Ensaio 2005

"Riscos do Tempo Presente" - por André Brasil, Christine Mello e Eduardo de Jesus


Riscos do Tempo Presente


por André Brasil, Christine Mello e Eduardo de Jesus


Poesia é risco. O célebre poema-síntese, enunciado, em suportes vários, por Augusto de Campos, reverbera, estranha e inversamente, na fórmula místico-empresarial de Andrew Grove(1): “só os paranóicos sobrevivem”. Para o diretor da Intel, em uma sociedade do risco e da instabilidade, é preciso ter a sensação de permanente ameaça. Diante da cínica lucidez de Grove, a conclusão imediata é a de que, para além dos seus processos de exclusão e de suas disparidades econômicas, o capitalismo contemporâneo opera perversamente no âmbito das subjetividades: somos incitados a nos posicionar contra tudo e contra todos, em uma estratégia individualista e competitiva arriscada.


Seja qual for o nome que damos a ela - sociedade do risco, da incerteza ou da instabilidade - a experiência contemporânea é frágil: vivemos na corda bamba, em um equilíbrio precário entre a perspectiva de, afinal e uma vez por todas, usufruir os avanços prometidos pela tecnociência e, por outro lado, a perspectiva - alardeada tanto pela mídia quanto pelo discurso científico - do próprio fim (da história, da arte, da ciência, da filosofia, do humano, da vida).


Antes de tudo, o risco é uma retórica (o que não quer dizer que não seja real e não interfira concretamente em nossa vida). Quando se concretiza, ele já se tornou uma catástrofe, um dano. Para que continue sendo um risco, é preciso que ele se mantenha latente, iminente, prestes a acontecer. Por isso, o risco é sempre algo que se situa no limite do discurso, em suas bordas.


Hoje, a mídia parece ser uma das principais fontes do discurso acerca do risco: ali, estamos sempre na iminência de uma catástrofe ambiental, de uma guerra nuclear, de um atentado terrorista, de contrair um vírus incurável, de perder o emprego, de ter a casa assaltada, de atravessar uma crise econômica... cada vez mais presente em nosso cotidiano, em sua extrema visibilidade midiática, a retórica do risco acaba por legitimar o controle. Diante do risco sempre próximo, reivindicamos mais e mais segurança, mais e mais polícia, mais e mais vigilância, mais e mais controle. Como nos sugere Giorgio Agamben(2), a instabilidade legitima a transformação do poder político em poder de polícia.


Ou seja, a experiência contemporânea deriva de um desejo contraditório: convocados a nos tornar empreendedores de nós mesmos, incitados a participar das redes de informação, entretenimento e consumo, precisamos continuamente nos arriscar, mas - não, obrigado - não queremos arcar com os riscos. O que imediatamente deriva desta contradição é uma espécie de assepsia da experiência: não sem que, antes, ela seja traduzida em informação, essa nova forma de comunicação que tudo esclarece, tudo explica(3).


Assepsia do espaço, que se torna cada vez mais transparente, visível, mapeado e monitorado em suas dimensões macro e microfísicas. Assepsia do corpo, que pode ser esquadrinhado e investigado por instrumentos óticos cada vez mais sofisticados e que, descoberto seu código de funcionamento, torna-se passível de ser manipulado indefinidamente.


Mas, aqui, é principalmente do tempo que se trata. Sabemos que as diversas técnicas desenvolvidas no campo da comunicação e da informática, da biotecnologia e da engenharia genética alteram nossa experiência do tempo, que parece se pautar cada vez mais pelas idéias de previsibilidade e antecipação.


Através de técnicas de simulação cada vez mais sofisticadas, utilizadas em campos os mais diversos - da genética às finanças - tornamos previsível o que é imprevisto, traduzimos o possível em informação passível de ser medida, calculada, previamente experimentada. Se, para Bellour, “o tempo constrói a imagem devorando-a, como um cigarro se consumindo”(4), o filme agora é reverso: é a imagem que - plástica, dinâmica e processual - consome o tempo, em sua voracidade por antecipá-lo.


Acaso, imprevisto, devir: aquilo que o futuro apresenta de risco, virtualidade e diferença irredutível em relação ao presente passa a ser monitorado, controlado através de todo tipo de técnica preventiva e de simulação. Ou seja, para reduzir o que a experiência possui de “arriscado” precisamos nos cercar de mais e mais informação, o que torna o nosso um cotidiano cada vez mais in-formado. Como diria Jean-Louis Comolli(5), vivemos uma vida cada vez mais roteirizada, protegida do “risco do real”.


