Ensaio Daniela Bousso, 05/2007
ensaio_ ff>>dossier Rosângela Rennó_ "Da imagem fotográfica à imagem em movimento: Rosângela"
Da imagem fotográfica à imagem em movimento: Rosângela
A obra de Rosângela Rennó integra um eixo contemporâneo de ação artística que opera relações de trânsito e simultaneidade em espaços coletivos e colaborativos que colocam em debate os clichês da sociedade globalizada. A artista cria a metáfora do nosso tempo por meio da produção de múltiplos sentidos e aciona incessantemente a participação do espectador.
É dentro da idéia de modernidade líquida, formulada por Zygmunt Bauman,* que podemos referenciar essa obra, cujo teor sociopolítico vem em clima de denúncia – sem pretender ser porta-voz da diferença – e provoca uma fricção em reação imediata à nossa condição líquida e fluida. Como diria Bauman, “líquido” é um conceito que define a oposição à idéia de fixidez e de peso da modernidade. A mudança da nossa noção de espaço e tempo deve–se a uma circunstância de sobreposição e instabilidade, que vem ocorrendo desde o início do século 20 e que tem se acirrado na virada do milênio. Na atualidade, estamos diante de uma situação universal em trânsito, feita consecutivamente de aceleração e amnésia, e que promove o apagamento da memória.
O assunto “esquecimento e amnésia” tem sido um foco privilegiado de discussão no campo da arte a partir do advento da globalização no planeta. O uso de jogos que alternam o ficcional e o real produz o que atualmente chamamos de “modo documental” na arte, que encontramos nas obras de artistas como Walid Raad, a jovem Alice Miceli e outros, além da própria Rosângela. Cabe, então, indagar como esta artista tem potencializado essa discussão.
Eu diria que a obra de Rennó constitui uma espécie de “Arquivo vivo”. Arquivo como fonte de resgate da memória, para a construção da história e como estratégia de combate à amnésia. Aqui, arrisco não me deter na descrição da sua obra – desdobrada por mais de vinte anos em arquivos, coleções, bibliotecas, diários, arquivística e vídeos, a partir de fotos, instalações, filmes e objetos – para tentar adentrar o seu percurso em relação à imagem.
Parece certo que o seu interesse não se atém somente ao campo da fotografia. Tanto é assim que era difícil nomear a sua atividade. Se lhe perguntássemos se era fotógrafa, rapidamente ela se esquivava dessa nomenclatura; ela se dizia artista e fazia a diferenciação entre a sua atitude e a dos fotógrafos tradicionais. Penso que o compromisso de Rennó é com a trajetória da imagem e que ela rastreia um percurso que vem da fotografia à imagem em movimento, alcançando a experiência cinemática e atualizando-a por meio do que hoje denominamos Transcinemas ou cinemas do futuro.
Segundo Kátia Maciel, que cunhou esse termo juntamente com André Parente, Transcinema é “o cinema como interface, isto é, como uma superfície em que podemos ir através” [...] “A invenção do espaço tridimensional renascentista, a ruptura com este espaço pela modernidade e a criação do espaço imersivo na contemporaneidade indicam o movimento desta idéia no tempo” [...] “se pensarmos na maneira como, no Brasil, o Neoconcretismo problematiza a quebra da moldura e a espacialização da pintura, esclarecemos um processo que irá resultar na inclusão do espectador na obra” [...] “a variedade de formas a que chamamos de Transcinemas produz uma imagem – relação que se constitui a partir de um observador implicado em seu processo de recepção. É a este espectador tornado participador que cabe a articulação entre os elementos propostos e é nesta relação que se estabelece um modelo possível de situação a ser vivida” [...] “não é o artista que define o que é a obra, nem mesmo o sujeito implicado, mas é a relação entre estes termos que institui a forma sensível. É a este cinema relação criado de situações de luz e movimento em superfícies híbridas que chamamos de Transcinema.”**
A obra de Rennó situa-se no campo dos deslocamentos e dos territórios expandidos, dos desígnios e percursos que, se não cabem na discussão dos meios ou das mídias, ocupam lugares não específicos, espaços intersticiais e de indeterminação, nos quais o espectador, ao modo já proposto por Oiticica, transforma-se em participador da obra. Em qualquer um dos meios em que opera, do colecionismo fotográfico às videoinstalações e às experiências com filmes, o grau de completude da obra dependerá da relação de alteridade, de um “outro” co–autor, de um desencadeamento mental-imagético, para que a obra cumpra a sua função e atinja a sua máxima poética, que é o vislumbre do devir.
