A palavra “cura”

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postado em 13/10/2017
Diane Lima fala sobre o Tempo, os corpos e as palavras

Entrevista realizada por Maitê Freitas e Marcos Visnadi

Mestranda em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP), Diane Lima é a jovem e audaciosa curadora de AfroTranscendências: tempo de cura, terceiro programa público da exposição Agora somos todxs negrxs?. Nesta breve entrevista concedida por e-mail, Lima fala sobre racismo, resistência e os significados do tempo.


Diane Lima em foto de Felipe Gabriel

 

Agora somos todxs negrxs?

Enquanto a lei da raça e o racismo continuarem sendo dispositivos para a construção de um corpo-exploração, seremos todos negros – entre quem pratica a violência no ato de perversão e a condição subalterna e desumana de quem a sofre. Somos todos negros, ainda, na medida em que o acúmulo de riqueza desse país foi todo construído pelo roubo do nosso tempo.

 

Quando você se entendeu negra e o que implicou essa percepção?

Houve alguns marcos temporais, mas acredito que todos os dias me descubro mais negra e, portanto, todos os dias trabalho para me afastar dessa prisão efabulada sobre nós. A cada experiência vivida, nos defrontamos com situações indizíveis sobre as nossas presenças em lugares não projetados para nossa arquitetura. Digo isso não do ponto de vista do que conseguimos articular como efeito macropolítico, mas por perceber, através do sensível, como a condição racial performa as nossas subjetividades – como ela me afeta, me molda e como a minha criação me cria.

Essa percepção tem me levado a refletir sobre a urgência de tratar das violências que sofremos, de modo a pensar os efeitos psicossociais do racismo em sua condição estrutural e os impactos que a exposição sistemática à luta nos deixa como legado. Penso que precisamos romper o ciclo de silenciamento que naturaliza as tentativas de extermínio das nossas potências de vida (como o racismo, a homofobia, o machismo, o sexismo e o neocolonialismo), que têm afetado nossa saúde emocional, espiritual e física.

 

Como trabalhar, elaborar e lapidar as tensões de um cotidiano estruturado pelos racismos e pelas intolerâncias?

Acredito que, através do aprendizado coletivo e da experiência com o outro, podemos buscar formas de reversão e subversão, questões que tenho aprendido com uma das convidadas do programa público: Maria Lúcia Silva analisa, no livro O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise, a relação entre as temporalidades e a psicanálise. Ela diz que o propósito de romper o silêncio e de recordar histórias é buscar caminhos de superação. Vem daí nosso interesse em discutir o sequestro da palavra “cura”, empregada para pautar o desvio, a degeneração e o transtorno mental com fins de exclusão e extermínio.

 

É possível falar em afrotranscendência em meio ao contexto genocida e racista brasileiro?

As AfroTranscendências não estão ligadas a uma definição literal da palavra – seja lá o que isso aparente significar. Elas se referem mais a uma investigação que tenho feito sobre como as práticas artísticas afro-brasileiras contemporâneas carregam consigo algo fundante para suas existências: a relação com o Tempo. Essa questão se aplica quando Frantz Fanon diz que “todo problema humano deve ser considerado do ponto de vista do tempo”, ou quando Amiri Baraka diz que “o futuro está sempre aqui no passado”. Ou, ainda, quando Leda Maria Martins nos apresenta suas Afrografias da memória.

Na pesquisa dentro do programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, me dedico a teorizar essas relações entre estética, ética, linguagem, produção de sentido e práticas artísticas usando a teoria da significação. Em linhas bem gerais, essa teoria nos diz que aquilo que nos transforma e que faz produzir sentido quando entramos em interação com qualquer manifestação estética é o que chamamos de “estesia”. E é esse elemento, junto com a ética plasmada na estética, que nos faz ressignificar valores e fraturar estereótipos.

Nesse ato há um descontínuo no tempo: abre-se um não-aqui e um não-agora. No entanto, o que tenho descoberto é que tal aspecto espaço-temporal encontra, na filosofia africana, uma intrínseca e significativa relação, já que, para esses povos, a vida em si poderia ser considerada, na totalidade do sentido, uma experiência estética. Nesse caminho, com o trânsito diaspórico e o regime de escravidão, apesar de séculos de uma existência marcada pelo roubo do tempo (já que o corpo negro passou a ser condicionado ao sujeito branco, numa relação servil e de interdependência subjetal); apesar de a ideia de raça ter se definido e difundido sob a ideia de um atraso e de uma involução postulada numa lógica evolutiva, marcando perpetuamente esses corpos; apesar de todo esse descontínuo existencial, o negro usou como antídoto a própria relação com o tempo e, através das memórias do seu corpo, fundou um arquivo por meio do qual pudesse resistir.

 

Como se organiza essa temporalidade de que você fala?

Estou me referindo a dois tempos: o tempo semiótico (que altera nossos estados de ânimo e de alma) e o tempo divino e ancestral. Ambos têm me levado a repensar a própria definição do que é o contemporâneo para essas manifestações, uma vez que essas práticas artísticas atualizam não somente elementos do plano do conteúdo e da expressão, mas também perpetuam (no nível profundo) uma outra estrutura mitológica, própria e imanente da cultura, que se organiza de forma paradigmática entre passado, presente e futuro.

A partir daí surge o conceito e a prática das AfroTranscendências, que podem ser pensadas como um movimento de imersão entre os tempos na busca de conexão com os conhecimentos presentes na memória individual e coletiva visando a expandir a consciência, desenvolver um pensamento crítico e expressá-los em atos de criação. Assim, ainda que as AfroTranscendências partam de uma iniciativa micropolítica, na dimensão da prática curatorial na qual me inscrevo – e que tem como preocupação central a educação e outras formas de aprendizado coletivo – ela não deixa de ser uma proposta intervencionista que se coloca disponível como ferramenta de resistência, inclusive contra alguns dos efeitos que a Lei da Raça produziu, entre eles o racismo e o genocídio.

 

Quais caminhos podemos tomar?

Voltando à questão da palavra “cura”: a dúvida sobre continuar usando ou não essa palavra (que deu nome ao filme Tempo de cura, fruto da edição de 2016 do AfroTranscendence) transformou-se em parte de outra questão, que é: devemos desertar ou resistir?

Desertar a palavra seria promover a reedição da violência vivida – por um lado, assumindo seu aprisionamento no âmbito do controle social e da intolerância religiosa; por outro, promovendo a manutenção do silêncio. Pensando nisso, a intervenção AfroTranscendências: tempo de cura, na exposição Agora somos todxs negrxs?, é uma manifestação não somente pelo resgate da palavra, mas principalmente em prol da palavra-ação.


Foto: Alile Dara Onawale. Performance Bixa Preta, Winny Rocha

 

SERVIÇO

O QUE: AfroTranscendências: tempo de cura, terceiro programa público da exposição Agora somos todxs negrxs?
QUANDO: 14 de outubro, sábado, das 14h às 18h
ONDE: Galpão VB (Av. Imperatriz Leopoldina, 1.150, São Paulo)

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