Nesse contexto, a imagem eletrônica e digital possui um estatuto ambíguo. De um lado, tornada informação, ela pode participar de dispositivos de vigilância e simulação, ampliando a transparência do espaço e a previsibilidade do tempo. De outro, apropriada por estratégias artísticas e políticas contemporâneas, pode reinventar espaços de descontrole e abrir novamente o futuro ao risco. Mas, agora, trata-se de um risco de novo tipo, o risco da experiência estética, aquele que é capaz de reconfigurar o nosso campo de possibilidades, de ampliar o nosso horizonte de expectativas e o âmbito daquilo que considerávamos “pensável”.



Riscos eletrônicos


Em sua extrema instabilidade - “poeira nos olhos”, na feliz expressão de Fargier(6) - a imagem eletrônica se insere histórica e semioticamente entre os vários campos artísticos e comunicacionais, operando infiltrações, passagens entre um e outro, transformando-os e sendo por eles transformada. Hoje, mais do que nunca, a produção eletrônica vive uma proliferação expressiva, gerando formas impuras, imprevisíveis: formas que, por isso mesmo, não se adequam comodamente às classificações genéricas. Tudo isso contribui para tornar o campo da produção eletrônica uma zona de risco, espaço de tensão entre linguagens e estratos culturais.


Trata-se também de uma produção de caráter expansivo. As imagens eletrônicas - analógicas ou digitais - transbordam os limites da tela, redesenham os espaços urbano e doméstico, abrigando e transformando as subjetividades. Se, para Philippe Dubois(7), vivemos uma espécie de “estado-vídeo” é porque, da televisão às câmeras de vigilância, do videoclipe aos painéis eletrônicos, a experiência contemporânea é, cada vez com maior intensidade, mediada e reconfigurada pelos vários dispositivos eletrônicos, que operam ubíqua e instantaneamente. A imagem eletrônica torna-se, dessa forma, um estado da imagem e da própria realidade: através dela se processam e se pensam as outras imagens e nossa presença no mundo.


Mas, para além de seu caráter expansivo e permeável, a imagem eletrônica deve ser considerada arriscada principalmente pela sua dimensão de acontecimento. Essa dimensão pode ser investigada em vários sentidos. Um deles diz respeito à forma particular como a imagem eletrônica opera a inscrição do tempo: sua dimensão temporal, seu caráter processual a transformam num verdadeiro acontecimento eletrônico. Como esclarece Arlindo Machado, o quadro videográfico não existe no espaço, mas na duração de uma varredura na tela. As imagens eletrônicas, complementa ele, “não são mais expressões de uma geometria, mas de uma geologia, ou seja, de uma inscrição do tempo no espaço. Dessa forma, o tempo já não é, como era no cinema, aquilo que se interpõe entre um fotograma e outro, mas aquilo que se inscreve no próprio desenrolar das linhas de varredura e na superposição no quadro”(8). Acontecimento eletrônico, portanto, que vai se tecendo, processualmente, no momento mesmo em que a imagem se forma na tela. Risco da imagem que atravessa e é atravessado pelo risco da experiência.


Há outra forma de se pensar o estatuto de acontecimento próprio à imagem eletrônica. Menos recorte de um instante do que fluxo ininterrupto de sinais luminosos, a imagem eletrônica se processa em tempo real e permite, muitas das vezes, a coincidência entre o momento de produção da imagem e o de sua exibição. Tempo real aliado a telepresença faz da nossa uma sociedade que se processa ao vivo, em constante superposição, em um presente expandido, de diferentes espaços e temporalidades. Podemos acrescentar criticamente, com Virilio(9), que, potencializadas pelas tecnologias eletrônicas e digitais, as imagens transmitidas instantânea e remotamente dominam a coisa representada, provocando ali uma espécie de acidente, um curto-circuito entre presença e distância. Configura-se, assim, uma “era paradoxal das imagens”(10).


Apesar de todas as ambigüidades políticas e estéticas produzidas por esse paradoxo, a abertura ao tempo real, ao fluxo ininterrupto do tempo presente, faz com que a imagem esteja aberta também ao acontecimento em sua imprevisível emergência. A contingência da captação da imagem aliada à sua instantânea circulação pode tornar-lhe permeada de aleatoriedades, eivada de pequenos (quase) acontecimentos.


