Entrevista 03/2009

Seus vídeos estão ambientados, na maioria das vezes, na periferia de Salvador. Por que a predileção por essa região?

Eu venho do interior da Bahia, onde as condições de vida são muito difíceis. Via toda aquela adversidade de muito perto. Nas viagens que fazia com meu pai ou meus tios, via pessoas vivendo em extrema pobreza e não conseguia deixar de me sentir afetado por aquela realidade, que comparava à minha própria. Realidade de pessoas que eu via nos limites da vida no interior do meu estado. Tudo isso me marcou muito. Acho que me tornei um voyeur do estado das coisas e acredito que isso terminou se refletindo na minha poética. Não que eu pense em fazer um trabalho sobre a periferia ou a pobreza, mas termino sempre, de alguma forma, recorrendo, de forma direta ou indireta, a essas questões. O foco principal no meu trabalho não é a pobreza ou a periferia, mas o homem e suas questões: identidade, sexualidade, corpo, religiosidade. Como tive uma infância muito lúdica, apesar do meu aguçado espírito crítico, sempre via tudo com um certo encantamento, mesmo que fosse algo muito cruel. E é claro que o que vi e vivi não poderia deixar de estar presente no que penso e faço. 

O corpo, a religiosidade, a negritude e a doçura – simbolizada pelo açúcar – são presenças constantes na sua criação. O que esses elementos têm de especial para você e como eles se conectam com suas preocupações, inquietações e ambições artísticas?

Como disse, o que vivi nas cidades onde morei ficou marcado, desde as coisas mais abstratas. Lembro-me da visão de enormes galpões em Lapão, onde ficavam depositadas as colheitas de milho. Eu subia no fardo mais alto para olhar aquele mar amarelo de milho, ou o mar de algodão, em que eu mergulhava de cabeça. Eram muito prazerosos os mergulhos nos silos, lagos e rios da infância, trago sempre comigo essas memórias. Nesse fato talvez estejam presentes o corpo e a idéia de imersão dos trabalhos atuais.
Sempre fui uma pessoa reservada, tímida; sempre gostei mais de ouvir, ver, observar as pessoas como alguém que coleciona imagens, sons e cheiros, me inebriando com as semelhanças e as diferenças entre as situações e os tipos humanos, seu comportamento, costumes, os diferentes mundos que constituem a nossa diversidade baiana, brasileira. Minha visão sempre foi muito crítica. Sempre questionei a nossa estrutura social e continuo tentando enxergar a realidade humana dos negros, mulheres, gays, crianças de rua, as minorias muitas vezes jogadas à margem da sociedade. Minha formação familiar católica era forte, mas eu sempre olhei de forma muito crítica o universo religioso, principalmente a concepção cristã de corpo; sempre achei estranhíssima, antagônica em relação à vida real. O ideal de corpo proibido apresentado pela religião se confrontava com a minha própria vivência de corpo, que era lúdica e repleta de imersões na natureza.
Nos meus trabalhos o corpo é colocado nos seus limites, como nas imagens pornográficas desfocadas que são transpostas para a dimensão do sacro, promovendo um cruzamento, uma contaminação entre as coisas de Deus e as coisas do homem, tentando devolver ao homem a criação do criador, em que produzimos todo um universo simbólico a fim de justificar a nossa existência. As fronteiras do corpo e do indivíduo, as fronteiras que separam e/ou unem pessoas são capazes de ampliar ou restringir a possibilidade de existir, de estar no mundo, suficientemente forte para determinar como cada indivíduo pode projetar o seu horizonte na vida.
Nesse caso, as pessoas ou situações que aparecem nos meus trabalhos tentam discutir como estar em um mundo tão adverso, porém tento mostrar tudo isso com um pouco de doçura. Como em O mundo de Janiele ou em Canto doce pequeno labirinto, trabalhos que abordam essa vida periférica, essa vida como ela é, citando Nelson Rodrigues. Janiele é uma garota de nove anos de idade que desenha e descobre o seu horizonte enquanto brinca docemente com um bambolê na laje de sua casa. Em Canto doce pequeno labirinto, é colocada no caminho dos passageiros de uma estação ferroviária suburbana uma construção de açúcar que pode remeter ao mundo das fábulas, como nas histórias dos irmãos Grimm ou até mesmo à história do açúcar no Brasil, que deixou uma mácula ainda sentida nos dias atuais. A Bahia tem a maior população negra fora da África, e os negros na Bahia sentem ainda a sombra pesada da exclusão.

