Ensaio Marcus Bastos, 10/2005

Não há uma pedra no meio do caminho. 
Um inseto anda (patas e antenas) próximo ao meio-fio de uma calçada qualquer. 
No meio do caminho não há uma pedra, 
e o inseto não conclui sua trajetória. Apenas anda 
(mesclado(1) a imagens de Belo Horizonte) 
próximo ao meio-fio. 
Ele prossegue, e desmancha-se sob as imagens da capital mineira que 
(cada vez mais opacas) preenchem a tela. 
— Nem mesmo um inseto desse porte é capaz de se desvencilhar da cidade que o paralisa, morosa concretude?

Os prédios esmaecem e revelam que não há uma pedra no meio do caminho e que um inseto anda (patas e antenas), próximo ao meio-fio de uma calçada qualquer. 
No meio do caminho não há uma pedra, e o inseto não conclui sua trajetória. 
Ele anda (fios de eletricidade e postes ao fundo). 
Mais uma vez prossegue e desmancha-se, desta vez sob fios de eletricidade e postes que (cada vez mais opacos) preenchem a tela.

— Como circular em liberdade pela rede urbana que insiste (gráfica paisagem diante do eloqüente protagonista) em levá-lo de volta ao ponto inicial?

Fios e postes esmaecem e revelam que não há uma pedra no meio do caminho. 
Um inseto caminha. Patas não carros (deslocamentos), antenas não TV (transmissão).

O projeto mineiro feitoamãos busca pesquisar, produzir e refletir sobre a linguagem e as possibilidades da arte eletrônica, por meio de trabalhos para exibição através de videocassete, DVD ou computador. Além disso, realiza apresentações sob o nome *//FAQ, iniciativa dedicada à manipulação e execução de imagens e sons ao vivo. 

O plano fechado sobre o inseto que anda em loop, como se caminhasse sobre um tapete que é puxado antes dele atingir seu objetivo, funciona como motivo condutor de BHZ  — apresentação realizada na Casa do Conde (Belo Horizonte) durante o Laboratório Eletronika 2004 — e da primeira parte de Trânsito — apresentação realizada no Centro Cultural Telemar (RJ) durante o prog:ME (http://www.progme.org/), primeiro festival internacional de novas mídias do Rio de Janeiro.

As apresentações realizadas pelo *//FAQ transitam pelo universo da música pop alternativa. A mescla de guitarras com elementos eletrônicos e toques sutis de percussão fricciona novo e velho. Aliás, essa dualidade — mais uma vez o barroco — aparece no próprio nome do grupo, mistura de atividades artesanais (‘feitoamãos’) e práticas da cultura digital (‘FAQ’ é a forma abreviada de ‘Frequently Asked Questions’, página de dúvida comum em sites de internet de maior porte).(2)

O vínculo com uma forma de expressão em que o palco italiano é a solução típica resulta em trabalhos que raramente problematizam o espaço de maneira mais complexa, ainda que nos vídeos propriamente ditos a espacialização seja justamente a forma mais explorada, o que está em sintonia com o exercício de romper com a unidade da tela (e do plano cinematográfico). 

Dentre os projetos do grupo, É (in)possível estar em 2 lugares ao mesmo tempo é o único que adota a mesma estratégia também na forma de ocupar o espaço em que acontece, na medida em que explora a tensão entre a presença física e a presença mediada dos músicos e videoartistas, pelo uso de sensores de presença e luz. 

Em Trânsito, a opção por duas telas simultâneas, uma no fundo e outra na frente do palco, causam uma pequena defasagem entre ambas, montagem no espaço que dilata a temporalidade inevitável da projeção sobre uma única superfície.(3) O fato de a primeira tela ser construída com um tecido escuro e granulado causa um efeito de difusão que torna os músicos e videoartistas no palco uma espécie de chroma humano incrustado nas seqüências de vídeo. No entanto, isso é suficiente apenas para sofisticar a situação, sem dissolver o espaço de forma tão eloqüente quanto no caso de É (in)possível.

O circuito por onde o *//FAQ transita aglutina formas de expressão diversas — e nem sempre evidentes, como é o caso da performance e da instalação interativa. Trabalhos na linha de É (in)possível estar em 2 lugares ao mesmo tempo são os que melhor articulam as diversas possibilidades que as experiências recentes de manipulação e execução de imagem e vídeo em tempo real sugerem, na medida em que lidam com a articulação de todos esses domínios. Isso é raro. Boa parte dos trabalhos de imagem e som ao vivo restringe-se ao formato do espetáculo contemplativo, seja no improviso dos VJ’s em casas noturnas, seja nas apresentações mais elaboradas em museus e galerias.

*//FAQ faz uso intenso de vídeo, certamente pelo fato de que os primeiros projetos realizados pelo feitoamãos foram trabalhos single channel, como é o caso do premiado 5 — uma exploração fragmentária dos cinco sentidos cujo resultado final é irregular —, ou streaming, como é o caso de 7 maravilhas.Este último reúne loops como Dona Inês Maravilhae Canivete Suíço, criados a partir de imagens bastante gráficas — a mesma solução retorna nas apresentações ao vivo — e vídeos curtos não-narrativos, como Fio Maravilha, Cidade Maravilhas e Stevie Wonders.

As imagens fixas, quando animadas ou flicadas, resultam em um tipo de incrustação bastante comum na videografia contemporânea. Ela prescinde do uso do chroma key, na medida em que pode ser feita através da inserção de imagens com recortes transparentes, em programas como o After Effects. Além disso, aproximam-se da lógica do primeiro cinema, na medida em que usam imagens estáticas como ponto de partida para criar divertimentos visuais de diversos tipos. É o improviso a partir desses pequenos fragmentos que constrói os percursos (sempre temáticos) mais longos. 