Para além de seus aspectos meramente técnicos ou tecnológicos, mas deles indissociável, a apropriação estética da imagem eletrônica se efetua tendo em vista, portanto, seu caráter temporal, processual e de acontecimento. O artista que lida com a matéria-prima eletrônica acaba por moldar, manipular, ou melhor, modular o próprio tempo. Com isso, ele pode abrir a imagem à duração, ao acontecimento, ao risco do tempo presente e tudo aquilo que ele comporta de contingência e descontrole.


Aberta à duração, a imagem pode, então, abrigar o eventual. Pode, muitas das vezes, até mesmo provocá-lo, como é o caso de certos procedimentos documentais ou performáticos que visam menos registrar do que produzir uma experiência (que não aconteceria não fosse a intervenção daquele que, através da câmera, a produz).


O evento, “o inesperado de toda esperança”, diria Blanchot, é aquilo que pode nos afetar e, com isso, reconfigurar, ampliar nosso campo de possibilidades: quando atravessa a imagem em sua inapreensível aparição, o acontecimento pode nos fazer pensar o que a nós era antes impensável. Abre-se ali um território arriscado: “um espaço sem lugar e um tempo sem engendramento”(11), onde caminha “um pensamento que ainda não pensa”(12). Ambígua, precária, instável, a imagem se instala então nessa zona de risco, onde é impossível discernir, decidir, explicar, agir. Resta-nos “... um esforço, não para expressar o que sabemos, mas para sentir o que não sabemos”(13).


Podemos retomar o célebre poema de Augusto de Campos que inicia este ensaio: o risco poético, de muitas maneiras, se diferencia daquele risco que, através do discurso midiático ou tecnocientífico, nos deixa em estado de constante alerta, de constante paranóia. Se, com cada vez mais freqüência, o último é utilizado para legitimar o controle, a invasão de privacidade e a guerra (a justiça infinita, diriam alguns), o primeiro é aquele capaz de desfazer nossas certezas: com isso, reinventa nosso horizonte de expectativas, nosso campo de possibilidades. Trata-se, nesse caso, menos de antecipar o futuro para colonizá-lo do que de abrir virtualidades ainda inauditas.


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(1) Apud Sibila, Paula. “O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais”. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.


(2) Agamben, Giorgio. “Sobre a segurança e o terror”. In: Cocco, G. e Hopstein, G. (org.). “As multidões e o império: entre globalização da guerra e universalização dos direitos”. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002.


(3) Benjamin, Walter. “Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política”. São Paulo: Brasiliense, 1994.


(4) Bellour, Raymond. “Entre-imagens”. Campinas: Papirus, 1997, p. 41.


(5) Comolli, Jean-Louis. “Cinema contra espetáculo”. In: Forumdoc.bh.2001. Belo Horizonte, 2001.


(6) Fargier, Jean-Paul. “Poeira nos olhos”. In: Parente, André (org.). “Imagem Máquina”. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.


(7) Dubois, Philippe. “Cinema, Vídeo, Godard”. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.


(8) Machado, Arlindo. “O desafio das poéticas tecnológicas”. São Paulo: Edusp, 1996, p. 52.


(9) Virilio, Paul. “A imagem virtual mental e instrumental”. In: Parente, A. (org.). “Imagem Máquina”. São Paulo: Editora 34, 1993.


(10) Idem.


(11) Blanchot, Maurice. “O livro por vir”. Lisboa: Relógio D'água, 1984, p. 88.


(12) Idem, p. 60.


(13) Blanchot, Maurice. “À parte do fogo”. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 81.

BRASIL, André; JESUS, Eduardo de; MELLO, Christine. "Riscos do Tempo Presente". In: Caderno Videobrasil. Associação Cultural Videobrasil, nº1, p. 96-100, São Paulo, 2005.

Ensaio André Brasil, 06/2005

ensaio_ Marcellvs L._ "Quase nada: o afeto" - por André Brasil


Quase nada: o afeto


8762

“- Ver também é um movimento.

- Ver supõe apenas uma separação compassada e mensurável; ver é sempre ver à distância, mas deixando a distância devolver-nos aquilo que ela nos tira. [...]

