Texto de curadoria geral Solange Farkas, 2011

Estratégias e Riscos

Resultado de quatro anos de questionamento crítico e redesenho, o 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil confirma uma orientação que se desenhava havia uma década. A abertura a todas as manifestações artísticas dá curso à progressiva aproximação do Festival com o campo das artes visuais, ao longo de quatro edições dedicadas a linguagens como performance e cinema, e marcadas por segmentos expositivos cada vez mais importantes. A intensificação desse diálogo, sobretudo nos anos 2000, está em sintonia com a inserção crescente do vídeo e da imagem em movimento no circuito da arte contemporânea, em um contexto que favorece contaminações entre linguagens, e na condição de ferramentas preferenciais de experimentação artística.

A mudança que torna o Videobrasil o primeiro festival brasileiro de arte contemporânea é uma etapa expandida de um processo intuído não apenas no âmbito do Festival, mas também das ações da Associação Cultural Videobrasil. Exposições realizadas recentemente em parceria com o SESC, como Sophie Calle – Cuide de você (SP e Salvador, 2009), e Joseph Beuys – A Revolução somos nós (SP e Salvador, 2010), são exemplos de um trabalho que gravita na direção da produção contemporânea e de suas questões centrais. Não por acaso – e como nas edições mais recentes do Festival -, ambas se aproximam também pela presença marcante do vídeo, aqui absolutamente contaminado pela relação com o espaço expositivo.

Ligados ao vídeo pela história e pelo nome, numa condição de identidade que não poderia jamais ser negada - embora denote uma especialização que já não os define -, Festival e Associação realizam essa transição na confortável certeza de um ciclo cumprido. Em 25 anos dedicados a mapear, promover, difundir e divulgar a produção de vídeo - brasileira e, mais tarde, de todo o eixo geopolítico do Sul, fomos parte ativa tanto da conquista de um circuito para o meio quanto de suas mudanças de peso e de papel, como ferramenta e manifestação, no cenário contemporâneo.

A ambiciosa exposição Seu corpo da obra, primeira individual na América Latina do artista dinamarquês Olafur Eliasson, sublinha de forma contundente, e muito feliz, a mudança do Festival. Fruto de uma poética intrincada e de uma investigação ampla, que envolve questões das ciências e da filosofia, a obra de Eliasson nos lembra constantemente de que as práticas artísticas só se completam, de fato, na fruição do público. Acessíveis, já que não exigem domínio das questões que as engendraram, as experiências sensoriais que propõem questionam a preponderância do objeto sobre o sujeito, convidando o espectador a perceber-se construindo a obra. 

O curador Jochen Volz conduz a exposição, que será objeto de um livro de artista a ser lançado ainda em 2011. Eliasson é também tema de um novo filme da série Videobrasil Coleção de Autores, dirigido, a convite do Videobrasil, pelo cineasta brasileiro Karim Aïnouz. A aproximação dos dois artistas, no contexto do 17º Festival, gerou uma proposição que temos orgulho de comissionar: a obra Sua cidade empática, instalação na qual Eliasson se serve, para alimentar experiências relacionadas ao fenômeno conhecido como afterimage – a retenção de cores e formas pela retina exposta à luz -, de imagens de São Paulo captadas pelo olhar particularíssimo de Aïnouz.

À construção da exposição de Eliasson, somam-se esforços para amplificar as oportunidades geradas pela mostra Panoramas do Sul, que reúne uma centena de artistas e sua produção mais recente no SESC Belenzinho. Um prêmio de comissionamento, uma rede revista de residências e um seminário que se detém sobre as particularidades do circuito de arte no Sul geopolítico são algumas das respostas que encontramos, nesta edição, para as questões que vêm norteando as mudanças do Festival. Ao refletir criticamente sobre sua natureza como veículo de afirmação e legitimação de uma produção - sua capacidade de envolver um conjunto maior de diálogos -, procuramos ir além das questões de forma e matéria para começar a entender impulsos e potências de transformação da própria atividade artística.

PANORAMAS DO SUL

A mostra Panoramas do Sul foi construída a partir de um conjunto surpreendente de trabalhos inscritos, dos quais mais de um terço realizado em outras linguagens que não as tradicionalmente acolhidas pelo Festival. Todas as regiões do eixo Sul estão presentes, ainda que algumas, como a África, em media proporcional às condições de um circuito em construção. As submissões apontam focos renovados de produção artística na Europa do Leste e em Israel. Na América do Sul, a Colômbia se destaca pelo volume e potencia dos trabalhos apresentados.