Isso significa operar em tal grau de tensão a ponto de modificar o destino das imagens (devir) encontradas em álbuns de família rastreados em brechós, em arquivos prisionais. Visa a apropriação, o deslocamento e a ressignificação destes, a partir de um ato de intervenção da artista que pressupõe a reintervenção do “outro”. Por trás da aparente obsessão de colecionar e arquivar, revela-se a presença constante que é, em última análise, o fio condutor de toda a sua trajetória: a narrativa. Em tudo ela se metamorfoseia, desde as operações com o próprio meio fotográfico até seus mais recentes experimentos com filmes. Interessam os desencadeamentos provocados no perceptum do observador quando em contato com a obra.
Ao constituir novas narrativas que criam imaginários cinemáticos, a obra nos alcança em nossa dimensão corpórea, herança do minimalismo e do próprio percurso das instalações a partir dos anos 1990 na arte. É quando o cinema evolui para a interatividade, configurando a idéia de Transcinema. A ênfase na evolução do cinema – caracterizada desde os anos 1960 pelo movimento do cinema expandido ligado ao experimentalismo, que altera a condição clássica de recepção de filmes: película e platéia/recepção passiva – transparece em Experiência de cinema.
Nesta obra, quatro seqüências de imagens intermitentes aparecem e desaparecem. A projeção em uma cortina de fumaça que movimenta imagens em gelo seco é criada a partir de fotos de arquivo organizadas em quatro seqüências fílmicas, com oito segundos de duração cada. A instalação conta com a espacialidade das videoinstalações, mas a materialidade efêmera das imagens em movimento projetadas constitui uma espécie de tela volátil. A cortina de fumaça evoca a condição fantasmagórica das lanternas mágicas do século 17 e remonta aos primórdios da história do cinema.
Curiosamente, Rennó trabalha com quatro gêneros do cinema nestas seqüências: amor, família, filme de guerra e policial, cada uma com 31 fotografias. O jogo ficcional entre amor e morte permanece como integrante de sua obra, juntamente com a narrativa. O que nos intriga é perceber como estes quatro gêneros soam como clichês da crise no mundo contemporâneo. Existe algo mais assustador e, finalmente, mais recorrente do que a idéia da morte e da impossibilidade do amor romântico, das relações familiares ou grupais na modernidade líquida?
Segundo Bauman, os padrões de liquefação hoje se deslocaram do campo político para o da vida privada, e os laços de dependência e interação vêm sendo sistematicamente negados, justamente para não manterem a sua forma por um tempo estendido: tudo tende a se desfazer de forma a se tornar fluido. Tudo que é fluido escorre e se dilui, nos escapa, mas também não nos compromete. E, quanto aos clichês da guerra e da violência, ainda que postos sob forma de vigilância e punição, não estaria Rosângela, em última instância, encetando um discurso sobre a opressão? A cada seqüência que some na fumaça, não estamos sendo colocados diante do inevitável escape, da inexorável evanescência de tudo que nos concerne em tempos atuais?