- Ver é perceber imediatamente longe.” (Blanchot)


0964 Um homem caminha. Passo firme, ao longe. Aproxima-se, enquanto a câmera, fixa, o acompanha. Um alagamento forma uma espécie de rio, que cruza a rua por onde ele anda. O zoom digital da câmera torna a cena impressionista, trêmula, rarefeita, dissolvendo a profundidade de campo. Naturalmente, sem qualquer hesitação, o homem começa a atravessar o rio, afundando devagar, até cobrir quase todo o corpo. Ele sai da água, continua a caminhar pela rua e passa pela câmera, sem tomar conhecimento dela. O vídeo termina quando o homem sai de cena. Sem trilha sonora, sem créditos, sem agradecimentos, sem patrocinadores.


9564 Auto-estrada. Paisagem dilatada: a velocidade com que os carros passam contribui para ressaltar o alheamento do homem que caminha. A câmera acompanha o seu movimento lento. A duração da cena faz aumentar, pouco a pouco, a angústia que nos toma. Imerso, alheio à vertigem dos carros, o homem anda pelo acostamento. O trânsito o interessa menos do que um ou outro resíduo que ele colhe minuciosamente pelo asfalto. O vídeo é bruscamente interrompido pela tela preta: o andarilho continua seu rumo.


7692 Encontramos o mesmo homem absorto em seu alheamento. Ele agora está em um cruzamento movimentado do centro da cidade, entre carros, motos e caminhões. Há fumaça, o ar está dilatado pelo calor do asfalto. Um ônibus corta a cena, e ele já não está mais ali.


7439 Noite. Rua vazia, silenciosa. Em um mesmo enquadramento vemos um cavalo parado no asfalto e, um pouco acima dele, por trás da parede de vidro da academia iluminada, um homem solitário caminhando sobre uma esteira de ginástica. O cavalo imóvel, a rua na penumbra, a excessiva transparência da academia. O homem anda rápido sobre a esteira, sem sair do lugar.


3476 Mar branco. A imagem saturada - produzida pela excessiva abertura do diafragma da câmera - rarefaz a paisagem e as pessoas. Elas pescam, jogam e recolhem a rede. Uma cena banal, ligeiramente deslocada: no interstício que se produziu, esse mundo e, ao mesmo tempo, um mundo totalmente outro.


8879 Sombras sobre o muro da casa. Elas deslizam, moduladas pelos faróis dos carros. Imagens em movimento, choques, sobreposições, interrupções: o mundo faz cinema.


0793 Entre uma e outra tela preta, algo passa, atravessa a imagem e continua para além, muito além dela. Esse algo - a vida (alheia, ordinária, indeterminada) - continua, vaza, escapa por todos os lados da imagem. Assim são os “rizomas”, como Marcellvs chama seus vídeos: segmentos de imagem, mundos interrompidos, cortados, extraídos, escavados, arrancados à vida e a ela novamente endereçados.


2418 Para produzir suas imagens, Marcellvs parece se situar ali, em uma zona ambígua, misto de atenção, crença e desprendimento. A contingência da captura desses eventos (ou quase-eventos) é fundamental na produção dos vídeos. Não há, contudo, a ilusão de que basta olhar o mundo para que ele se revele aos nossos olhos: puro, ingênuo, transparente.


Essa espécie de “atenção desatenta” é o que permite o encontro - o afeto (no sentido literal de afetar e ser afetado) - entre o olho e o mundo: encontro distendido pelo tempo, mediado pela câmera, transfigurado pela edição digital (parcimoniosa, na maioria das vezes).


2376 Nada aqui é puro, natural. Apesar da sua aparente crueza, estas são paisagens eletrônicas, acontecimentos mediatizados, mundos que só podem emergir entre: o evento e sua dissolução em pixels e elétrons.


2998 A câmera (olho, cérebro, espírito) espera. Não se trata, contudo, de uma “má esperança”, aquela que aguarda o Mesmo (o que, comodamente, já prevíamos). Mas, sim, de uma esperança aberta ao “inesperado de toda esperança”. Como ainda nos sugere Blanchot, “a esperança é esperança verdadeira pelo fato de pretender dar-nos, no futuro de uma promessa, aquilo que é”.


3470 “Aquilo que é, é a presença.” O evento em sua eventualidade.


