Vinte e seis vídeos, cobrindo um período que vai dos anos 70 até os 90, compõem o programa de single channel dedicado ao artista americano Gary Hill. A seleção inclui obras como Elements, de 1978, a primeira experiência do autor com sua própria fala: nele, ouvem-se fragmentos quase irreconhecíveis em que Hill nomeia as quatro estações. Tal momento é particularmente significativo: afinal, em seus trabalhos, a fala é uma forma de provocar a experiência do tempo. São vozes que geram imagens e, dessa forma, dão uma idéia do tempo.

O texto e a voz – o corpo, portanto, é usado como instrumento acústico – surgem ainda em obras como Videograms, de 1980-81, em que formas eletrônicas são esculpidas na tela. Abstratos, os videogramas mantêm uma relação literal ou conceitual com o texto que está sendo lido pelo artista. "O vocabulário e a precisão desse instrumento (o Rutt/Etra Scan Processor) permitiu que se expandisse a noção de 'lingüística eletrônica' através de blocos narrativos textuais criados especialmente para o vocabulário eletrônico inerente ao Rutt/Etra", escreve Hill.

Poeta da imagem, criador de pontes entre vídeo, filosofia e linguagem, Hill é representado também por obras como a impactante Site Recite, descrita pelo autor como uma espécie de "cosmologia da morte": ossos, textos, caveiras, conchas, asas de borboleta, tudo disposto sobre uma mesa para a qual olha a câmera. Criada como precursora de um videodisc, ela reúne uma "pilha de pequenas mortes", falando assim sobre assuntos recorrentes em sua carreira: memória, consciência, vida e morte.

Artistas

Obras

Ensaio Lynne Cooke, 2001

Pós-Escrito: Re-Incorporações no Espaço da Alteridade [No Outro-Espaço | Do Espaço de Fora]

“Antropólogos dos Eus possíveis, somos técnicos de futuros realizáveis” - Donna Haraway

“As imagens são a moeda corrente dominante da comunicação”, diz Margot Lovejoy em seu livro sobre a mídia eletrônica e a cultura pós-moderna. Isso resultou em uma crise do conhecimento de que é de fato uma crise de visão. “Podemos apenas ver o mundo formando uma imagem através de várias mediações especializadas.”[1] A falta de uma visão adequada para a atmosfera informacional [infosfera ou datasfera] levou, diz Scott Bukatman, “a uma tentativa de reconstruir o espaço do computador em termos humanos – biológicos ou físicos; em outras palavras, permitir ao espaço terminal tornar-se um espaço fenomenal”. [2] Dentre essas tentativas, o trabalho do artista é seminal, ele acredita, citando J.G. Ballard e sua crença de que a função do escritor de ficção científica é paralela às redefinições ontológicas da era eletrônica: “Eu sinto que esse equilíbrio entre ficção e realidade mudou significativamente na década passada. Progressivamente os papéis inverteram-se. Vivemos em um mundo governado por ficções de todo o tipo [...] Para o escritor em particular, é menos e menos necessário inventar o conteúdo ficcional de seu romance. A ficção já está lá. O papel do escritor é inventar a realidade”. [3]

Enquanto se admite a realidade do mundo objetivo, Maurice Merleau-Ponty mesmo assim sublinha que a interatividade que ocorre entre o perceptível objeto físico e o sujeito perceptor móvel que instancializa [a faz instância]. A fenomenologia assim propõe que a condição de ser não é uma condição absoluta, mas sim que muda relativamente às experiências do real. Não importa se as “presenças” eletrônicas existam ou não em espaços reais, a experiência destes espaços permanece uma experiência real. Assim, o exame dos processos cognitivos pode ser considerado prioritário sobre considerações acerca da veracidade de qualquer condição externa. Ao focar sobre a atividade da consciência guiada mais do que sobre uma realidade absoluta “em si”, pode ser possível construir uma fenomenologia destes espaço, abstratos e não físicos, peculiar às tecnologias eletrônicas. Assim, definições dos dois modos de comunicação e as formas de interação social são passíveis de ser construídas. 