As aparições e desaparições das seqüências cinemáticas colocam o público em um tipo de experiência única, onde a intermitência e a interrupção, além de provocarem no espectador a sensação de estar diante do fugaz, daquilo que escapa sem possibilidade deste intervir, o faz lidar com um momento de suspensão e estranhamento. Aí é que a artista opera um mecanismo extremamente sofisticado no jogo da percepção. O intervalo de tempo entre uma seqüência e outra nos traz a sensação do apagamento, da perda de algo que permanece em nível subliminar; ficamos, de súbito, diante do impalpável e do inefável, eis a crueldade desta forma de opressão: quando sentimos que vamos perder algo ou que este algo vai se apagar e se perder no túnel do tempo, aí é que queremos reter este algo que se esvai antes que possamos compreendê-lo ou sequer tocá-lo.
Em Experiência de cinema, não é a amnésia em si que nos causa assombro, mas a impossibilidade de detê-la, a sua irreversibilidade. Tudo isso sem falar no caráter inovador do experimento com uma outra forma de fazer cinema, este cinema expandido ou Transcinema, almejado desde o Surrealismo, passando pelo cinema experimental dos anos 1960 e finalmente chegando à relação de interatividade com o participador entre os anos 1990 e 2000.
Afora isso tudo, Rennó ainda cria uma situação de suspensão e suspense que chega a nos lembrar filmes como O discreto charme da burguesia e O fantasma da liberdade, de Luis Buñuel, onde a dissociação de fatos e realidades provoca em nós a sensação de termos que remontar um quebra-cabeça para recompor o todo. A suspensão de temporalidades em Experiência de cinema não nos permite elaborar a narrativa, e a angústia da urgência por outra seqüência gera, no intervalo, um sentimento de desolamento e solidão. Novamente entra em jogo, agora pelo avesso, o combate ao apagamento e à amnésia, uma das máximas na poética desta artista.
Em tempo, arrisco pensar que os arquivos, as bibliotecas, as coleções, os álbuns, os personagens “trouvés” de Rosângela Rennó vêm vindo, há mais de duas décadas, para integrar uma grande narrativa, ainda que desconstruída. O seu percurso em relação à imagem não se atém à condição poética; há uma investigação formal que desembocou na experiência da imagem em movimento. O “Arquivo vivo” de Rennó é mais que um testemunho transgeneracional, pois tem no centro dos seus experimentos a interatividade e a força sensória da imagem-relação. Já é, como diriam os cariocas. Sempre foi e já é Transcinema.
* BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
** MACIEL, Kátia. Transcinema e a estética da interrupção em limiares da imagem, Antonio Fatorelli e Fernando Bruno, (org.), Rio de Janeiro: Maud, 2006.
Associação Cultural Videobrasil. "FF>>Dossier 029>>Rosângela Rennó". Disponível em:
Ensaio Daniela Bousso, 03/2009
ensaio_ff>>dossier "Desvios"
Desvios
A obra de Caetano Dias emergiu no contexto dos anos 1990 e pode ser analisada a partir de um prisma sociopolítico, levando-se em conta o Brasil das duas últimas décadas. A ótica deste artista é parâmetro de entendimento da constante tensão entre mecanismos de poder e técnicas de resistência, e tem no centro de sua poética o corpo.
A complexidade na obra de Dias resulta de uma produção feita a partir de operações com diferentes meios, que vêm da escultura e da pintura propriamente ditas, passam por ações e intervenções na escala urbana, e desembocam na fotografia, no vídeo e no filme, além das ações e das intervenções na rede internet que geram sites e obras interativas.
O leque de questões propostas por Dias é abrangente, pois implica a criação de diferentes patamares metafóricos: a discussão da sexualidade, o deslocamento do estatuto da religiosidade, a presença de aspectos míticos e de fabulações. Caetano se coloca, ainda, muitas vezes, na posição de voyeur. A exaltação da sensualidade do espectador nas experiências relacionais, por último, configura o amplo conjunto de ações e desdobramentos que fazem do corpo o protagonista significante capaz de gerar metáforas em sua obra.