A equipe de seleção, formada pelo artista Felipe Cohen e pelos curadores Fernando Oliva e Marcio Harum, alinhou suas escolhas às mudanças conceituais do Festival, cotejando obras em vídeo e outras linguagens. “Deste ‘embate’ entre diferentes raciocínios artísticos, que assumem plataformas diversas de acordo com as necessidades formais e de conteúdo, surgiram critérios para além do lugar-comum da qualidade”, afirma Oliva. Considerou-se, por exemplo, quanto cada proposição se arrisca a testar os limites da plataforma em que opera.

A necessidade de contemplar linguagens e questões recorrentes entre as obras inscritas orientou a seleção. “Todas as principais questões da arte contemporânea estão, de certa forma, representadas no panorama final: das políticas às simbólicas e metafísicas, até todo o questionamento moderno e pós-moderno dos próprios meios da arte”, afirma Felipe Cohen.

As “gramáticas de ruptura” são marcantes entre as obras escolhidas, explica o curador Márcio Harum. “Em particular nas que refletem sobre a atual condição humana coletiva versus individual e lidam com a percepção do ambiente, num embate anímico entre natureza (paisagem) e cultura (testemunhos), ora pela exacerbação, ora pelo apagamento de uma memória nebulosa, perdida entre a ficção e a realidade.” 

CARTOGRAFIAS DO AFETO

A seleção tornou-se exercício curatorial na medida em que se aproximam estratégias e aponta questões compartilhadas. Desta observação surgem os recortes que balizam a curadoria e que se materializam nos núcleos expositivos. O primeiro, Cartografias do afeto, reúne trabalhos que podem ser entendidos como tentativas de criar representações possíveis para questões de ordem subjetiva – muitas vezes, a partir de percursos únicos, mas que se tornam língua comum, intra e extra-arte.

Mapear, compreender, inventariar o subjetivo torna-se, nessas obras, um esforço quase arqueológico, na medida em que se busca encontrar, e até mesmo recriar, sentidos para afetos - seja com memórias, seja numa tentativa de compreender experiências subjetivas. De formas diversas, elas lidam com uma sensibilidade de fronteiras - entre o pessoal e o coletivo, o indivíduo e a sociedade.

Em Love, Jealousy and Wanting in Two Places at Once, de Gregg Smith narra a experiências de um casal que, para tentar salvar um casamento do tédio e criar um reencontro amoroso, usa a estratégia inusitada de encontros com outros parceiros num clube de tango.  Em Phone Tapping, de Heewon Lee, um plano aéreo sobre uma cidade, no instante de transição entre dia e noite, pontua o encontro entre os contextos mental (a narração em voice over) e visual, inserido na paisagem urbana.

Na série de pinturas Ubatuba, Rodrigo Bivar apropria-se da técnica fotográfica, documental, para representar monumentos carregados de história. São narrativas suspensas, documentações factuais de experiências subjetivas, eue nos convidam a criar o percurso insinuado dos personagens. A não narrativa de Four Rivers, de Tenzin Phuntsog, é um exercício cinematográfico e meditativo, que testemunha, silenciosamente, as paisagens monumentais no planalto tibetano.

Em Mientras paseo en cisne, Lara Arellano usa o olhar de uma menina que viaja com os pais para pôr em diálogo paisagem exterior e estados interiores. E em Ovos de dinossauro na sala de estar, de Rafel Urban, a viúva de um colecionador de material paleontológico dedica-se a preservar a memória e o acervo do marido, num movimento paradigmático da ideia de arqueologia íntima.

NATUREZA E CULTURA

Como podemos nos reaproximar da história de forma livre, sem preconceitos e vídeos herdados do passado? Esta parece ser a pergunta que os trabalhos do segundo núcleo colocam-se (e nos colocam). A saída pode estar, ironicamente, na mais antiga estrutura do sistema da arte: o gênero. Estes artistas o habitam – não em busca de conforto, mas como agentes parasitas, subversivos, questionadores. Não querem restaurar seu tecido esgarçado, mas produzir novas e poderosas fissuras.

A relação contemplativa ou investigativa com a paisagem - que, ao mesmo tempo, ameaça nos subjugar - coexiste em Inspiration, dos russos Galina Myznikova e Sergey Provorov. A obra nos conduz a uma jornada, em estética quase pictórica, por entre uma paisagem misteriosa e cinzenta que remete ao olhar contemplativo do cineasta Andrei Tarkovski em Stalker. Personagens mimetizados, quase imperceptíveis, realizam ações incompreensíveis. Cria-se uma atmosfera de suspense, que angustia e, ao mesmo tempo, encanta o olhar.