0687 Se acreditamos em Bergson, o mundo é um conjunto de imagens que se chocam umas com as outras, que deslizam umas sobre as outras. Diante desse movimento incessante e caótico, podemos intervir de duas maneiras: barrar o movimento, obstruí-lo, adestrá-lo, tornar as imagens do mundo meras repetições das imagens que, desde já, costumamos ter do mundo; ou simplesmente abrir passagens, fissuras, brechas através das quais imagens (outras, diversas, estranhas) possam vazar, nos afetar e continuar seu movimento mundano.


O que deriva da primeira alternativa é um pensamento confortável, que nos oferece o conhecido e o reconhecível; afinal, é sempre ao Mesmo que ele nos conduz. Bem diferente é o pensamento (à deriva) produzido pela potência de movimento das imagens: precário, hesitante, esboçado, “quase” por se fazer e logo já desfeito, ele é uma espécie de “pensamento que ainda não pensa” (Blanchot). Ou como quer Rancière, “um pensamento que se tornou ele próprio estranho a si mesmo: produto idêntico ao não-produto, saber transformado em não-saber, “logos” idêntico a um “pathos”, intenção do inintencional”. Pensamento estético, se é que podemos chamá-lo assim.


0378 Em uma de nossas conversas (gostaríamos que elas fossem mais freqüentes), Marcellvs lembra uma cena de Tarkovsky (“O espelho”): alguém caminha por um campo verde, amplo, imóvel. A câmera fixa o acompanha, dando ao tempo o tempo que ele necessita. Não anseia, não interrompe, não apressa o movimento. A cena dura e quase nada acontece: a não ser o fato de que alguém caminha. Eis que, ao mesmo tempo, intenso e sutil, o vento corta a imagem, fazendo todo o campo se agitar. Um pensamento leve, um estremecimento nos perpassa como um arrepio.


3354 Após a exibição de um de seus trabalhos, refletindo sobre a recepção do público, o artista faz um diagnóstico preciso: “o tempo é político”. Ele se referia à duração distendida de seus vídeos, aos tempos mortos, tempos lentos, que os constituem.


Sim, em vários sentidos, o tempo é político. No caso destes “videorizomas”, principalmente, porque é a duração que nos permite entrever no mundano, no banal, no ordinário, sua potência inaudita, rotineiramente sufocada pela pressa: aquilo que sempre escapa à escuta apressada dos jornalistas; o que o editor, pressionado pelo deadline, deixa de fora; o que o documentarista, preocupado com a pertinência de seu argumento, se recusa a perceber; o que nosso olhar de espectador, sedento por novas e novas imagens, não nos deixa esperar: o acontecimento (ou quase um acontecimento).


Se ele é raro - ao contrário do que nos querem fazer crer os telejornais -, é porque é aliado do tempo, precisa da duração para acontecer (para ser percebido, nos afetar). O tempo é político porque é ele que nos permite, através das imagens, vislumbrar, ou melhor, inventar o acontecimento e os “mundos” precários que se formam em torno dele. É o tempo, portanto, que, aberto à duração, nos possibilita novas partilhas do sensível (Rancière): novos modos de percepção e de visibilidade, reconfigurações do possível e do pensável. Por isso ele é político, e é por isso mesmo que ele é, indissociavelmente, estético.


9643 O homem caminha. Mas a forma como ele aparece e atravessa a imagem é bem distante daquela que costumamos ver nos reality shows, nos telejornais e em certa produção documental - estes que possuem em comum o fato de absorver a vida banal, ordinária, sem, no entanto, conseguir escapar à comodidade do estereótipo: reduzem a estranheza do outro ao Mesmo, ao já reconhecido e esperado.


Aqueles que atravessam os vídeos de Marcellvs nos parecem mais próximos do “homem sem qualidades” (Musil), sem nome ou propriedade. Ser qualquer mantido ali em sua estranha singularidade, impossível de ser capturado pelo clichê, impermeável às categorias “a priori” nas quais costumamos nos proteger (profissão, gênero, classe, nacionalidade...). O ordinário mantido assim em sua “ordinariedade”, em sua pura potência: “o ser mais o poder do ser”, nos diria Blanchot.


7854 “O ser que vem é o ser qualquer” (Agamben). Ser singular, sempre por vir, que não se reduz ao estereótipo que se cria dele, nem, por outro lado, se dissolve indistintamente na massa. Ser qual-quer, mas que não é indiferente: o homem que caminha pela rua e que não hesita ao atravessar o rio; ou aquele que anda pelo acostamento, alheio aos carros, atento aos restos.