Ao recriar o precário e ao lançar um olhar sobre o barroco, Dias promove interações humanas inseridas no contexto urbano de Salvador e discute a condição homossexual a partir de um patamar metafórico. E o faz por meio de uma estética homoerótica, mesclada a um forte sentimento de religiosidade. Um exemplo é a série Bestiário digital: a retirada das imagens da internet, que patinam em um possível limbo, pode ocorrer por assepsia e pela elevação do pornô ao sacro.
É no campo das intervenções urbanas, seja no espaço real ou no espaço cibernético, que podemos alocar a produção deste artista, que pesquisa diferentes modos de existência e diferentes modelos de ação no interior de uma realidade. A escala escolhida por Dias é a da recriação de sentidos e novas subjetividades a partir de uma estética que conjuga perfis simultâneos que interagem.
Pelas características da época em que vive, Caetano não enfrenta problemas em relação ao uso de um determinado meio na arte. Ao contrário, vale-se da convergência e da coexistência dos meios para retirar deles o sujeito e o objeto do seu universo.
Assim, quando o artista transfere as suas apropriações do plano analógico para o plano digital, virtual, globalizado, produz as séries Santos populares, Sobre a Virgem e Corpus Christi. Cada uma delas tem gerado inúmeras outras, dentro das próprias séries, e resultam em fotos, instalações, sites, performances e vídeos.
Na obra de Caetano, o interesse pela possibilidade de ressignificar o corpo remonta ao início dos anos 1990, quando se apropriava de gravuras confeccionadas pelos artistas viajantes do período colonial brasileiro para retrabalhar o olhar exótico daqueles. Mantendo trânsito constante entre construção e apropriação, Dias é um investigador das possibilidades dos meios e os coloca a serviço de suas reflexões. Utiliza sites de busca na internet para encontrar imagens de repertório erótico e reprocessá-las. Diluindo suas formas e desfocando-as, o artista as devolve à condição de anonimato: ao perder o foco, as imagens perdem a origem; os configuradores de identidade – olhos, nariz, boca, fronte – são alterados para mudar o significado imagético.
Em um segundo momento de seqüência operacional, o artista renomeou essas representações e criou as séries Santos populares e Sobre a Virgem. Promoveu um deslocamento no centro de gravidade do objeto considerado e realizou a mutação de sua identidade. E resgatou o sentido “sacro” da tradição popular. O resgate e a aproximação com a tradição popular não ocorrem em relação à forma. “A minha intenção não é a de virtualizar o real como tecnologia da forma”. Dias caminha no sentido oposto da forma representada na cultura popular. Cria pictorialidades no uso da fotografia, atualizando a representação do corpo: “Faço uso de recursos ‘desrealizantes’ para subtração de parte da matéria... também mesclo imagens da internet com registros fotográficos de lugares que freqüento no meu dia-a-dia”.
A pintura que se desfaz em suas fotos e a perfuração das Santas Bárbaras, para subtração da matéria, configuram atos de violação, de iconoclastia; o mesmo ocorre com o site Corpus Christi – de sentido ambíguo – no qual a imagem se desintegra onde quer que o usuário passe o cursor.
Todas essas ações de Caetano estruturam um processo de criação que constrói e instrumentaliza a perda de sentido. A criação de uma relação sensório/lúdica, que se estabelece como um jogo e promove interação, contém a percepção visual em sua gênese e propõe um confronto com a realidade. Afinal, as imagens escolhidas são partes significantes de um determinado contexto geográfico ou histórico. Por meio de ações que alteram o conteúdo “sígnico”, simbólico e formal, Dias promove “ressemantizações” que abrangem do espiritual ao estético, a despeito da tecnologização da cultura e da virtualização do uso do corpo no mundo globalizado.