Pilgrimage, vídeo de Eder Santos, é um registro poético da extração de minério. O autor documenta as etapas em imagens que se assemelham a pinturas, expondo texturas e colorações. A narrativa se desdobra lentamente, conduzindo o espectador por um trajeto de visualidade poderosa, que arrebata o olhar. A prática de extração, retratada com riqueza de detalhes, explicita a fragilidade da relação entre o natural e o construído, homem e natureza.

Em Transferring, Storing, Sharing, and Hybriding: The Perfect Humus, Marcello Mercado discute as conexões entre processos naturais e culturais. A partir de relações entre arquivos digitais, genoma humano, dados de satélite e banco de dados, constrói, por meio de uma narrativa intensa, o que se chama de ficção científica ecológica.

Dois videopoemas conjugados por Mihai Grecu em Sufaces: Coagulate and Centripede Sun flertam com a ficção científica e a manipulação de imagens para criar reflexões políticas e ecológicas. Em Bronze revirado, Pablo Lobato opõe uma tradição religiosa à sua impactante fisicalidade; em Cruzada, Cinthia Marcelle orquestra e reordena uma formação militar para metaforizar embates socioculturais. Finalmente, Vanish, de Theo Craveiro, prende elementos naturais e perecíveis em um rigoroso arranjo formal.

PAISAGEM POLÍTICAS

Os artistas reunidos neste segmento convocam para o campo das artes visuais – e seu circuito – dilemas que, até então, pertencem à esfera pública, social, compartilhada, antigas oposições, como arte/política e local/global, são atravessadas pelo mesmo vetor. Longe de se configurar como movimento de circunscrição de territórios, a estratégia revela uma potência que parece vir justamente da falta de receio de parecer por demais literal ou explícita, ou de percorrer caminhos já trilhados.

Ao reunir, em Crossing Points, registros em vídeo que mostram o dia a dia de grupos guerrilheiros colombianos, Edwin Sanchez revela a violência da guerrilha, mas também seu aspecto inevitavelmente prosaico. Em H2, Nurrit Sharett narra suas trocas com mulheres de Hebron, Cisjordânia, cidade cindida em seções de comunicação controlada, governada pela Palestina e por Israel.

Unforgettable Memory tenta, por meio de um expediente muito simples, resgatar a memória dos protestos contra o governo de Deng Xiaoping, na Pequim de 1989. O autor, Liu Wei, parece se perguntar o que pode mais, a memória ou a indiferença. Aisinha in Wonderland, Zafer Topaloglu, é menos metáfora que retrato da violência física e emocional nos campos de refugiados libaneses.

Em tom de paródia, Solenidade de hasteamento da bandeira “Ao Vivo”, de Cristiano Lenhadrt, lembra a ditadura militar brasileira. No irônico Beitbridge Moonwalk, Dan Halter associa a dança criada por Michael Jackson a um expediente usado por zimbabuanos para entrar na África do Sul desapercebidos.

Em Superbloques, Luis F. Ramirez Celis aproxima o apagamento de um símbolo da arquitetura modernista do drama do morador de um conjunto habitacional condenado em Caracas. Sutil, o australiano Shaun Gladwll opõe duas performances improváveis em Double Balancing Act, para tratar de violência e beleza.

MÁQUINAS DE VER

As obras desta seção posicionam no centro do debate a noção de um mecanismo “gerador”, no sentido mais abrangente que o termo oferece. Expressa frequentemente na construção de dispositivos ópticos, que alteram o olhar e propõem novas visões, a opção se configura, a um só tempo, como lugar de partida e de chegada. Entre um ponto e outro, abre espaço para que o novo, o experimental e o risco se imponham, revelando procedimentos que parecem exigir uma presença visível (e talvez esta seja sua característica mais generosa).

 Em Até Onde Vivemos?, Roderick Steel cria intervenções sobre imagens captadas em vídeo para inserir narrativas dentro de narrativas e investigar a capacidade humana de imaginar e navegar por mundos subjetivos. Em Eight-Times-Twenty-Five, Rolando Vargas conduz um percurso até uma batalha pela independência colombiana, há dois séculos, usando materiais audiovisuais dos National Archives norte-americanos. Em Funny Games, de José Villalobos Romero, é o espectador quem cria a narrativa, interferindo em duas versões do filme de Michael Haneke.