“Quodlibet ens”: um qualquer, nos diz Agamben, “contém, desde logo, algo que remete para vontade (“libet”), o ser qual-quer estabelece uma relação original com o desejo”.


8642 Não se capta o acontecimento - esse instante precário em que, mesmo circunstancialmente, uma “verdade” se esboça - meramente por meio da destreza técnica e, tampouco, do virtuosismo formal: mais que uma técnica, indissociável de uma estética, trata-se aqui, antes de tudo, de uma ética das imagens. Muito mais que um instrumento tecnológico, mais ainda que uma ferramenta de linguagem, a câmera torna-se parte de uma maneira de ver, de estar e agir no mundo.


6798 Em meio a um mundo tornado imagem, extrair imagens do clichê em que transformamos o mundo é uma tarefa difícil, mas necessária. É o que nos sugerem estes “videorizomas”, cravados ali nessa fronteira indiscernível entre a ética, a política e a estética.


5558 Observar, perceber, escutar, participar do fluxo do tempo - uma política; moldar, ou melhor, modular o tempo (e daí extrair mundos outros) - uma estética; deixar que o tempo nos atravesse, nos module e nos recrie - uma ética.


9875 Em sucessivos lances de dados, Marcellvs costuma numerar aleatoriamente seus vídeos: 0314, 7077, 5040, 8011, 2004, 3172, 0667. Depois os envia, um a um, para endereços sorteados no catálogo telefônico. Quem recebe, como recebe, qual o fim? Pouco importa. Fundamental é o encontro fortuito, frágil, entre acontecer e não acontecer: o homem ordinário que produziu as imagens; os homens ordinários que, vez ou outra, as habitam; o homem ordinário que recebe as fitas pelo correio. A comunidade que se inventa aí, efemeramente, se liga por fios tênues.


0873 O que deriva destes rizomas é, afinal de contas, isso: fios delicados, quase imperceptíveis. Quase nada: o afeto.

Associação Cultural Videobrasil. "ff>>dossier 012>>marcellvs l.". Disponível em: . São Paulo, junho de 2005.

Ensaio André Brasil, 07/2004

ensaio_ Gisela Motta e Leandro Lima_ "Poética do loop" - por André Brasil

 

Poética do loop


1. Lisas, limpas, concisas. Portadoras de inegável apuro técnico e formal, as imagens criadas por Leandro Lima e Gisela Motta enganam: sua ambigüidade não se deixa apreender de imediato, protegida pela aparente transparência. Mas há algo ali, um incômodo que permanece: rumor de fundo, estremecimento sutil.


2. A menina balança (“Sem título #4”, 1999). Uma imagem banal, repetitiva em sua ingenuidade. Imagem-clichê: vai-e-vem, tantas vezes vista e revista. Há, contudo, algo de estranho nessa que nos parece uma cena tão familiar. Algo que se produz por deslocamentos mínimos: as cores saturadas, a paisagem artificializada, a menina abstraída. O enquadramento enviesado, o olhar convexo.

E ali, nesse intervalo “entre” o que, minimamente, se deslocou, o mundo se torna intensa e estranhamente outro. O balanço, a paisagem, o movimento, a câmera, o olhar: do clichê à vertigem, tudo parece se soltar dos eixos.


3. Se a cor verde é a mais verde que existe (Leminski), o que dizer desse verde impossível? (“Verde.dxf”, Lima, 2004) Quando se estampa artificialmente na grama, o paradoxo se instala: a cor é tão verde que esse mundo não pode ser o nosso!

E esse azul, mais azul que o próprio azul? Geometricamente dividido em dois: o mar, o céu, a linha branca. Azul horizontal. Se “Klein blue” - a “marca registrada” de Yves Klein - é o azul matérico da tinta, do corpo e da performance, e se, antes, o azul dos céus de Magritte era propositadamente rarefeito, estilizado, onírico, esse “Azul.dxf” (Lima, 1998/2002) é pura síntese: parece só existir como combinatória de dígitos.

O verde, o azul, o vermelho, o amarelo compõem, nas fotografias, vídeos e instalações de Leandro e Gisela, uma paisagem sintética. Paisagem ambígua: tão semelhante e, ao mesmo tempo, tão distante do mundo natural.


4. A água é uma constante (“Analógico #2”, 1998; “Sem título #5”, 2002). Flui e reflui, soa e ressoa. Mas a sua fluidez está aprisionada em um loop ininterrupto. Aqui também o ambiente é sintético, como a água dos laboratórios (que antes faziam parte apenas da ficção e hoje povoam o noticiário cotidiano), onde se sintetiza todo tipo de matéria-prima, onde se cria e se duplica o orgânico.


5. Ou em “Analógico #3” (Lima, 1998), a água eletrônica da piscina de pixels. Não é essa a nossa situação entre as imagens? Deriva, imersão, mergulho, “Afogamento” (Motta, 2003). Experiência sensorial, mais do que meramente visual.


6. Na obra de Leandro e Gisela, o loop se torna estratégia poética: econômico, automático, circular, impede à imagem remeter-se ao passado ou se suceder em uma imagem futura. Em loop, a imagem não pode narrar nem prever. Apenas se mostra, exibe seu automatismo. Como se a máquina do mundo houvesse emperrado, incapaz de processar novas experiências.

Mas se o loop é repetição, a diferença se produz no encontro entre o pensamento e a obra. A imagem não pára de se repetir, mas o pensamento de quem olha flui incessantemente. E o círculo se torna elipse, já que, a cada repetição, a imagem já não é a mesma, quando encontra outro e outro pensamento. Como no clássico rio de Heráclito, em que a água na qual entramos, sempre a mesma e sempre outra.


7. A paisagem é natural, a cena simples, transparente: algumas pessoas passeiam entre as árvores de um bosque (“Que é de?”, 2003). Mas, como em Magritte (“Carte blanche”, 1965), esse “entre” se torna interstício em que os seres desaparecem. Entre: interface, espaço de passagem. Como se a realidade estivesse repleta de cortes, através do quais os seres pudessem atravessar para outros domínios, invisíveis, desconhecidos, fantásticos.

Mas se, em Magritte, a paisagem é intensa e intencionalmente onírica, surreal, o bosque de Leandro e Gisela mantém-se em uma zona limítrofe, na fronteira entre banalidade e fabulação, entre realidade ordinária e imaginário.

O dispositivo criado para a instalação torna a obra ainda mais ambígua: a imagem só aparece projetada sobre a sombra dos visitantes. Um jogo complexo de aparição e desaparição, de trânsito e passagem entre mundos, entre universos visíveis e invisíveis.


8. Retira-se o bosque e as pessoas continuam passando. Em outra obra (“Marrom”, 2002), tão simples quanto desconcertante, os visitantes são filmados enquanto percorrem a exposição (“agora os objetos me percebem”, diria Paul Klee). Na projeção, eles passam de um lado para o outro, mas não há cenário. Aquele pode ser qualquer lugar: uma exposição? Um shopping center? O estúdio onde se grava um anúncio para a TV? A sobreposição das pessoas em chroma key torna a cena ainda mais “fake”.

Já não é preciso fazer cortes na paisagem, pois ela foi abstraída: da imagem como lugar de passagem à imagem como não-lugar. Ou lugar nenhum.


9. O que se espera de um corpo? Que ele viva. O que se espera de uma performance? Que ela aconteça. Nas (quase ou anti) performances de Leandro e Gisela (“Sem título #1, #2, #3”), o corpo simplesmente não responde. Ou, quando o faz, é tomado por um incômodo automatismo (ou seria autismo?). Corpo autômato, corpo estranho. Corpo em loop.


10. Ou corpo de pernas pro ar (“Interlúdio”, 2003), deitado sobre a própria carapaça, impossibilitado de se virar (como não pensar em Gregor Samsa?).


11. Estranho esse mundo criado por Gisela e Leandro: desconcertante, fantástico, paradoxal. Ecos de um surrealismo revisitado? Pouco provável. Afinal, há muito o que poderia ser surreal foi superado pelo próprio real.

O que essas obras sugerem vai além disso: esse estranho é o nosso mundo. Tornado artifício, síntese, simulação, ele parece, definitivamente, ter entrado em loop.

Ao artista (e não só ao artista) cabe rasgar, cortar, abrir passagens: fazer do natural e do artificial, do orgânico e do sintético, do vivo e do não-vivo universos híbridos, permeáveis.


12. Como uma flor de lótus (e dígitos) nascendo e renascendo da pele (“Lótus”, Lima, 2003).

Associação Cultural Videobrasil. "FF>>Dossier 004>>Gisela Motta e Leandro Lima". Disponível em: . São Paulo, julho de 2004.