As ações “iconoclastas” criadas por Dias parecem beirar a abjeção, mas as aparências enganam. Os títulos das obras evidenciam seu constante ir-e-vir entre a construção e a desconstrução. Criam antagonismo para desestabilizar um sistema dado a priori. Talvez Caetano não acredite exatamente em uma aproximação com o sacro. A tentativa de redução da carga simbólica sacro/religiosa coloca a imagem em um plano mais humano, aproximando profano e sacro. Nessa intersecção, transparece a tentativa de reduzir a culpa, situada entre o desejo e a proibição. O artista subtrai para neutralizar uma pulsão de morte. Na era cristã, a alusão à negação do corpo revela um desejo de reafirmá-lo. É uma forma de promover uma espécie de utopia do corpo pela não-negação.
A afirmação do corpo passa a ser a proposta de um outro modelo de gestão social, uma vez que ele é o espelho da nossa sociedade. A religiosidade, nesse caso, é aludida, mas não acontece de fato. A elevação do profano ao sacro é simulada, uma quase-sacralização, já que a imagem sempre se desmaterializa: nas santas, nas fotos desfocadas ou no site Corpus Christi.
O site é quase um anti-site, pois não permite o acesso a algumas imagens. Concebido a partir do princípio do mito de Midas – no qual tudo o que era tocado por ele virava ouro –, cada vez que o cursor passa pelas imagens, que representam a Paixão de Cristo, elas se desfazem. Se, em Midas, o ouro pode ser associado à morte, a imagem desfeita pelo cursor também pode associar-se à metáfora da morte, causada pela culpa do desejo.
De um lado, esse campo de abjeção em sua obra pode nos levar à idéia de uma ação predatória, uma vez que “saquear” imagens da internet evidencia o caráter voyeurístico da ação. Mas, de outro lado, a ação erótico-virtual de Caetano Dias ocorre segundo a perspectiva dos cidadãos do terceiro mundo globalizado – em direção oposta ao tipo de abjeção encontrada no universo duchampiano ou no de Cindy Sherman –, nos quais a apropriação e a ressignificação acontecem para desestabilizar os estatutos vigentes da arte e do mercado. O campo de ação de Dias é o universo da tradição e do dia-a-dia baianos no contexto do mundo global.
Com essas ações, Caetano indaga sobre a possibilidade de se simular o prazer absoluto, por meio da “erogeneização” da imagem na internet. Investiga também a idolatria do corpo morto e nu, assim como a culpa, simulada no catolicismo com a ingestão do corpo do Cristo. Ao ironizar a idéia de que a representação iconográfica de Cristo é feita “à imagem e semelhança de Deus”, acirra o conflito entre culpa e desejo por intermédio da apropriação.
A virada do milênio traz uma outra mudança na obra deste artista que passou, a partir de então, a buscar mais e mais a participação do espectador. De 2001 em diante, Caetano introduz o viés relacional em sua obra. E propõe um outro trabalho para tentar, mais uma vez, desestabilizar a noção de corpo na cultura cristã: o Re-ligar.
Migrando do universo da cultura judaico-cristã para o universo da cultura oriental, o artista observa que, no Kama Sutra, o sexo origina-se de uma cultura mais permissiva, na qual flui a alteridade nas relações. Re-ligar propõe uma nova forma de interação ou reconciliação com o corpo, daí o aspecto quase místico do vídeo Re-ligar. Nas fotos, aparecem pessoas comuns sendo “re-ligadas” ao cotidiano por meio de ventosas.
Como no site Paixão de Cristo, o trabalho só se torna real caso interaja com o público, propondo, assim, uma mudança nas relações entre as pessoas. Nas ventosas, destituídas de sacralidade e sem componentes eróticos, a ligação entre as pessoas é realizada a partir de um marco zero. Retiradas da milenar medicina chinesa, as ventosas têm a função de drenar, purificar e liberar o fluxo de energia entre os fluidos do corpo, daí a metáfora da fluência entre pessoas. Re-ligar revela novamente a idéia de resistência, no sentido de desmascarar relações de poder para “reestabelecer” uma nova ordem entre o corpo e o seu imaginário.
Esse espaço de relações humanas e de elaboração coletiva dos sentidos, que instaura diálogos em simultaneidade com os aspectos religiosos, míticos e com o das fabulações, cria o interstício que favorece e amplia certas zonas de comunicação e, ao mesmo tempo, problematiza a esfera social a que Dias se refere.