Em seus trabalhos há também lirismo e o resgate de aspectos cândidos da natureza humana: em Canto doce, as pessoas se divertem em torno de muros de açúcar; em Zilomag, adultos brincam como crianças para ver rolar um objeto de madeira e cimento ladeira abaixo. Esse é um dos objetivos da sua obra, relembrar o ser humano de sua condição sensível, conectá-lo ao outro, possibilitar que se maravilhe?

Sem dúvida, interesso-me por questões relacionadas ao corpo, à identidade e, também, a aspectos sociais. Claro que sempre termina acontecendo algo terno, mesmo quando abordo coisas difíceis, como na solidão da mulher que curte seu desamparo sob o sol inclemente de um dia de verão. Mas aí existe todo um ambiente lúdico ao redor: a água do mar, a luz do sol brilham, as crianças se divertem, os casais namoram, é uma tarde de domingo, é a vida, é o doce e o amargo da vida. Nos meus trabalhos, estou sempre buscando algo que não seja apenas poético, mas que tenha a possibilidade de tocar, causar encantamento, e problematizar, quer como superação ou transcendência.
Problematizar a vida através da ação artística tem ocorrido com mais freqüência nos meus trabalhos. Em Zilomag, a idéia era criar um paralelo entre a história coletiva das pessoas que vivem nas favelas e o mito de Sísifo. As pessoas que estão nas favelas quase sempre constroem suas casas com restos descartados pela cidade. Muitas vezes essas casas desabam durante as tempestades de inverno, são reconstruídas, arrastadas novamente nas enxurradas de verão, refeitas de novo; entre o desespero e o bom humor, essas pessoas refazem suas vidas na maciota. Isso faz lembrar o mito de Sísifo, que empurra sua sina ladeira acima todos os dias da vida. Daí construí uma peça que está entre a pedra de Sísifo e a realidade das pessoas. A função daquele objeto, também feito com restos de demolição, era fazer com que as pessoas brincassem com a sua própria realidade, histórica, que traz uma tradição de trabalho coletivo em que cantam animadamente – como na pesca de xaréu, onde, ritmadamente, puxam a rede das madrugadas no litoral da Bahia, ou no corte da cana-de-açúcar, ou no pisar o barro para a construção de casas de sopapo ou, hoje, quando batem a laje nos finais de semana. 
Em Zilomag, as pessoas empurram ladeira acima e deixam rolar ladeira abaixo, para depois reiniciarem toda a brincadeira. Em Canto doce pequeno labirinto, construí desejo e ternura no caminho das pessoas, um desvio doce, um labirinto para que o público se perdesse no doce, um muro que poderia unir todos em torno de suas fábulas pessoais e coletivas, um desatino poético para a vida e um pouco de fantasia na vida urbana.

Em Uma, você registra um casal que namora no mar sem que eles notem. Como aconteceu essa filmagem?