O Instante Impossível [gotas e taça], de Alexandre B, revisita as lanternas máginas do século 17, as primeiras experiências conhecidas com projeçãoo de imagens, para criar mecanismos que alteram a percepção tridimensional de objetos translúsicos. Ilan Waisberg faz operação semelhante em Transfers, série de dispositivos que permitem visualizar imagens de fotogramas e, a partir delas, criar pequenas narrativas. Câmeras pin-hole feitas com caixas de fósforo produzem as imagens usadas por Dirceu Maués para recriar afetivamente a praia de Outeiro, em Bém (PA), no trabalho Em lugar qualquer – Outeiro.

Perspectiva sobre fundo negro, de Ricardo Carioba, usa animação para opor a ideia de perspectiva presente na imagem produzida e a perspectiva percebida pelo ser humano. Gravada no porto de Reykjavík, Islândia, Toga, de Marcellvs L., registra uma grande rede de pesca sendo retirada de um barco que esteve dois meses no mar. A partir de uma estratégia de repetição que produz efeito de continuidade, cria uma dimensão reflexiva e um movimento que impede o espectador de focar sua visão.

REDE DE RESIDÊNCIAS

Um aspecto da experiência artística que adquire relevância cada vez maior no cenário internacional são as possibilidades criadas pelas residências. Parcerias estratégicas com instituições de formação, pesquisa e produção permitem ao 17º Festival oferecer oito prêmios de residência em três continentes. O Festival fortalece sua rede de parceiros ao reunir representantes para apresentar seus programas em detalhe e participar de sessões de trabalho destinadas a refletir sobre o impacto das residências na produção artística atual.

Outra preocupação reforçada nesta edição é a de aperfeiçoar os critérios que designam a residência mais adequada a cada artista, com base não apenas na natureza dos programas, mas também nas características e estágio de desenvolvimento dos trabalhos. Essa adequação é crítica no contexto de uma rede que oferece experiências diversas em natureza e foco.

As residências brasileiras são exemplo. A residência Artística FAAP, que oferece dois prêmios no Festival, tem sede no Edifício Lutetia, no centro de São Paulo, e estimula os artistas a investigar o contexto urbano. O programa é mantido pela Fundação Armando Álvares Penteado. Uma terceira residência acontece no Instituto Sacatar, em Itaparica (BA), em um programa que enfatiza a importância do ambiente para a criação de uma dinâmica de convivência e ações colaborativas entre os residentes. O prêmio tem apoio do Prince Claus Fund holandês.

Mais dois prêmios-residência acontecem na América Latina, na Galería Kiosko, em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. Criado em 2007, o programa reúne um artista boliviano e um artista de outra nacionalidade em convivências de dois meses. Caracteriza-se pela preocupação política e social, e estimula os artistas a enfrentar questões culturais com propostas originais. Integrantes do residencias_en_red, a residência é apoiada pelo Centro Cultural da Espanha e pela Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID). 

 A rede se estende à Europa, por meio de parceirias com o Videoformes, em Clermont-Ferrand, na França - possibilitada pelo Consulado Francês em São Paulo e pela Aliança Francesa - e a Vrije Academie Werkplaats voor Beeldende Kunsten, em Haia, na Holanda, que receberão um artista premiado cada uma. Centro de produção e difusão de linguagens artísticas basedas em vídeo e tecnologias digitais, o Videoformes oferece apoio técnico e intercâmbio de conhecimento em sua residência. Na WBK, o programa estimula jovens artistas a explorar visões novas, que contribueam para o seu trabalho.

Pela primeira vez, o Festival tem entre seus prêmios uma residência na África. Criado em 2003, por artistas, o centro de arte contemporânea pARTage, nas ilhas Maurício, incentiva projetos que respondam ao ambiente, estimulando a interação com artistas locais e habitantes da ilha. O prêmio tem apoio do Prince Claus Fund.

ATELIÊ ABERTO VIDEOBRASIL

Da reflexão sobre o processo de pesquisa em arte-residência e sobre o embate com o outro e com o espaço nasce, ainda, o Ateliê Aberto Videobrasil, projeto de comissionamento lançado pelo 17º Festival. A residência aponta para o lugar e para a cidade. A ideia do edital foi estimular a criação de obras a partir de uma dinâmica de trabalho que promovesse o encontro efetivo, sem meios de escapar ao desafio do enfrentamento com os limites de nossas ideias e nossas formas de realizá-las.

