Cultura, reagiu à relativa estagnação que se seguiu ao surto inicial de crescimento da cena expandindo seu foco para a produção do sul geopolítico dos artes, na convicção de que artistas brasileiros e dos países da América Latina, Europa do Leste, África, Oriente Médio, Ásia e Austrália se beneficiariam de uma plataforma permanente de contato e troca.

Bienal e internacional desde 1992, o Festival conquistou nessa passagem a parceria com o SESC São Paulo, voltou-se de forma definitiva para a arte eletrônica e ganhou a sustentação da Associação Cultural Videobrasil, que o produz, mantém parcerias com os principais centros de mídia do mundo e realiza documentários sobre artistas do circuito, entre outros produtos. Referência internacional para a produção do circuito sul, a Associação conserva e faz circular o maior acervo de arte eletrônica do país, com 4 mil obras que testemunham duas décadas de uma produção rica e instigante – até mais do que previam os criadores do Videobrasil há 20 anos.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 186 a 187 , São Paulo, SP, 2003.

Texto crítico Stephen Wright , 2004

Deslocamentos

A 14ª edição do Videobrasil marcou ao mesmo tempo os 20 anos de existência do mais importante festival de arte eletrônica do hemisfério sul, dedicado este ano às iniciativas artísticas próprias do "circuito artístico do Sul". Como assinala Solange Farkas, diretora e fundadora do festival, "no processo dialético de internacionalização da produção artística, Videobrasil se esforça desde sua origem em buscar e determinar nossa identidade audiovisual enquanto latino-americanos e, de modo mais geral, enquanto produtores do hemisfério sul".

Obviamente, o objetivo do festival não é tanto promover uma questionável especificidade estética da linguagem audiovisual do Sul (que de qualquer forma seria ilusória, considerando-se a diversidade da produção em países tão diferentes como Argentina, Índia, Líbano,...), mas dar um maior coeficiente de visibilidade ao que quase sempre é negligenciado ou então absorvido pelas grandes capitais da arte como Nova Iorque, Paris ou Berlim.

Como disse o videasta libanês Akram Zaatari - presente no festival tanto pela retrospectiva que lhe foi dedicada, como pelo fato de ser co-curador, com Christine Tohme, da densa exposição da cena beirutiana, "Narrativas Possíveis", financiada pelo festival, é justamente este circuito do sul que lhe permitiu mostrar seu trabalho em Beirute, em São Paulo e na África sem precisar passar por cidades como Paris ou Nova Iorque, tendo de submeter aos seus critérios de reconhecimento e validação. A este proprósito, um comentário sobriamente feito em voz off no vídeo I love my Índia (2003) por Tejal Shah (um dos filmes de maior impacto entre os 80 presentes à competição) parece particularmente pertinente: "Seeing nothing is a political an act as seeing something" ( não ver nada é um ato tão político quanto ver alguma coisa). A política do ver a partir da periferia está de uma maneira ou de outra no âmago de quase todas as obras apresentadas no festival.

Infelizmente, esta dimensão política por vezes limitou-se seja vezes ao desvio das imagens com as quais o planeta inteiro tem sido inundado, e que são demasiado fácil caricaturar, seja a uma espécie de imperativo categórico de depoimento, que corre o risco de reduzir as pessoas a ferramentas de depoimento (como em XX (2002), realizado por um coletivo feminino brasileiro).

Ora, em Cows (2002), vídeo realizado pela Argentina Gabriela Golder que, merecidamente, ganhou o grande prêmio do festival, o desmoronamento econômico da Argentina, e as conseqüências devastadoras da "globalização" para seus habitantes, é tratado por meio de imagens televisivas de um fait divers: as imagens, saturadas de vermelho e amarelo, mostram pessoas abatendo e decepando bois às pressas. Sua significação só se torna legível no final do filme, quando ficamos sabendo que durante o caos provocado pela crise financeira, bandos de gente atacavam espontaneamente os caminhões que transportavam gado, numa economia em que a troca não tinha mais sentido. O sentido das imagens precede e excede sua significação, que não o esgota. A eficácia do filme está num princípio simples, próprio ao meio em questão : que o documento é inteiramente ficcionado e a ficção fielmente documentada.