Como parte desse material é capturado na internet, há antes a referência a um imaginário específico (situacionismo, mídia tática, fêmeas fatais, grafite, deslocamento), que uma preocupação com uma plástica audiovisual consolidada. Curiosamente, o vídeo, por muito tempo entendido como imagem de baixa resolução por ser comparada com a imagem do cinema, hoje tem mais qualidade visual que as imagens produzidas por computadores e celulares, cada vez mais comuns na cultura visual contemporânea. 
Hoje a imagem-vídeo não é mais vista como rarefeita, pois ganha em densidade (até mesmo invade as telas de cinema) numa cultura visual de poucos megabytes.

No caso do feitoamãos, o uso do grafismo e de imagens que revelam a trama de pixels digitais contrasta com a granularidade saturada de seqüências em vídeo, de que o início de Matéria dos sonhos é um bom exemplo. Mãos sobrepostas, uma gráfica e estática, outra, videográfica e ansiosa, nos movimentos acelerados. O preto discreto sobre o vermelho abundante aproxima dois tipos de textura visual obtidas pelo conflito de imagens de espessuras distintas. Ainda o barroco? 

atalho #1: dois Macs e um switcher produzem camadas de imagens organizadas a partir de partituras distribuídas. 
As apresentações do *//FAQ são flicagens visuais de um banco de dados a serviço de uma espécie de jazz sinestésico. A proximidade do cinema com jeito de banco de dados é programática: uma das primeiras apresentações ao vivo do *//FAQ é Dziga Vertov reenquadrado. Segundo Lev Manovich, O homem com a câmera na mão, do cineasta russo, antecipa a possibilidade de um cinema banco de dados, montado pelo eixo do paradigma, desafiando o fluxo narrativo temporal dos romances filmados que “hollywood” insiste em imprimir sobre películas para rodar o mundo. 

retorno: 
A beleza repetida daqueles gestos prosaicos de inseto é incapaz de mascarar a ausência de finalidade clara para o trajeto percorrido, que leva do nada ao lugar nenhum. Duas doses de Kafka e uma de energético. Em Trânsito, a seqüência assume outro sentido, inserida num contexto em que se recuperam as intensidades deleuzeanas, o que desloca o sentido desse movimento que nunca estanca. Na ordem das intensidades, no entre imagens que, com suas qualidades físicas, relacionam-se, em busca dos “estados de coisas” a elas correspondentes.

Como no mito de Sísifo, em que o herói é condenado à tarefa absurda de empurrar uma pedra para o topo de um morro, apenas para vê-la cair, o que o obriga a empurrá-la para cima novamente, e assim indefinidamente. O castigo cíclico ao herói suicida é o primeiro loop de uma história do pensamento que ganha novo sentido conforme as tecnologias digitais modificam as formas de expressão contemporâneas.

atalho #2: o uso de texto é abundante no trabalho do feitoamãos/F.A.Q. O texto dificilmente é para ser lido; são as imagens que narram, enquanto o texto ilustra. Por isso, o trabalho do *//FAQ pode ser percebido como um tipo de escrita que formula pensamentos por meio de estratégias de montagem bastante complexas de texto, imagem e som.

O eterno retorno: Não há uma pedra no meio do caminho. 
Um inseto anda...


(1) Em Por uma estética da imagem vídeo, Philippe Dubois discute alguns parâmetros estéticos que “emergem com intensidade nas práticas do vídeo”, observando que “a primeira figura que surge com força é a mescla de imagens”. Para Dubois, três “grandes procedimentos reinam nesse terreno: a sobreimpressão (de múltiplas camadas), os jogos de janelas (sob inúmeras configurações) e, sobretudo, a incrustação (ou chroma key)”, cf. Dubois, Philippe. Godard. Cinema. Vídeo. São Paulo: CosacNaif, 2004. pp. 77-8. Dentre as formas propostas pelo crítico francês, a primeira e a terceira são mais comuns nos trabalhos do feitoamãos/F.A.Q., de tom barroco na abundância de camadas sobre camadas, especialmente nas apresentações ao vivo em que há dois MACs bombardeando com imagens o switcher que controla a forma como elas são projetadas. 

(2) O conceito de artesanato digital é bastante utilizado por Richard Brabook, conforme explicado em NeMe: FAQ Digital Work (http://neme.org/main/103/faq-digital-work) e The Digital Artisans Manifesto (http://www.hrc.wmin.ac.uk/theory-digitalartisansmanifesto1.html).

(3) Para Lev Manovich, “a cultura visual e a arte moderna oferecem várias idéias sobre como a narrativa espacial pode se desenvolver em um computador”, com o uso de janelas simultâneas, criando eventos sincronizados ou explorando os efeitos da sobreposição. Para Manovich, a montagem espacial é uma das formas que permitem distinguir a linguagem digital de seus antecessores analógicos. No âmbito das apresentações de imagem e som ao vivo, essa espacialização acontece quando se dissolve o formato de palco e platéia. Cf. Manovich, Lev. The Language of New Media. Cambridge (MA): MIT Press, 2000. p. 321. Há uma discussão mais longa sobre o tema da montagem espacial em 6 propostas para os próximos minutos (http://netart.incubadora.fapesp.br/). Em VJ em cena: o espaço como partitura audiovisual, Patrícia Moran trata de questões semelhantes, ao desenvolver tópicos teóricos e analisar exemplos de manipulação de imagem e som em tempo real.