O embate antes presente entre o virtual e o real no site Corpus Christi é alçado ao plano da materialidade com a efetivação do corpo tridimensional para ser consumido a partir da metáfora da antropofagia presente na obra Cristo de rapadura – Cristo em tamanho natural feito a partir do molde do corpo de um homem negro, disponibilizado ao público para deglutição.
A representação do Cristo morto evoca o sublime já enunciado em Bataille, onde erotismo e morte se confundem. Aqui, o artista deixa vazar o tênue limite entre a erótica e o sacrifício, propagados pelo cristianismo.
Água benta geladinha, por sua vez, é uma instalação composta por geladeira de bar, copos descartáveis e água, que convida o público a beber um líquido “sacro”. A ingestão da água torna (supostamente) o público participante passível de uma espécie de “purificação” ou “batismo” coletivo e, mais uma vez, o artista coloca o espectador diante de um experimento jocoso e irônico.
Canto doce 01, 02 e 03 é uma série constituída de instalação (01), de seqüência fotográfica (02) a partir da construção de um muro de açúcar que interdita uma rua em Salvador, e (03) da construção de um pequeno labirinto, com a participação do público, na estação ferroviária da Calçada em Salvador. As três ações da série geraram um processo de construção e deglutição das obras, caracterizando a evanescência e o efêmero. Como contraponto à estética da desaparição, agora se apresentam sob a forma de registro em foto e vídeo.
Já em Doce amargo, a cópia de um corpo masculino simula um indigente. Dias criou uma escultura sólida, fundida em açúcar, para ser depositada em espaços públicos como terrenos baldios, matas, praças ou lugares de passagem. Cada vez que a peça é exposta, a ação do público que se depara com a mesma deve ser filmada, como registro das diversas reações que podem decorrer do contato com a obra.
Santa preta de duas cabeças – fala que te escuto 2006 é uma intervenção urbana constituída de uma imagem sacra de uso popular retirada de seu contexto – comércio de ícones religiosos – modificada e re-inserida em seu lugar de origem. A imagem anômala, quando presente num lugar que não é mais o seu, cria um incômodo entre os transeuntes. Na feira livre, os transeuntes trocam olhares, ansiosos por entender o ícone bicéfalo, um ruído na iconografia sacra. Caetano Dias chama a atenção para a dinâmica religiosa como processo cultural. De certa forma, a mutação imposta ao ícone é, também, uma alusão às alterações dos organismos vivos, uma transgenia sagrada que fala da manipulação da vida.
Em Respire (Eternit), o artista discute a permanência das fantasias do mundo infantil escondidas no inconsciente dos adultos. Nesta videoprojeção, uma pessoa dorme dentro de um tanque Eternit cheio de água. O áudio reforça a idéia da água enchendo o tanque e sendo movimentada pelo personagem. Os temas recorrentes de subordinação do consciente às imperativas fantasias infantis e o afloramento de símbolos e imagens inconscientes são tratados aqui de forma mais contundente. O não poder acordar ou a sujeição a um estado de encantamento do qual não se pode sair torna-se agônico.
O sótão escuro onde se guardam os medos e os desejos, coisas velhas, sem uso, coisas do passado são cenários desse sonho. O vídeo fala do resgate da infância, onde o medo, a curiosidade e a fantasia acordam o encantamento. Esta obra também depende de interação com o público, que aciona um dispositivo que pode impedir ou facilitar a respiração do personagem.
Mar de dentro apresenta uma série de objetos escultóricos construídos com os mesmos materiais das favelas. Estes objetos não chegam a ser casas ou abrigos por sua condição de impenetrabilidade. São projéteis, são bólidos irregulares para rolarem sem rumo, realizados para serem acionados por moradores de uma favela de Salvador. São não-esculturas, sem lugar e sem rumo, que rolam morro abaixo a partir da ação coletiva.