Num texto que tenta explicitar as implicações políticas subjacentes a esse "circuito do Sul", o crítico brasileiro Eduardo de Jesus define condições para a emergência do que chama de "novos regimes de visibilidade". Compreender imagens hoje, afirma ele, é uma tarefa quase impossível, pois para fazê-lo, seríamos obrigados a levar em conta todos os mecanismos técnicos e discursivos de produção... ligados às estruturas políticas do controle, que expõem a sociedade inteira a um fluxo de imagens que condicionam visões pré-determinadas da realidade". Assim, prossegue ele, nossa única alternativa é transpor o charme estético dessas imagens sedutoras e tentar buscar outras produzidas em outros circuitos (ou como uma forma de resistência dentro dos circuitos principais), capazes de nos associar ao nosso ambiente mais imediato, com nossas preocupações, a fim de que elas sejam percebidas de uma forma não logística." Salientando a dimensão ética de nosso dilema, ele afirma que "esta visibilidade reorienta a construção das identidades", condiciona o arquivamento da realidade e participa da definição de paisagens políticas sem o menor engajamento de responsabilidade para com a coletividade".

Só podemos estar de acordo com a estrutura de sensibilidade subjacente a essas observações, mas podemos também nos perguntar se a noção de "circuito" permite uma verdadeira análise de uma situação complexa. Pois o que nos interessa não seria justamente em que economias de produção de sentido esses circuitos se inscrevem? Esta questão me parece ser de importância estratégica decisiva e o mérito de um festival como Videobrasil foi tê-la colocado. Pois a programação inteira nos convida a repensar a economia da produção, da difusão e da recepção de imagens em termos de "circuitos periféricos", suscetíveis de lançar um desafio aos circuitos dominantes do Norte e do Oeste. Sem dúvida, a recusa de uma hegemonia unipolar em termos de produção e de validação de imagens é urgente. Mas já não estaria o hemisfério sul, através da imigração e das pessoas dele originárias, presente no hemisfério norte? Seguramente está, assim como o Norte - pela própria hegemonia que se deseja conter - é onipresente no Sul. Portanto, se não se trata de negar a validade do modelo do circuito, à metáfora do fluxo e da circularidade que o informa, parecece-nos preferível a metáfora da paisagem, e mais especificamente da "paisagem ontológica", sem dúvida mais apropriada para descrever tanto a forma como o conteúdo do dilema em questão.

Tanto mais que o próprio título do festival deste ano - "Deslocamentos" - nos convida a pensar a produção videográfica em termos de espaços topográficos. E se o modelo de "circuito" descreve bem um itinerário de disseminação, por outro lado nada diz em relação à produção de sentidos, de formas e de sensibilidade. Quase por definição, o espaço ontológico da videografia oscila entre o espaço íntimo e o espaço urbano, às vezes sobrepondo um no outro. Freqüentemente, a disposição de espaços ontológicos quase nos faz confundi-la com o urbanismo : assim como os agenciamentos urbanos, concebidos para tornar possível a coexistência espacial das atividades incompatíveis, a organização dos territórios ontológicos visa evitar, atenuar e por vezes acentuar conflitos entre modelos de mundo opostos. A ficção é uma forma de racionalidade de espaço ontológico, o documentário, outro. E ambos estavam amplamente representados no festival, o que prova que a organização do território ontológico é uma questão para os artistas - mesmo que isso não salte aos olhos num contexto onde a economia geral e simbólica dos signos entra em crise, como ocorre em quase todas as partes do mundo hoje.

O que um festival como Videobrasil nos propõe é uma surpreendente diversidade de paisagens ontológicas. Surpreendente no sentido em que, no dia-a-dia, a maioria de nós presume que vivemos num mundo ontologicamente estável, comum a todos. E se a maior parte das sociedades reconhece, ou tolera, uma certa diversidade de paisagens ontológicas, todas empregam meios que tendem a reforçar a idéia segundo a qual uma dessas paisagens corresponde ao mundo tal qual ele "na realidade" é. Ora, essa espécie de chauvinismo ontológico cria incessantes transtornos, na medida em que fatores como religião, classe social, nacionalidade constituem traços normativos de destaque em todo território ontológico. Tipicamente, uma paisagem ontológica é constituída por conjuntos de crenças e de heresias que se acavalam, em que ruínas e relíquias ontológicas se acham dispersas entre configurações mais recentes (em outras palavras, nenhuma paisagem ontológica nunca é inteiramente homogênea, embora forças homogeneizantes trabalhem constante e obrigatoriamente para isso). A concorrência entre paisagens vizinhas conduz invariavelmente a processos delicados - e geralmente violentos - de fusão ontológica : a saber, à montagem, à colagem, e à ordenação dos mundos existentes.

Quando os habitantes de paisagens ontológicas heterogêneas se encontram, ou quando, voluntariamente ou à força, transitam entre uma e outra paisagem ontológica, emergem sintomas de stress ontológico - uma patologia que se manifesta seja sob forma de niilismo, seja sob forma de nostalgia. Os Niilistas supõem que a existência simultânea de vários modelos ontológicos nega a credibilidade de todos ; em sua perspectiva mundana, toda modelização ontológica é fictícia, e tendem a apreciar a versão que avança ao máximo seus interesses. Os Nostálgicos, em contrapartida, reivindicam uma certa estabilidade ontológica, que eles tentam impor aos outros quando têm meios para isso ; rejeitam qualquer multiplicidade ontológica, esforçam-se em demonstrar que sua ontologia vernacular combina perfeitamente com seu território e tentam expor o caráter fictício das ontologias vizinhas. Com freqüência, demasiada freqüência, no mundo contemporâneo parece não existir uma alternativa a essa duas visões do mundo.

O mérito de Videobrasil é reunir artistas que parecem viver seu stress ontológico trabalhando nos interstícios de várias paisagens ontológicas, evidenciando as anomalias e as falhas estruturais, ou infiltrando essas paisagens eles mesmos, para corromper melhor agenciamentos semióticos estáveis. Pensamos em 04.11.02 (2002), de Sagi Groner, depoimento assustador da alienação dos jovens israelenses face à violência cotidiana ; ou nas desconstruções da ideologia subjacente à identidade pessoal em 6=36 (2001) ou ainda em Personal ? Id? Card (2002) do sérvio Miodrag Krkobabic. Os filmes deste tipo mostram que se a colisão frontal entre dois modelos ontológicos - a saber, a colonização de um espaço ontológico por uma ontológica predadora - desencadeia o conflito, a incursão furtiva praticada por artistas nos espaços ontológicos divergentes, na medida em que operam em várias paisagens ao mesmo tempo, pode se revelar eficaz ao pôr a nu estratagemas dos empreendedores de niilismo como dos provedores de nostalgia. São essas lógicas de infiltração - de fronteiras, de representação e outras características da paisagem -, navegando entre o percalço do niilismo e da nostalgia, que caracterizam as melhores obras mostradas na última edição de Videobrasil.

Stephen Wright
crítico de arte e redator correspondente de Parachute na Europa

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Tradução do francês para português: Ligia Ferreira

WRIGHT, Stephen. "Deslocamentos". Parachute, Quebec, Canadá: Conseil des Arts du Canada, n.114, p.7 e 8 do encarte incluso na revista, abril a junho de 2004.

Ensaio Jorge La Ferla, 2003

Eixo Histórico_Contra o espetáculo do consenso

Este aniversário é certamente uma comemoração importante. O Videobrasil existe desde suas origens como um fórum em que as expressões do audiovisual independente brasileiro, latino-americano e do hemisfério sul vêm sendo o grande painel onde se exibe a potencialidade criativa das artes audiovisuais eletrônicas independentes.

Considerando o difícil contexto deste novo milênio, a permanência do Videobrasil é um marco dentro de um panorama mundial em que os meios de massa predominam com sua venda de consenso e espetáculo. O vídeo como meio, e ideologia do alternativo e independente, foi abandonado por conhecidas instituições agora voltadas exclusivamente à propaganda de caráter digital, que ainda não demonstrou poder produzir grandes obras artísticas, e que se destaca pela falta de grandes autores e teóricos.

O tema do audiovisual independente propõe um espaço e tempo em conflito, pelas mudanças na materialidade dos suportes tecnológicos, pela pseudoglobalização do mercado audiovisual e pelo predomínio do equipamento digital em todos os processos produtivos. Além de um suporte em via de desaparecer, como é o eletromagnético, a defesa nominativa do vídeo implica uma clara posição ideológica que se situa além do suporte, já que defende o alternativo, o autoral e o criativo no audiovisual. A obra artística de experimentação independente possui um valor importante em um mundo dominado por umas poucas corporações que se movem fora do âmbito e das leis de estados em decadência. Esses organismos, dignos representantes de um império reconhecido pelo nível decadente de seus espetáculos, possuem como único modelo o benefício econômico, a submissão política e o domínio comercial global expressado por um fluxo audiovisual caracterizado por sua uniformidade. Oferecer alternativas a esse magma é uma tarefa fundamental oposta aos grandes eventos e festivais audiovisuais mais importantes.

Pelo Videobrasil passaram os influentes e as figuras mais destacadas, famosos e desconhecidos, da criação audiovisual mundial. Esse evento também se destacou como um fórum de relações que significou encontros e contatos para os realizadores de todo o planeta. No entanto, creio que a essência da existência e do espírito do Videobrasil foi a convocação nacional que realizou. O Videobrasil nasceu voltado ao vídeo brasileiro para imediatamente produzir uma tensão muito produtiva entre o âmbito local e o âmbito internacional. Nessa alquimia encontrou sua maior originalidade. O Brasil, logo após a gênese que implicou o movimento chileno no continente, foi pioneiro no desenvolvimento do vídeo independente e atualmente é o país com maior número de artistas e produtores audiovisuais interessantes. Durante os anos 1980, a vontade de fazer e a possibilidade de acesso a equipamentos portáteis de vídeo produziram uma eclosão de autores e produtoras, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Desde a típica procura artística paulista, sempre buscando um canal de expressão individual, até as realizações de produtoras independentes para a televisão, aos grupos de vídeo que apontavam para uma ação social e política, o vídeo marcou época no meio audiovisual brasileiro. Outra característica fundamental do Videobrasil foi a de abrir espaço a todas essas manifestações brasileiras. E isso apesar das críticas intolerantes de alguns puristas da arte audiovisual. A confluência de videoartistas, de realizadores de produtos televisivos junto com trabalhos de vídeo popular centralizados na A.B.V.P., Associação Brasileira de Vídeo Popular, ou em televisões piratas assinalou essas características de alteração e de abertura. Desse modo, como também através das seleções de todas as edições do Videobrasil e de suas atividades de difusão nacionais e internacionais, é praticamente uma das poucas possibilidades para uma visão ampla do vídeo brasileiro. Poucas instituições do país podem oferecer algo similar. A problemática situação institucional de nossos países, na periferia do mundo globalizado, torna complicada a manutenção de qualquer acervo cultural e artístico audiovisual, e isto é ainda mais complexo quando se trata de material independente. O arquivo do Videobrasil deve ser o mais completo sobre a matéria no Brasil, e, pelo menos, na América Latina. Este arquivo é de um valor incalculável e é fundamental que seja preservado.

Aqueles jovens realizadores de vídeo que se mostraram nas primeira edições do Videobrasil incursionaram logo pelo âmbito da TV, outros se voltaram a atividades mais rentáveis e menos independentes, mas foram contaminando diversas instituições do sistema, desde uma diferença de critérios que implicaram uma renovação do documental e outros formatos televisivos, dos vídeos corporativos e institucionais, e dos vídeos musicais. Essa diversidade e mistura de energias gerou uma profusa quantidade de obras em vídeo criadas por artistas e realizadores que encontraram seu lugar na especificação de cada meio e no hibridismo de suas combinações, entre os quais poderíamos mencionar tranqüilamente mais de uma dezena de autores que consideramos tenham marcado um caminho de criação e uma época única de obras notáveis no âmbito mundial. O evento Videobrasil foi uma das instituições encarregadas de convocá-los e difundi-los.

Lembremos que hoje, mais do que nunca, quando mais fechado, monopolizador e mafioso está o mercado audiovisual, muitas escolas, centros e universidades em todo o mundo lançam no mercado milhares de estudantes que acabam produzindo um certo tipo de produto audiovisual uniforme. Pensamos que são as instituições independentes voltadas ao audiovisual as que têm a tarefa de formar artistas, comunicadores e realizadores audiovisuais para gerar uma teoria e motivar uma prática experimental com todo o espectro de linguagens, formas, suportes audiovisuais e sua combinação. Há que enfrentar com a diversidade a uniformidade no ensino, dada pelos meios que se têm adaptado à situação de um mercado audiovisual que só concebe produtos de parâmetros estabelecidos. O Brasil também nesse sentido se destaca, por ter uma linha de pensadores, professores e teóricos cuja tarefa é gerar uma prática aberta e experimental às formas audiovisuais. Talvez esta confluência seja outra das causas da alteração e do alto nível do audiovisual independente brasileiro que é convocado nas sucessivas edições do Videobrasil.

Pouco se poderá esperar das corporações multimídia, ultraconcentradas em poucas empresas matrizes de grande poder financeiro e de alcance planetário no que diz respeito à criação de produtos audiovisuais de qualidade, com uma marca de autor, de caráter experimental, com fins e usos artísticos. Isso obviamente é uma questão política que nunca será mudada pelos governantes atuais. Por isso, organizações e eventos como o Videobrasil são uma garantia exemplar de como gerar outros espaços para uma expressão audiovisual valiosa, original e diversa.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 207 a 209, São Paulo, SP, 2003.

Depoimento Carlos Nader, 2003

À Imagem do Poeta

“O poeta trabalha com imagens”, disse a professora primária a uma classe distraída, e também a mim, aluno silente em cujo espírito a frase caiu como um raio. Um raio real, de trovão e voltagem metafóricos, ou seja, também reais.

Fiquei tonto. Ainda hoje, lembrando aqui, sinto um pouco mais dessa tontura benigna que a frase gerou. “Como assim, imagens?”, pensei absorto num ambiente de vida cujo lado interior era o gás ainda liquefeito da minha alma nova e o lado exterior era a sala de aula, logo a sala de aula, um dos cenários fundamentais da etapa inicial do processo civilizatório, aquela em que sondas tão inteligentes quanto as bombas americanas são lançadas dentro desse gás da gente para uma missão de guerra cirúrgica: apartar a palavra da paisagem, extrair o nome da imagem, dissociar definitivamente a realidade da imaginação.

“O poeta trabalha com imagens.” Nem sei se o paradoxo da frase e da situação chamou a atenção dos meus colegas. Mas eu fiquei mesmo muito confuso. Na boca da professora, o poeta já parecia querer contradizer tudo aquilo que a própria professora estava lá para ensinar. O que talvez eu ainda não tivesse entendido a respeito dessa introdução da poesia no currículo, é que ela é antes de tudo uma chance oficial dada à criança de reaprender tudo aquilo que ela já nasceu sabendo. Imaginação é paisagem. Chão é Sonho. Palavra é Imagem. Não é?

Dos desregramentos que a poesia aplicou aos meus sentidos, a frase do primário deve ter sido o primeiro. Mas o maior, sem dúvida, foi ter conhecido Waly Salomão. Não um poema de Waly, mas a sua própria pessoa primária. Por uma simples razão. Como quase todos os poetas, Waly projetou imagens no papel. Como quase nenhum deles, Waly projetou a poesia imediata na tela da vida. Na cena da realidade. Alterando-a, ou, pelo menos, alterando-me, para sempre.

Lembro do nosso primeiro encontro. Fui levado pelo Duncan, um amigo comum. Lembro bem. Em HDTV, com som digital e edição emocional, afinal, como dizia o próprio Waly, “a memória é uma ilha de edição”. Faz uns 15 anos. Waly estava hospedado no mais banal dos apart-hotéis de São Paulo. Toquei a campainha. E ele abriu a porta de uma daquelas amizades instantâneas. De humor à primeira vista. Conversamos, numa troca justa, ele entrando com o verbo e eu com a gargalhada. Uma hora, o telefone tocou. Ele atendeu à janela, olhando para fora, para a cidade. Atrás dele, procurei discretamente o relógio, de soslaio. Pra quê. “Tá atrasada, querida?”, ele perguntou, virando direto na minha direção. Enrubesci, claro. A professora primária não tinha me avisado que poeta tem um olho nas costas.

“Não é nas costas não, é no cu mesmo.” Ele não disse isso. Mas foi por acaso. Quem conviveu com o Waly sabe que ele certamente me diria uma coisa dessas, mesmo tendo sido apresentado a mim poucos minutos antes. Sempre em sintonia radical com os versos de Oswald de Andrade que ele adorava citar: “poesia é tudo: jogo, raiva, geometria/ assombro, maldição e pesadelo/ mas nunca/ cartola, diploma e beca”. A poesia 24 horas de Waly vinha às vezes travestida em blagues ácidas e pedestres, ou em agressividades quase sempre macias, congregadoras, golpes certeiros no apartheid existencial em que pode se transformar a boa educação. E onde quer que se localizasse de fato o tal do olho, a impressão era de que ele fosse mesmo onisciente. Na vida e no papel. A poesia de Waly captava/lançava cut-ups raciocinados de/para tudo quanto é lado do tempo/espaço. Como se pretendesse ser algum radar total, alguma câmera irrestrita, algum browser absolutamente esfomeado, conectado à vida em banda larga.

Não sei se a presença de Waly tornava as coisas mais reais ou irreais. Mas sei que ela certamente tornava as coisas mais. Essa experiência de mundo, tão ampla, teve um impacto enorme na minha maneira de pensar. Na vida e no vídeo. Um dia, andando pelas calçadas do Leblon, indo para nenhum lugar, conversávamos mais uma vez sobre imagens. Eu disse que queria ver o vídeo bem diferente do cinema, não como um projeto de realização, não como uma meta. Se o filme, o filmão, é sempre o resultado de um árduo e longo caminho para realizá-lo, eu queria que o vídeo fosse apenas o documento de um caminho de vida, de uma experiência. E Waly traduziu toda essa pretensão num poeminha simples, dedicado a mim, mas cujo título poderia muito bem ser dedicado à sua própria obra, como um todo:

Pan Cinema Permanente

Não suba o sapateiro além da sandália
– legisla a máxima latina
Então que o sapateiro desça até a sola
Quando a sola se torna uma tela
Onde se exibe e se cola
A vida do asfalto embaixo
e em volta.

A partir daí, não paramos de colaborar um com o outro. Ele fez performances em quase todos os meus vídeos ou instalações, em diferentes cantos do planeta, sempre apoiados, de uma maneira ou de outra, pelo Videobrasil. Mas numa hora dessas, ainda a poucos dias de sua morte, tenho que ser muito sincero e confessar que costumava sentir uma ponta de decepção ao final de cada trabalho que realizamos juntos. Não que não tivéssemos dado a alma. Não que não tivéssemos feito sucesso. Pelo contrário. Demos. Fizemos. É que, na comparação inevitável, a performance de vida de Waly era uma obra-prima insuperável.

São Paulo, Julho de 2003

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 221 a 223, São Paulo, SP.

Texto institucional Danilo Santos de Miranda, 2003

Idéias e Imagens em Trânsito

A parceria entre o SESC de São Paulo e a Associação Cultural Videobrasil vem se fortalecendo desde 1992. Deslocamentos, eixo curatorial da 14ª edição do Festival Internacional de Arte Eletrônica, congrega artistas da América Latina, África, Caribe, Sudeste Asiático, Oceania, Europa do Leste e Oriente Médio.

Esses artistas estão engajados no entendimento de suas raízes, mas, também, no questionamento de dilemas e contradições impostos a partir de confrontos éticos, sociais, políticos e ideológicos; disputas territoriais, lutas pela sobrevivência, manutenção ou rompimento de valores. Artistas de um mundo abalado e em crise, constituído sob a ótica da globalização, da pós-modernidade e de uma nova ordem que se instaura sob o signo da força e da guerra. Se a pungência do tema em debate, Deslocamentos, deve-se à sua contemporaneidade do ponto de vista geopolítico, da mesma forma diz respeito ao fluxo de idéias em um mundo de fronteiras virtuais sem limites, contrapostas à vigilância e ao controle imperativos e em níveis cada vez mais altos, observados nas fronteiras geográficas propriamente ditas, tal qual definidas hoje. Deslocamentos abre portas a uma potencial percepção da alteridade, de formas de ver o outro e, quem sabe, sentir-se outro. Nesse contexto, o Videobrasil confirma-se como via possível para estabelecer diálogos, conceber e elaborar leituras, investigar a produção artística dos países participantes, estimulando, em especial, a interação entre pessoas de diferentes culturas.

Como evento essencialmente multicultural, o Festival vincula-se com precisão às propostas desenvolvidas pelo SESC de São Paulo a fim de promover a integração de idéias e o convívio com as diferenças.

Esses princípios têm conduzido a realização de inúmeras atividades nas áreas de cultura, educação e lazer, iniciativas não raro inovadoras e marcadamente reconhecidas pela originalidade, pelo rigor e pelo altíssimo nível imprimidos em uma programação direcionada, em caráter prioritário, aos trabalhadores do comércio e serviços, seus familiares e à comunidade em geral.

Como fórum atento às novas linguagens, aberto à vanguarda e ao reconhecimento de vozes expressivas na videoarte, o Festival Internacional de Arte Eletrônica distingue-se como campo aberto à difusão, intercâmbio, análise, pesquisa e experimentação, fatores que concorrem para estreitar os vínculos entre a Associação Cultural Videobrasil e o SESC de São Paulo.

Essa parceria, voltada à construção contínua do conhecimento em arte digital e novas mídias, representa e dá voz à parte significativa da produção mundial em videoarte, apontando para debates relevantes e discussões em processo a respeito da arte, da técnica e do imaginário do homem moderno.

Em 2003, o Festival Internacional de Arte Eletrônica compõe-se de dois eixos.

O Eixo Contemporâneo apresenta a Mostra Competitiva do Sul, as Narrativas Possíveis: Líbano, sob a curadoria de Christine Tohme em parceria com Akram Zaatari, e os Panoramas, programa especial composto de performances, single-channel e painéis com a participação de curadores e artistas especialmente convidados para representar e discutir as mais expressivas articulações em torno da arte contemporânea nos países do chamado circuito sul.

No Eixo Histórico encontram-se as retrospectivas de Marcelo Tas e Marina Abs, a mostra Made in Brasil, ampla retrospectiva da produção brasileira em vídeo desde os anos 1970 até hoje, com curadoria de Arlindo Machado, e o Painel França–Brasil, seleção de Gabriel Soucheyre de vídeos franceses produzidos por artistas que participaram desses 20 anos de história dos festivais.

Para o SESC de São Paulo, o Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica revela uma especial confluência de propósitos com os objetivos traçados pela instituição. Objetivos que exprimem o refinamento e a pertinência dos recortes empreendidos a cada nova edição da mostra, motivo pelo qual as incentivamos, partilhando de sua realização.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 18 e 19, São Paulo, SP, 2003.