 A premissa do projeto foi trabalhar com artistas residentes em São Paulo. Selecionados pelo Festival, quatro artistas desenvolveram obras em convivência, entre abril e julho de 2011, na Casa Tomada, sob o acompanhamento de um grupo de curadores e professores. A escolha do espaço paulistano independente, de formato particular, alinha-se ao desejo de encorajar iniciativas geridas por artistas e organizações independentes, cuja estratégia de trabalho discute e reflete a necessidade da relação com a instituição e seus desdobramentos nos projetos artísticos.

“O termo residência não diz respeito a um formato, mas a uma ideia de deslocamento da produção do artista, que se propõe sair do seu espaço habitual de trabalho e embarcar em outra dinâmica”, afirma a curadora Tainá Azeredo, da Casa Tomada. “O estar junto é o ponto principal do programa. Pensar numa organicidade do convívio é pensar na desestabilização dos métodos de trabalho e pesquisa do residente. Viver esta residência é se fazer presente no contato com o outro.”

“Em uma perspectiva contemporânea que se aplica ao proposto pelo conceito da residência, o ateliê não é mais, necessariamente, lugar do puro isolamento”, afirma Marcos Moraes, da equipe de acompanhamento. “Como essa possibilidade de convivência e deslocamento na cidade de São Paulo, o Ateliê pode ser visto como contraponto ao isolamento decorrente dos processos de fuga da vida contemporânea e ameaças do cotidiano de grandes metrópoles, como a nossa.”

A primeira edição do Ateliê Aberto resulta num conjunto significativo de trabalho, gerados a partir de um mosaico de possibilidades e de potencialidades de meios, linguagens, suportes, investigações e interesses, e impregnados pelos signos do espaço onde acontece e seu entorno. Integrados à mostra Panoramas do Sul, eles transitam entre o vídeo e a pintura.

SÃO PAULO

Não deixa de ser curioso que, ao abrir-se a todas as práticas artísticas contemporâneas, o Festival retome, com intensidade e ânimo novos, suas aproximações criativas com as possibilidades da televisão. Semanal, a programação do Festival no SESCTV configura-se como plataforma adicional para a fruição de seus conteúdos. O arranjo amplia o espectro do Festival, que passa a se articular, também, a partir da percepção da TV como espaço de criação, reflexão e construção de sentidos em torno da produção artística contemporânea. Voltado à cultura e à educação, e retransmitido em sinal aberto por emissoras educativas independentes e operadoras de TV por assinatura para todo o Brasil, o canal se apresenta como veículo ideal para amplificar essa possibilidade.

As mudanças que marcam o 17º Festival têm um ícone no troféu criado para a mostra Panoramas do Sul por Tunga, artista brasileiro amplamente reconhecido no circuito internacional da arte contemporânea. No objeto-escultura que concebeu, elementos de seu repertório poético, como cristal e líquido âmbar, contidos por uma malha metálica, envolvem e intervêm no corpo e no campo de visão de uma câmera de vídeo. Com funcionamento preservado, a câmera-troféu permite experimentar um olhar interferido pelo artista.

O conjunto de desdobramentos pensados para o 17º Festival é exemplo do que temos perseguido como instituição: um modelo que funcione como plataforma para a produção, circulação e discussão da arte contemporânea no Sul, em parceria e diálogo com curadores, artistas e outras instituições. Espaços de reflexão e produção artística ampliados, que configuram e constituem um circuito, contribuem para que estas práticas e investigações desencadeiem outras possibilidades de leitura, entendimento e circulação de arte. A extrapolação de seus limites e suas possíveis contaminações transcendem o circuito oficial das artes visuais, alimentando outras esferas de inserção em uma possível história e crítica de arte.

Ao estabelecer zonas temporárias de intercâmbio por meio de proposições artísticas, com a parceria continuada, indispensável e sempre estimulante do SESC, o Festival coloca-se em um patamar diverso dentro do circuito em que se inscreve: a cidade de São Paulo. Assumindo os riscos curatoriais consideráveis de uma escolha baseada em submissões, gera um recorte de porte e diversidade únicas de uma produção potente: a arte produzida hoje no Sul geopolítico do mundo. Sob a luz generosa da obra de Olafur Eliasson, o 17º Festival configura‐se como o evento que identifica São Paulo às manifestações contemporâneas em toda a sua amplitude.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil. De 30 de setembro de 2011 a 29 de janeiro de 2012. p. 16 a 23. São Paulo, SP, 2011.

Texto de curadoria Valquiria Prates, 2011

Arte, Educação e Formação: a Exposição como Campo para o Exercício da Liberdade

“Arte é o que torna a vida mais interessante do que a arte.”