Os atos criados por Dias não podem ser dimensionados a partir de uma unidade de medida. Sim, pois os seus atos relacionais visam apenas a criação de intersubjetividades, de espaços fluidos e móveis no interior do sujeito, e por vários instantes eles beiram a iconoclastia.
No ato de compartilhamento proposto nestas obras, o artista comissiona o diálogo, põe em prática a relação entre sujeitos e altera as formas de recepção da arte, essência da sua prática artística. A expansão do fim primeiro da obra e seu suposto destino (a instituição, a galeria, o mercado, a coleção privada) é constantemente realizada por Dias, o qual, em última instância e por vias indiretas, também coloca em xeque o valor de troca promovido pela obra. A troca aqui é feita de transitividades abstratas, que transcendem a noção de estilo, temática ou iconográfica.
A esfera das perspectivas inter-humanas que pretendem re-ligar indivíduos e criar espaços de comunicação entre eles, escapa ao imediatismo pragmático da lógica do consumo. O artista constrói agenciamentos, relações possíveis entre unidades distintas, alianças entre diferentes parceiros; ainda nos vídeos Uma e O mundo de Janiele – uma das mais delicadas obras produzidas pela arte contemporânea atual –, o que o artista busca são situações sociais mais justas, modos de vida mais densos na construção de espaços complexos de subjetivação.
Entende-se com facilidade, então, que a fotografia, o filme e o vídeo sejam os meios predominantes. São mídias que se prestam perfeitamente à formalização das suas ações, intervenções e experiências sensoriais, onde a idéia de transformação é um veículo que favorece a alteridade, porque o que Dias visa é um tipo de comunicação expandida que alcança o coletivo no interior do seu cotidiano. Os deslocamentos que promove são, sim, de ordem conceitual, no interior da linguagem, e não desprezam o conteúdo estético da obra.
Se os seus experimentos se insurgem contra uma situação de consumo e de massificação, nem assim eles se apresentam em detrimento do objeto artístico. Eles tomam a linguagem como parte integrante da proposta, têm forte carga semiótica e são veículos que conduzem ao “outro”. Para Caetano Dias inexiste a cisão entre objeto e ação, um é parte integrante do outro. Assim, enquanto a experiência sensória vem da intervenção, a fruição estética propriamente dita vem da obra materializada.
Vídeos, filmes e fotos, como a série Coleção de cabeças, por exemplo, traduzem a materialização do efêmero. A série, apresentada sob a forma de fotoinstalação, foi confeccionada a partir de esculturas em açúcar. O espaço-tempo em que estas obras são produzidas, em sua versão fotográfica, então, muda. Muda a nossa noção de realidade, o nosso senso dialético. Os registros das suas ações, estendidos à Coleção de cabeças, quando chegam a nós, são a única fenda para o vislumbre de uma “duração” que dialetiza com a estética do desmanche e da desaparição enunciada durante as intervenções. Quando olhamos para as fotos das cabeças, por acaso nos lembramos das suas vidas anteriores enquanto esculturas? Neste sentido transparece o contraponto a uma estética de desmanche, de apagamento, onde a discussão do efêmero tangencia a idéia de morte e desaparecimento como presença.
Pelas vias do registro foto/vídeo/filme, é como se Dias enfrentasse a morte, a tradição barroca e sua carga religiosa. É uma espécie de militância do desejo explicitamente oposta a qualquer noção de tradição, sem, contudo, afirmar a ruptura. É aí que o artista desdobra seus corpos em metacorpos e formula a enunciação de um corpo erótico e de um corpo social. É, também, uma forma de sobrevivência em condição fronteiriça, sempre em suspensão. No fio da navalha, Dias resiste e promove o enfrentamento do desafio da vida, na seara da visceralidade, dos grupos malditos, das minorias sociais e raciais, dos desvios.
Associação Cultural Videobrasil. "ff>>dossier 041 Caetano Dias". Disponível em: