Ensaio Giselle Beiguelman, 03/2007

Irretratáveis anos-luz

O fim no começo

A palavra cortada
na primeira sílaba.
A consoante esvanecida
sem que a língua atingisse o alvéolo.
O que jamais se esqueceria
pois nem principiou a ser lembrado.
O campo – havia, havia um campo?
irremediavelmente murcho em sombra
antes de imaginar-se a figura
de um campo.

A vida não chega a ser breve. 

Carlos Drummond de Andrade

O que me fascina no trabalho de Alice é a sua coragem de enfrentar o efêmero, recusando a lógica do instantâneo. Investindo sempre na imagem do que não é retratável, parece posicionar suas câmeras como uma astrônoma e não como documentarista, testemunha, ou narradora. Os astrônomos são cientistas que desafiam nossas medidas banais, baseadas em referências mais e menos antropocêntricas, como pés e polegadas, que têm obviamente o corpo humano como parâmetro, ou o metro, baseado nas dimensões da Terra.

Sua unidade de distância é o ano-luz, a distância que a luz percorre em um ano no espaço vazio, na velocidade de 300 mil quilômetros por segundo. Quanto mais distante um objeto, mais anos-luz percorridos, pois maior a distância que sua luz viaja. Isso faz com que se produza um fenômeno desconcertante descrito com rara simplicidade e poesia pelo físico Marcelo Gleiser: “Olhar para o cosmo é viajar para o passado”. Afinal, a luz que vemos corresponde ao objeto como era no passado e não no presente. Só para se ter uma noção das escalas de deslocamento que estão envolvidas nessa relação, basta lembrar que a luz da galáxia Andrômeda, vizinha da Terra, saiu de lá há 2 milhões de anos, ou mais ou menos na época da formação da espécie humana.

Em tamanhas escalas espaciais de deslocamento, o instante parece não fazer sentido algum. Não importa aqui o suposto “tempo real”, que tanto intoxica o discurso midiático, a virtualidade do cruzamento do aqui e agora com o lá e então. Importa ter ciência de que o presente, em muitas dimensões, é apenas passado, e o que se vê como real não passa de poeira cósmica. E é aí que Alice nos obriga a repensar as estratégias correntes de lidar com a história e com a memória, nos assaltando, sem terror, com vestígios por vezes mórbidos, por vezes imponderáveis, muitas vezes trágicos, da ação humana, na política e na ciência.

Sem alarde, por exemplo, nos convida a contemplar o peso da dor das vítimas das prisões políticas do Camboja com seu 88 de 14.000, de 2004. Neste projeto, um dos destaques do transmediale.05, apresentava retratos de 88 dos 14 mil mortos em uma prisão de extermínio no período do Khmer Vermelho, nos anos 1970.

As horas ou dias decorridos da entrada na prisão, quando era tirada a foto, até a execução são representados pelo período equivalente no qual cada imagem é projetada em uma parede de areia. Nesse tempo em suspensão, somos convertidos de espectadores em cúmplices de um silêncio lancinante que parece ficar entranhado nas paredes etéreas da projeção. Trata-se de um silêncio quase sufocante porque é incapaz de reter as imagens fantasmagóricas que se projetam no intervalo entre a última foto da vida/primeiro instante da morte de cada um desses 88 rostos de uma multidão de 14 mil.

É essa elasticidade do tempo, esse enigma do intervalo, da incapacidade das medidas humanas darem conta da duração da vida, incluindo-se aí a que separa a vida da morte, o elemento que me parece alinhavar os projetos todos de Alice sob uma mesma densa linha de pesquisa.

Em 14 horas, 54 minutos, 59,9...segundos (2006), propõe um curtíssimo longo vídeo de quarenta segundos em que estende o último momento do fotógrafo Robert Capa, fundador da agência Magnum, manipulando única e exclusivamente a foto derradeira de um dos maiores artistas-documentaristas de todos os tempos.