Robert Filliou1  

“Quando percebo, não penso o mundo; ele se organiza diante de mim.”

Merleau-Ponty2

A vontade de conhecer as coisas do mundo e viver situações de forma atenta e integral nos leva a querer experimentá-las, examiná-las, esgotá-las. A arte, a ciência e a educação são alguns dos campos de formação nos quais as experiências humanas se articulam na construção de formas de partilha daquilo que foi vivido e examinado. Cada um à sua maneira, com procedimentos específicos, esses campos têm na pesquisa o modo de investigação daquilo que se busca – e que, de antemão, ainda não se conhece como todo, mas apenas em fragmentos de sentido.

A arte, a educação e a ciência consideram, desta forma, que tudo pode ser objeto de pesquisa: lugares, pessoas, relações, natureza, cidades, livros, obras, contextos, sentimentos, conceitos. Investigar estes e outros aspectos da experiência expande nossas possibilidades de ver, sentir e pensar, num percurso ao longo do qual se modelam nossas percepções sobre quem somos, como nos colocamos no mundo e qual a natureza das relações que construímos com ele.

No âmbito da arte contemporânea, a questão da experiência como forma de conhecimento do mundo é abordada pelo pedagogo e filósofo norte-americano John Dewey (1859-1952), o matemático e filósofo alemão Edmund Husserl3 (1859-1938) e o fenomenologista francês Merleau-Ponty (1908-1961). Em primeira instância, ela é tudo aquilo que acontece entre o mundo e o corpo do artista no momento em que a obra é produzida, ou seja, tudo o que ressalta o fato de o artista estar vivo e em relação sensível, racional e sensorial com o ambiente.

Para Dewey 4, a experiência de fruição da arte diferencia-se de outros tipos de contato na medida em que, chamando nossa atenção para a realidade em que vivemos, concentra e intensifica determinados aspectos em forma de signos e objetos que podem ser apreendidos também por nossos sentidos. Como em um convite à perplexidade e à descoberta face a uma espécie de reorganização de experiências que só podem ser partilhadas, em sua potência, por meio da arte.

Esta abordagem da arte é o ponto de partida da curadoria educativa do 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil. Aqui, as duas exposições que compõem o Festival – Panoramas do Sul e Olafur Eliasson – Seu corpo da obra – são vistas como laboratórios permanentes de pesquisa para seus diversos públicos, incluindo estudantes, famílias, e os artistas e pesquisadores convidados ou envolvidos nos processos que perpassam o evento.

A curadoria das ações de Arte, Educação e Formação tem como objetivo principal elaborar plataformas que garantam a públicos de interesses, origens e faixas etárias diversos acesso à investigação curatorial que norteia cada mostra. Estruturada a partir do mapeamento da arte produzida nas regiões do Sul geopolítico do mundo nos últimos dois anos, Panoramas do Sul reúne obras que nos convidam a confrontar criticamente formas de sentir, conviver, fazer política e nos relacionarmos com o mundo, o outro, a natureza e a cultura.

Esses convites se organizam em torno das linhas de força identificadas pela comissão curatorial do Festival, que também orientam a configuração espacial da exposição. Na programação educativa, eles ressoam em trabalhos que abordam as relações entre natureza e cultura; as manifestações da afetividade humana; as ações e âmbitos de ação política e produção artística em contextos específicos do Sul geopolítico; a multiplicidade de formas de constituir imagens e observá-las, por meio de mediação e aparatos óticos.

Questões essenciais à formação, produção, circulação e curadoria da arte contemporânea, no contexto do Sul geopolítico do mundo e de sua relação com o circuito internacional, são tema de uma atividade específica: os Seminários Panoramas do Sul. Curadores e artistas relatam experiências de relevo nesse contexto; em torno delas, se instaura uma arena de debates. Participam os curadores Adriano Pedrosa, Lisette Lagnado, Cristiana Tejo, Cristina Freire, Fernando Oliva, Eduardo de Jesus, Tainá Azeredo e Thereza Farkas (Brasil), Paola Santoscoy (Cuba), Olu Oguibe e Bisi Silva (Nigéria), María Inéz Rodríguez (Colômbia) e Miguel López (Peru), a artista Tania Bruguera (Cuba) e editores das revistas Tatuí (Brasil) e Asterisco (Colômbia).

As proposições do artista convidado Olafur Eliasson, que se manifestam como laboratórios per se de experiências cognitivas e de percepção espacial, dão margem a indagações vastas e instigantes, que dizem respeito à natureza do processo de percepção e à relação sujeito/objeto. Seu corpo da obra é um panorama das máquinas de produzir fenômenos criadas por Eliasson, e que só se completam como obras na medida em que são experimentadas pelo corpo do público.“O público é a questão”, diz o artista.“É nele que a obra acontece.”

Conjugadas num leque de possibilidades, todas estas linhas de força tornam-se disparadores para as ações educativas. Conduzidas por artistas, educadores, filósofos, críticos, curadores e especialistas em arte, elas exploram os caminhos de experiência e pesquisa em arte, educação formação que as exposições oferecem. Além dos temas que emergem delas, investigam também sua própria especificidade de atuação, observando e questionando, em cada ação, o que pode ser aprendido por meio da arte; de que formas a arte se manifesta como prática de formação de cidadãos, utilizando‐se de linguagens, métodos e estratégias artísticas e pedagógicas; de que forma a arte se confronta com as necessidades inerentes aos processos político-educacionais tradicionais.

Fundações

Constituídas a partir do entrelaçamento de referências tomadas de artistas, educadores, curadores e filósofos, algumas definições específicas de arte e formação orientam a pesquisa que sustenta esta curadoria educativa.

“Arte é o terreno para o exercício experimental da liberdade” 5, afirma o ativista, crítico e curador brasileiro Mario Pedrosa (1900-1981). De acordo com essa concepção, o fazer artístico e sua recepção são formas de resistência e de atuação política para a transformação de contextos sociais e políticos na modernidade e na pós-modernidade.

A esta concepção de arte como força para a liberdade, alinha-se a ideia do artista Robert Filliou de que cabe às manifestações artísticas tornar a vida mais interessante que a própria arte, convocando-nos, por meio de nossos sentidos, a apreender a vida em suas múltiplas dimensões e com toda a intensidade possível.

Esta curadoria educativa é construída, ainda, por uma ideia de educação como lugar do exercício da autonomia crítica, da aprendizagem e da participação autônoma, em contextos sociais horizontais, nos quais todos os envolvidos aprendem juntos, ainda que sob uma orientação específica. Por ela somos levados a transformar condições e contextos de vida, como defendia o educador Paulo Freire (1921-1997) e seus experimentos em educação social para a autonomia por meio da comunicação e da linguagem:

Não há inteligência (...) que não seja também comunicação do inteligido (...). A tarefa coerente do educador (...) é, exercendo como ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunica, a produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado 6.

Este tipo de contexto educativo pode acontecer em exposições a partir da exploração experimental de quatro operações básicas, aplicadas a valores, ideias, conceitos e contextos da vida e da arte contemporânea, de acordo com as experiências vividas pela educadora alemã Carmen Mörsch7 (na Documenta 12): afirmação, reprodução, desconstrução e transformação de ideias, contextos e atitudes artísticas e sociais. Educar, nesse sentido, abrange o conjunto de atividades, ações e situações pelos quais aprendemos e transformamos nossos conceitos de vida e de saberes específicos de forma crítica, tendo por orientação principal a emancipação intelectual, conforme defende o filósofo francês Jacques Rancière8:

A emancipação começa quando recolocamos em questão a oposição entre olhar e agir, quando compreendemos que as evidências que estruturam assim as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem elas mesmas à estrutura de dominação e de sujeição. Ela começa quando compreendemos que olhar também é uma ação que confirma ou transforma esta distribuição de posições. O espectador também age, como aluno ou sábio. Ele observa, seleciona, compara, interpreta. Ele liga o que ele vê a muitas outras coisas vistas em outras cenas, em outros tipos de lugar. Ele compõe seu próprio poema com os elementos do poema que está a sua frente (...).

Este processo educativo multifacetado de vivências para a emancipação intelectual é o que chamamos de formação. Ele consiste na ação ininterrupta de aprendizagem, pela qual todos os indivíduos passam durante suas vidas, em diferentes comunidades de “partilha de interesses” e sentidos, conforme Rancière. Pode ser mediada por agentes externos em contextos informais institucionais, formais ou não formais (como escolas ou instituições culturais).

Pressupõe a transformação constante das ideias e a expansão de conceitos previamente adquiridos. Constitui, de acordo com o artista alemão Joseph Beuys (1921-1986), um caminho evolutivo para a escultura social, a ação política que transforma e remodela contextos e comunidades com vistas ao progresso coletivo e à satisfação individual das necessidades de expressão, criação e reflexão.

Justamente por considerar a exposição uma plataforma viva para o exercício da criatividade, da expressão e da construção partilhada de reflexões, interpretações e sentidos para a vida e para a própria arte, todas as ações propostas pela curadoria educativa do 17 o Festival buscam potencializar as trocas e encontros sociais para a reflexão e a experimentação.

Tanto os seminários em série quanto as conversas, cursos, oficinas, palestras, visitas mediadas, atividades em família e parcerias com grupos de pesquisa e estudo da arte e suas linguagens são um convite ao exercício da investigação de questões pertinentes à formação em artes, sua produção, circulação e crítica.

Simultaneamente, o contato com as obras e com suas muitas interpretações possíveis promove um aprender sobre relações entre pessoas de variadas nuances, a vida em diferentes comunidades, formas de empoderamento e ação social, modos de interação entre natureza e cultura.

Porque todos, enquanto vivos, estamos em formação. E, especialmente, porque podemos fazer parte de uma comunidade que partilha o sensível – aquilo que sentimos e também o que faz sentido, individual e coletivamente, nos processos do aprender a viver.

Notas

1. Filliou,Robert. L’art est ce qui rend la vie plus intéressante que l’art. Quebec: Intervention, 2003.

2. Merleau-Ponty, Maurice. Textos escolhidos. Seleção e tradução de Marilena Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1975

3. Husserl, Edmund. A ideia de fenomenologia. São Paulo: Edições 70, 2008.

4. Dewey, John. Arte como experiência. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2010.

5. Pedrosa, Mario. Arte, forma e personalidade. São Paulo: Kairós Livraria e Editora Ltda., 1979

6. Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996.

7. Mörsch, Carmen. Documenta 12 education II. Between Critical Practice and Visitor Services Results of a Research Project. Berlim: Diaphanes, 2009

8. Rancière, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010. Ver também, do mesmo autor, A partilha do sensível – estética e política. São Paulo: EXO/ Experimental – Editora 34, 2005.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil. De 30 de setembro de 2011 a 29 de janeiro de 2012. p. 36 a 38. São Paulo, SP, 2011.

Texto institucional Danilo Santos de Miranda, 2011

Experiências Visuais

A arte propicia o enriquecimento da experiência humana, por meio de vivências sensíveis, e revigora olhares acerca do momento em que vivemos. As novas mídias e as imagens invadem nosso cotidiano em diversos formatos, provocando transformações culturais e sociais. O surgimento de diferentes suportes para a expressão artística, impulsionados pelo avanço tecnológico, cria uma efervescência de possibilidades visuais que interferem nos modos de ver e interpretar o mundo, favorecendo a relação e o contato entre as matrizes artísticas tradicionais e as inovações tecnológicas.

É neste ambiente que o 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil se insere, trazendo alterações e absorvendo as linguagens artísticas que percorrem as inquietações atuais no campo das artes visuais.

Com uma proposta de ampliação de seu formato, e em conformidade com as urgências do discurso contemporâneo, a mostra competitiva Panoramas do Sul passa a receber, além dos trabalhos em vídeo, produções artísticas das áreas de performance, instalação, fotografia, pintura e livros de artistas com representações da produção artística de diferentes continentes.

O convidado especial desta edição é o artista dinamarquês Olafur Eliasson, que inaugura sua primeira exposição individual na América do Sul, na ocupação do SESC Pompeia e SESC Belenzinho, além da Pinacoteca do Estado.

Os trabalhos inéditos para esta mostra possuem uma elaborada produção, visando o diálogo aberto com o público e tratando da exploração das sensações. Esses aspectos tornam o trabalho de Olafur Eliasson paradigmático, uma experiência transformadora da arte contemporânea.

Em consonância com as ações da instituição, um aspecto importante do Festival é o espaço dedicado ao atendimento educativo que, nesta edição, inclui seminários, cursos para educadores, atendimento de grupos e de visitas espontâneas, e programação na internet. O público também terá acesso ao Festival por meio de programas do SESCTV, ampliando o circuito de fruição artística e participação coletiva.

Entre as formas pelas quais a instituição revigora a essência de suas ações socioculturais estão as parcerias, pois, nesse contexto, ocorrem as trocas de saberes, a assimilação de novos conhecimentos ou de perspectivas inusitadas.

Parceiros desde 1992, o SESC e a Associação Cultural Videobrasil promovem o encontro da diversidade de expressões e a participação de artistas de diferentes territórios e culturas, ao mediar modos distintos de perceber e conceber as experiências do olhar.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil. De 30 de setembro de 2011 a 29 de janeiro de 2012. p. 10 a 11. São Paulo, SP, 2011.