Em 2005, eu estava repondo uma aula do curso Processos Contemporâneos no MAM da Bahia, após retornar de uma exposição no Ludwig Museum, na Alemanha. Era um domingo e as oficinas do MAM não abriam. Optamos por fazer a aula em Guarajuba, e eu estava com uma câmera que tinha acabado de comprar. Enquanto dava a aula, manipulava a câmera. De repente me deparei com um garoto que brincava de empinar pipa. Em segundo plano, um casal dentro d’água namorava; o garoto saiu de cena e continuei gravando o casal, distraidamente, enquanto conversava com os alunos. Aos poucos fui percebendo que tinha ali um plano-seqüência muito interessante. Acompanhei o casal na água, depois saindo em direção à areia. E ela ficando solitária na areia. O seu absoluto desamparo, a sua sujeição ao outro e a si mesma, o seu aparente desabar. A câmera estava em zoom total, por isso tão instável. A distância entre o ponto em que eu estava e o lugar onde se encontrava o casal era grande, e a praia estava lotada. Foi uma sorte garimpar esse registro em meio a tanta gente.
Normalmente sou muito cauteloso ao mostrar os meus trabalhos. Nesse caso, mais ainda: só veiculo em museus ou galerias, que têm um público mais restrito. Apesar de o casal ter feito sexo em lugar público, sexo para todos verem, ouvirem e gravarem em uma praia completamente lotada, ainda assim fiquei com todos os dilemas éticos possíveis. Pensei em desistir do projeto, mas não podia, o trabalho era muito forte, falava de paixão, de encontro que vira desamparo, de gozo e dor, da solidão que persiste em todos nós, sem importar nem onde nem com quem estejamos, não importa a profundidade desse oceano, a incompletude de profundidade está aí, está em Uma. Uma tarde, uma situação, uma transa, uma traição, uma fábula de amor, uma esperança. 

Em que projetos está trabalhando agora e quando – e onde – eles poderão ser vistos?

Neste momento tenho vários projetos, alguns já concluídos, outros em fase de conclusão, além dos que estou iniciando. O vídeo Tempo mostra uma paisagem e o transcorrer de uma tarde fria em São Paulo, como em uma pintura naturalista. 
Istmo, um curta-metragem realizado em Salvador, apresenta três personagens que passam pelos mesmos lugares e só se encontram no desfecho, trágico. Em Istmo, tento falar do universo masculino, através de um marginal, um mandante apaixonado e um açougueiro. O cenário é uma estação de transbordo de coletivos e suas extensões.
Lago é uma videoinstalação interativa, feita a partir da filmagem do Lago das Carpas, no Parque Estadual da Serra da Cantareira, em São Paulo. A imagem se aproxima muito da fotografia de um lago paradisíaco, os únicos movimentos são os da própria natureza, como a ação do vento, o vôo dos pássaros ou alguns peixes que vão até a superfície da água. Sobre todas essas ações naturais, acrescenta-se a ação do público, que poderá interagir com a obra. Como em um lugar para a contemplação da natureza, onde o público poderá escrever formas na superfície do lago.
Em Mar de dentro, trabalho com uma espacialidade que gera um mergulho ou uma vontade de quase tocar, ou mesmo provar, esse pequeno mundinho em suspensão, como algo que nos traz memórias/imagens atemporais. 
Duna é um trabalho interativo que tem como cenário as dunas do litoral norte da Bahia, onde o corpo de uma mulher aparece eventualmente sobre a areia, numa espécie de marcação de espaço/tempo que faz lembrar um passar da vida constante e vertiginoso.
Erro é um projeto de videodança que trabalha apenas com os erros da câmera ou dos dançarinos, que, nus, realizam uma performance nas dunas da praia de Diogo, na Bahia.
Em 503 – Diário de viagem, o que aparece é um cotidiano simulado, em que as relações transcorrem entre um eu e a solidão. Em um suposto mergulho nos encontros virtuais nos sites de relacionamentos, onde essa solidão é mediada pela presença de personagens de filmes e seriados de TV gravados durante as horas de descanso na intimidade do apartamento 503 de um hotel em São Paulo. 
Alguns desses trabalhos foram realizados e outros finalizados na residência realizada no Lab do Museu da Imagem e do Som (MIS) em São Paulo, entre agosto e dezembro do ano passado. Também tenho confirmadas algumas exposições para este ano: uma individual no Museu de Arte Contemporânea – Centro Dragão do Mar, em Fortaleza, uma no MIS-SP, e uma na Paulo Darzé Galeria de Arte, em Salvador. Para 2010 tenho confirmada uma individual no Museu de Arte Moderna da Bahia. Também nesse período vou realizar duas residências: uma pelo Videobrasil, na França, e outra em Barcelona, pelo MIS de São Paulo.