Alice nos lembra que no Vietnã, às 14 horas e 55 minutos do dia 25 de maio de 1954, o fotógrafo Robert Capa pisou em uma mina e morreu, durante a cobertura que realizava da Guerra da Indochina. A última foto que realizou, momentos antes de sua morte, contudo, permaneceu em sua câmera. Ela mostra seus companheiros de viagem, os soldados, atravessando o campo que se estende até um horizonte que Capa contemplou e capturou em sua fotografia, mas que nunca foi atravessado por ele.

Nos poucos segundos do vídeo, Alice distende esse último segundo e faz com que interroguemos: qual é a duração do intervalo do tempo que se interpõe entre o clique da última foto de Capa e a morte? É possível medir o tempo da dor, do implacável e do imponderável da história? Seria possível imaginar o irretratável da memória? São indagações que as “imagens-limite” da artista sugerem num estilo que por vezes insinua um certo ceticismo drummondiano.

Assistindo aos vídeos de Alice, é difícil não escutar os versos do poeta que nos ensinou que a memória é a resistência ao tangível e aos sentidos do fim. Algo que se coloca com delicadeza e força no vídeo Little White House (2005), que mostra o trajeto do campo de concentração de Chelmno-nad-Nerem, na Polônia, ao vilarejo mais próximo, acompanhado por dois sobreviventes da violência nazista. O percurso é curto, mas não a dor e o imponderável do tempo que se aloja nesse espaço.

E Little White House trabalha esse paradoxo distendendo o percurso num tempo ficcional de quarenta minutos, como que buscando não a medida da dor, mas, novamente, uma imagem-limite que se deixe atravessar pelo irretratável da memória e da história. Irretratável que desafia não só a lógica do instantâneo, mas a da suposta capacidade técnica de que dispomos hoje para dar forma visível ao nosso próprio código genético. Numa situação extrema, a de gêmeos univitelinos, que dispõem do mesmo DNA, o que o mapeamento de seu código genético retrata? Fazendo de si mesma alvo de suas câmeras, Alice parte dessa pergunta para novamente nos obrigar a pensar o intervalo e o irretratável.

Em Ínterim/auto-retrato, expõe durante vinte minutos seu rosto transformando-se no de sua irmã gêmea idêntica. A transformação é tão lenta que a imagem parece estática. É Alice quem comenta: “Eu e ela somos tão parecidas, que se tem a impressão de que a mudança é pouca ou nenhuma. No entanto, entre os pontos inicial e final, as imagens percorrem todos os mínimos graus de diferença entre nós duas. Essas imagens não são nem eu, nem ela, mas entre uma e outra, o que não fomos. A partir das duas únicas atualizações reais de uma mesma carga genética – eu, a primeira a nascer, e minha irmã, que nasceu vinte minutos depois – uma série de fenótipos potenciais foi criada. Essa série preenche o intervalo entre nós duas. Nesse ínterim, dá-se então uma seqüência virtual de possibilidades não realizadas. São tudo que não fui até ela, e tudo que ela não foi até mim.”

Esses não-acontecimentos projetados, seguidamente, no interior de intervalos sem parâmetros de escala nas medidas humanas, anunciam o que está por vir no seu premiado projeto de imagens invisíveis sobre Chernobyl.

Nessa nova empreitada, procura produzir uma série de imagens radiográficas da zona de exclusão através da própria radiação que assola o lugar, utilizando, para tanto, uma câmera pin-hole de chumbo especialmente desenvolvida para seu projeto.

Trabalhando apenas com a radiação presente na zona de exclusão, Alice propõe dar corpo agora ao imensurável da destruição. Do vazio que se imprimirá aí, é possível que possamos vislumbrar os invisíveis anos-luz de cada efêmero momento “irretratado” por suas lentes astronômicas.

Giselle Beiguelman é webartista, professora da pós-graduação em comunicação e semiótica da PUC-SP e co-editora da revista eletrônica Trópico. Seus projetos foram apresentados em exposições como a 25ª Bienal de São Paulo, Arte/Cidade, Net_Condition e Algorithmic Revolution (ZKM, Alemanha). É autora do livro Link-se(arte/mídia/política/cibercultura), entre outros.