Em “Suspesion of Disbelief (for Marine)”, quando Gary Hill omite a palavra “voluntária” (que normalmente acompanha esta frase) do título de uma de suas instalações, ele sugere que a aquiescência consciente não é necessária: se ficcional ou não, o que é apresentado como real é automaticamente, inevitavelmente, tomado como real. O que é uma meta para Ballard, para Hill, devido à sua mídia, é virtualmente pré-ordenado. Pois, ao contrário da literatura corrente, as tecnologias reprodutivas estão entre as principais condicionadoras de valores contemporâneos: suas representações não apenas registram a realidade objetiva, mas moldam-na a ponto de elas serem experimentadas como mais potentes que aquelas providas pelo mundo cotidiano fenomenal. Como argumenta Flusser, “A imaginação funcionando em imagens técnicas é tão poderosa que nós não apenas as tomamos por realidade, mas também vivemos dentro de suas funções”. [4] 

Imagens de dois corpos, o dominante feminino, o outro masculino, movem-se através das telas de uns trinta monitores que, tiradas de suas carapaças e prendidas a uma barra de ferro, lado a lado, criam um contínuo potencialmente linear de espaço eletrônico. A câmara demorou-se amorosamente sobre esses nus: ela quase acaricia a pele, entregando o corpo ao olhar com uma imediatidade intensificada.  Raramente, porém, as formas deslizam em um fluxo contínuo: sua passagem é constantemente interrompida, cortada, repetida por meio de um mecanismo de troca [um dia, um seletor]. Complicando ainda mais a percepção do espectador, temos a velocidade dos “amantes”. Tão rápida é a sua passagem que se torna impossível focar claramente em um só frame, fixá-lo e assim apropriá-lo. Tentativas de fundir o par como um casal é igualmente problemático, pois a superposição, a edição e os cortes de suas anatomias individuais postulam uma conexão bem diferente da convencional, a de fundir duas entidades discretas em um só todo.

Os corpos nunca se fundem ou se juntam. A pele permanece uma barreira impermeável mesmo quando o corpo é fraturado, suas partes superpostas e intersecantes. O que parece galvanizar essas imagens em rápida sequência é, não obstante, sua proximidade, um desejo de suprimir a separação. Vivamente presente mas frustrantemente evanescente, essa montagem sedutora de formas cambiantes a um só tempo conjura noções de proximidade e simultaneamente a redefine. As acelerações, rés, diminuições, elipses e arrojos temporários dentro de um fluxo incessante conjuram um fluxo de desejo – a quintessência do erotismo. Se a sedução joga na superfície, e o pareamento permanece apenas tenuamente aproximado, isto, mesmo assim, não significa a fusão sempre adiada que caracteriza a frustração. Um torvelinho estonteante, voluptuoso e delicioso, “Suspension” oferece um paradigma sensual para uma transcendência extática da fisicalidade da sexualidade direta.

A intimidade que resulta da proximidade da câmera em relação aos corpos pareceria prometer um erotismo do tipo normalmente associado ao voyeurismo. O que poderiam ser desvelamentos privados na forma de olhares transgressores são, no entanto, apresentados como espetáculo pela apresentação abertamente exibicionista do trabalho. Longe de sorrateiramente revelar o clandestino, esta instalação tem a grandeza e o escopo de algo feito deliberadamente para ser visto. Ela oferece um espetáculo, no sentido que Guy Debord e outros o definiram: uma forma de realidade autocontida e substituta.

A elevação dos monitores a uma altura maior que a de uma pessoa, juntamente com uma extensa largura da barra, mantém o espectador no espaço de uma sala vazia, como uma caverna, proibindo qualquer proximidade física daquilo que se observa. As imagens levitam luminosamente na meia-luz, em uma escuridão que aumenta sua intangibilidade e efemeridade. Ao contrário de representações icônicas anteriores de amantes suspensos em um ambiente etéreo de um óptico atemporal, como se pode ver nas pinturas de Paolo e Francesca de G. F. Watts, entre outros, este duo (o espaço da kinesis) referem-se a um reino não-físico, aquele da tecnologia eletrônica; estes são espaços fantásmicos feitos possíveis por, e constituídos através, das tecnologias da comunicação. “Tempo e espaço metafóricos para que textos [e assuntos] se desdobrem são os parâmetros com os quis eu começo”, GH escreveu recentemente. “É um tipo de tempo telescópico, que faz com que o espectador esteja ciente do ato de ver – de contemplar o mundo através da visão que existe nas dobras do tempo”[5]. A percepção, e assim a apreensão, permanece enraizada no ser corporal, como argumentou Merleau-Ponty, mas aquilo que é percebido pertence agora a outra realidade. A visão está, a um só tempo, imbricada no mundo e descorporificada [disembodied], imersa mas também suspensa, impedida de apreender o que se examina. 

Em seu foco exclusivo sobre o corpo nu visto de perto, “Suspension of Disbelief” (1991-2) pode ser comparado a “Inasmuch As It Is Always Taking Place”, que Hill realizara dois anos antes. Composto de 16 monitores de vários tamanhos (0,5 a 21 polegadas), instalados como um relicário em um nicho de parede, este trabalho transmite diferentes partes do corpo humano em tamanho real em cada uma das telas. Ao esticar a pele sobre as telas como uma membrana firme, e ao mostrar dos membros apenas o espaço abstrato e escuro de seus interstícios,  Hill faz as formas vivamente presentes para o espectador. Justaposta a estes detalhes do torso, órgãos e membros, há uma imagem de um dedo sobre uma página murmúrio da voz quase apagada pelo farfalhar das páginas e por outros sons ambientes. [6] Este incessante mas quase inaudível discurso tem sua contrapartida visual no quase imperceptível movimento da anatomia. Esses leves movimentos podem ser lidos como evidência tanto de que o corpo vive como de que está sendo observado. O ato de interpretação visual pode ser entendido como isomorfo à leitura de um texto: tal como ler cria o texto, o olhar conjura significado. Em um de seus proféticos primeiros trabalhos, Hill perguntava-se: “O que sou eu senão uma figura de linguagem [modo de dizer]?”. [7]. Era uma pergunta retórica, pois muito do trabalho do artista naquela época era focado sobre a realidade como gerada pela linguagem. [8] Depois, no entanto, Hill afirmou em várias ocasiões que os produtos de sua codificação verbal podem não ser revelação, iluminação ou clarificação, mas sim seu oposto [reverso]. Como em “Why Do Things Always Get In a Muddle? (come on Petunia)”, “URA ARU (the backstage exists)”, “Incidence of Catastrophe"  , e, acima de tudo, em “DISTURBANCE (Among The Jars)”, a linguagem facilmente se desenrola, dissolve e implode em numerosos pronunciamentos contrários. Ao desintegrar-se o discurso, o balbuciar infantil e glossolalia vêm à tona, libertando o corpo das restrições do conceitual em direção ao abraço sensual do som gerado anatomicamente. Já que o discurso foi pulverizado em “Inasmuch” à condição do que Hill chama de “o entulho da emissão”, mais do que incorporar o espectador/audiência, isso agora serve para enfatizar a fissura na comunicação: o corpo embrulhado em seu próprio “murmúrio”. [9]

O vídeo já foi descrito como uma mídia de efeitos de superfície. A escala delimitada do monitor, junto à relativamente pobre resolução da imagem e o constante movimento das partículas de luz, tudo isso, diz Jean Fisher, contribui para que os espectadores não “entrem” na imagem como fazemos imaginativamente no espaço fílmico. [10] Além do mais, já que o foco profundo não se traduz bem na tela, pequena, o vídeo opera com um campo de foco bem raso. Assim, em vez de o espectador adentrar o espaço ilusório do mundo registrado, o movimento e a fluorescência dos fótons empurram a imagem adiante de modo que ela “invade” o ambiente do observador. Nos primeiros trabalhos de arte feitos em vídeo, priorizava-se a experiência do tempo, como tempo real normalmente substituindo o espaço real. Em seu trabalho mais recente, Hill aos poucos foi abrindo mão das formas e usos convencionais para explorar as espacio-temporalidades mais complexas. Em “Inasmuch” ele capitaliza com sucesso esses elementos. Pelo fato de a câmera manual [hand held] não alterar o foco ou a posição, e pelo fato de as gravações serem exibidas continuamente, o fluxo do tempo real parece desconectado das normas da temporalidade cotidiana, destroçadas em um eterno presente. Cada monitor é um lugar do corpo que aparece nas telas como um presente imutável e no entanto fora do tempo real. Sua solidão inexpugnável reduz o papel do espectador àquele de testemunha, no que Hill descreve como “o incessante, ainda que fragmentado, lugar anatômico. [11] A presença é trazida para trair uma ausência assombrada.

Os trabalhos mais recentes de Hill revelam uma crescente preocupação com o lugar, o espaço, o tempo, e, em particular, com os tipos de lugares habitados ou disponibilizados através de novas tecnologias eletrônicas. “Inasmuch” tem a proximidade de uma natureza-morta, mas o lugar não está disponível ao corpo como um agente totalmente encarnado [embodied]. Em “Between cinema and a Hard Place” (1991), e depois em “Suspension” e “Tall Ships” (1992), um jogo mais desenvolvido ligando espaços visualizados e reais ocorre quando Hill capitaliza a maleabilidade espácio-temporal do sinal eletrônico. Como em  “Suspension”,  “Tall Ships” não tem um componente verbal, e assim não dá a possibilidade de superação do estranhamento através da linguagem. Ao percorrer os quase 28 metros do corredor de “Tall Ships”, o espectador confronta-se com figuras de tamanho natural que se aproximam e se afastam aparentemente para interceptar a passagem do espectador. Mas a proximidade não assegura conexão. As dezesseis figuras de várias idades e sexos são vistas, primeiramente, como uma multiplicidade de pontos de fuga. Inicialmente pequenas, como que à distância, elas rapidamente se aproximam como que para realizar o mais simples dos encontros, uma confrontação cara a cara. Como em vários dos trabalhos anteriores de Hill, o relacionamento com os outros necessariamente envolve, e mesmo estão confinados por, formas de representação. Em determinado nível, tais relacionamentos podem ser descritos como projeções. Aqui, a interface entre a imagem e o real torna-se um lugar de interação potencial. [12]

Em “Inasmuch” a relação entre o Eu e o Outro é definida pelas fronteiras inexpugnáveis do físico e dos ilusório, que em seu trabalho residem na interface entre o corpo e a rela, pele e superfície eletr6onicoa. “Tall Ships” propõe ainda outras relações ao retirar o contínuo sem enquadramento do sinal de vídeo de sua prisão física convencional, o monitor. Se isso pode normalmente pôr em perigo a proximidade da imagem quando ela foi absorvida pela matriz linear contínua, o fato de que nesta instalação as projeções são única fonte de luz as embebe de um inesperado efeito de incorporação/encarnação [embodiment] em espaço real. Em contraste, “Between Cinema and a Hard Place” foca diretamente no tema da divisão – mais especificamente nas fronteiras no espaço – ao propor movimentos rápidos e imprevisíveis de um tipo de espaço outro, como as imagens movimentadas de monitor a monitor, “Intervém-se no uso que Heidegger fez da natureza como lugar metafórico de pensamento, com imagens de paisagens e cenas pastorais, sendo interrompidas por cercas, placas de trânsito e outras intervenções de limites espácio-temporais”, escrevia Hill recentemente sobre seu trabalho [13]. Dessa maneira, vários níveis de tempo – por vezes contraditórios – eram conjurados.

O texto e o pré-texto para sua crítica da “proximidade de vizinhança” são uma passagem do texto A Natureza da Linguagem, de Heidegger, que Hill adaptou em sua trilha sonora. A instalação é composta de 23 monitores de vários tamanhos arranjados irregularmente no chão. Ao ocupar fisicamente um espaço indeterminado, o trabalho oferece uma boa metáfora para um trecho que o artista descreve como “questionando uma visão estritamente paramétrica de espaço e  tempo, propondo a possibilidade de uma ‘proximidade de vizinhança’ que não dependa da relação espácio-temporal”. [14]

“Tall Ships” opera em tempo e espaço reais, mas com a ajuda de tecnologia complexa manifesta o Outro como uma inelutável mas inatingível imagem projetada em espaço que são extensões do mundo do observador. “Suspension” e “Between 1 & 0”, em contraste, postulam versões diferentes de temas imbricados em tecnologias eletrônicas, e portanto das relações – a “proximidade”- que elas permitem. Pois é comum a “Suspension” e a “Betwenn 1 & 0”, uma forma da alternância de computadores que faz os corpos representados radicalmente diferentes de tudo o que Hill fizera anteriormente. Desprezando a identificação baseada em conhecimento corpóreo-cinético, Hill fizera anteriormente. Desprezando a identificação baseada em conhecimento corpóreo-cinético, Hill apresenta um relacionamento entre Eu o Outro que é baseado em exterioridade. Em seus trabalho mais antigo este Eu é apresentado encarcerado em solidão impenetrável que, para ele assim como para Blanchot, reside no coração da consciência que começa a ser reexaminada ao verificar-se a inserção do corpo em vários espaços não-cartesianos, facilitados pelas novas tecnologias. Impedido de inscrever-se na nova geografia espácio-temporal que Hill cria (ao contrário de muitos outros que trabalham o espaço com o espaço virtual que simula o espaço real), o espectador é trazido a uma proximidade não familiar e incerta com o conteúdo. Revezando a imagem entre monitores em uma sucessão rápida, mas não necessariamente linear, o mecanismo de mudança [seletor] cria um modo de temporalidade que pouco tem a ver com o tempo real, isto é, como tempo vivido (ou gravado, mas exibido continuamente). Da mesma maneira, os espaços abertos nesses trabalhos, se e quando contínuos, não possuem as coordenadas do espaço cartesiano. Dessa maneira, a fragmentação de Hill e a multiplicação das imagens corpóreas em espaços fantásmicos pode ser lida como conformando-se a noções correntes de identidade social na era tecnológica. Ao adaptar tais estratégias de visualização, esses trabalhos abrem zonas “espácio-temporais” de sociabilidade eletrônica.

Em seu artigo “A cena da tela: em direção a uma fenomenologia da presença cinemática e eletrônica”, Vivan Sobchack oferece uma valiosa discussão da ontologia desse tipo de espaço. [15] Ao explorar as distinções fenomenológicas que separam as “presenças” cinematográficas, cinemáticas e fotográficas, ela argumenta que o espaço eletrônico é o único que é a discreto, a-histórico e incorpóreo [disembodied]. Em sua imutabilidade, nota Merleau-Ponty, o espaço eletrônico “mantém aberto as instâncias que o fluxo do tempo fecha; ele destrói a ultrapassagem, a superimposição, a ‘metamorphosis’ [...] do tempo”. [16] O cinema encena uma experiência da realidade espacial, corpórea. Muito diferente é a tecnologia digital, que “atomiza e esquematiza abstratamente a qualidade analógica do fotográfico e do cinemático em pixels e bits discretos que são transmitidos serialmente, cada bit descontínuo, não-contíguo e absoluto – cada bit um ‘ser-em-si’ mesmo sendo parte do sistema”. [17] Em “Suspension”, a escala da banda eletrônica é aquela da tela de cinema. Através do alinhamento das telas juntas umas das outras, um sendo quase fílmico de conexão espaço-tempo é hipoteticamente estabelecido. Além do mais, em pelo menos um momento do ciclo, uma única cena move-se continuamente de monitor a monitor, criando um espaço análogo à sucessão de frames da fita de cinema. Mas essas alusões se servem apenas para tornar aparente a distinção das matrizes espácio-temporais da tecnologia eletrônica. 

Em “Between 1 & 0”, treze monitores são agrupados em uma parede em uma configuração de sinal “mais”. O espectador confronta-se com o sujeito [conteúdo] que está preso no que parece ser um processo interminável de escrever-se – literal e figurativamente escrevendo em si mesmo.  Literalmente no sentido de empregar códigos que são integrais a esse sistema e, metaforicamente, de várias maneiras. Ainda que não seja fácil identificar a trilha sonora (o som do grafite arranhando um pedaço de papel), trata-se obviamente de algo arranhando uma superfície, gravando sua existência em uma superfície. E o movimento de vaivém dos frames na cruz formada na parede pode ser comparado ao processo de começar um esboço: a caneta paira, balançando sobre o solo, procurando o ponto apropriado onde começar o processo de definição.

“O espaço eletrônico”, escreve Sobchack, “contrai equivalentes objetivos e superficiais da profundidade, textura e movimentos corpóreos investidos [...] Ação constante substitui a gravidade que orienta o movimento de corpo vivido com um senso de liberdade corpórea (e um senso de liberdade do corpo) espetacular, cinematicamente excitante, às vezes estonteante”. [18] Sem centro ou solo, esses espaços fantásmicos têm no máximo um único vetor gráfico de simulação de perspectiva para guiar o olho humano que se tornou distinto de sua corporalidade, sua espacialidade, sua subjetividade. Em “Between 1 & 0”, como em “Suspension”, Hill constrói um espaço descorporificado [disembodied] no lugar de um espaço cartesiano: imagens “maquinais” giram através de um campo esvaziado de métrica espácio-temporal em uma exibição vertiginosa de sua falta de profundidade.

Nenhum relacionamento conectando o espectador e a projeção do tipo inicialmente proposto por “Tall Ships” é possível em “Between 1 & 0”, mas também não é possível o divórcio do espectador, inerente ao espetáculo do encontrado em “Suspension”. De fato, esta não é uma instalação propriamente dita: o trabalho é mais bem visto como uma transmissão pura e simples.  Fenomenologicamente, o eletrônico é experimentado como transmissão discreta e simultânea, argumenta Sobchack, pois “a materialidade do eletrônico digitaliza duração e situação, fazendo da narração da história e de um investimento centrado (e central) no corpo vivido coisas atomizadas e dispersas no sistema que constitui temporalidade, não como um fluxo de experiência contínua, mas sim como transmissão aleatória de informação”. O valor primário da temporalidade eletrônica é assim o instante, e ela conclui: “A temporalidade torna-se paradoxalmente constituída como uma experiência homogênea da descontinuidade em que as distinções temporais entre a experiência objetiva e subjetiva.. desaparecem, e o tempo parece voltar-se sobre si mesmo em uma estrutura de equivalência e reversibilidade”. Igualmente, a natureza do espaço é redefinida, descorporificada: “Sem a ênfase temporal da consciência histórica e de história pessoal, o espaço torna-se abstrato, sem chão, e plano – um lugar de jogo e exposição mais do que uma situação investida onde a ação ‘conta’”. [19] Em “Between 1 & 0”, como é apropriado na relação com o signo, ou matriz, o relacionamento físico inerente na fenomenologia da percepção foi abstraído e, temporariamente desestabilizado. Como em “Suspension”, o ver permanece como uma experiência altamente participatória, pois o espectador rastreia essa configuração tentando em vão comprimir os estilhaços de informação em informação.

Em “Inasmuch” Hill descorporificou o Eu, em “CRUX” (1983-87) o decentralizou, e, em “Between 1 & 0”, poder-se-ia dizer que ele o desmantelou. Vemos tão rapidamente fragmentos microscópicos do corpo percorrerem de um lado ao outro, de baixo para cima nas superfícies dos monitores, que é difícil identifica-los – com a notável exceção dos dentes, cuja presença intermitente e recorrente revela a circularidade do programa, sem começo ou fim aparentes, origem ou conclusão. Dado o título e o jogo entre ausência e presença nas telas, muitas das quais recém apenas um único frame de 1/30 de segundo, esse conteúdo poderia ter sido escrito literalmente na codificação das tecnologias eletrônicas. Mas, por estar nos espaços “entre”, os fragmentos recusam uma identidade unitária. “O estar por entre as coisas não designa uma relação localizável indo de uma coisa para outra direção, um rio sem começo ou fim que desmorona seus barrancos e colhe a semente no meio”, escreve Gilles Deleuze e Felix Guattari no capítulo de “Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia”, devotado ao “Corpos Sem Órgãos” [BwO]. [20] Sua discussão tem grande pertinência para a peça de Hill, cujo conteúdo também está sempre no processo de vir-a-ser, limite nunca alcançado, sem um ponto de origem e sem fundamentos. Em vez disso, “ela procede do meio, através do meio, indo e vindo mais do que começando e acabando”. [21] Estabelecer a “lógica do E” para derrubar a ontologia, então, “não é uma noção ou conceito, mas uma prática, um conjunto de práticas”. Eles argumentam: “Os modos são tudo aquilo que passa: ondas e vibrações, migrações,  portais e degradês, intensidades produzidas em um tipo de substância começada a partir de uma matriz” [22]. Para ilustrar isso melhor, eles citam uma passagem de “Naked Lunch” de William Burroughs, que coincidentemente faz um paralelo às imagens de Hill: “Nenhum órgão é constante em relação a uma posição ou função [...] órgãos sexuais brotam em todo lugar [...] o organismo inteiro muda de cor e consistência num piscar de olhos “. [23] Mas, igualmente, eles argumentam que “não existem órgãos no sentido de fragmentos em relação a uma unidade perdida. Há uma distribuição de princípios intensivos de órgãos, com seus artigos positivos indefiníveis, dentro de uma coletividade ou multiplicidade, dentro de uma montagem, de acordo com as conexões maquinais operando em um BwO”. [24] Assim, no BwO “fluxos de intensidade, seus fluídos, seus filtros, seus contínuos de efeitos” substituem o mundo do sujeito unitário e centrado. [25] O corpo tem sido tradicionalmente construído de várias maneiras: como Eu, como objeto histórico, como substrato orgânico. É nos termos desta terceira construção que ele tem sido examinado em teoria recente – reveladoramente, teoria que o situa em relação à tecnologia. Mas avaliações de valor, implicações e consequências das novas mídias eletrônicas são ainda disputadas. Apesar de todas as suas diferenças, dois dos mais influentes teoristas deste discurso, Baudrillard e Donna Haraway, unem-se em seu reconhecimento dos parâmetros determinantes e envolventes de uma existência que forçou uma crise nas definições insustentáveis de ser humano, fazendo com que a tecnologia e o homem não sejam mais dicotomizados. Através da interface entre a tecnologia e o sujeito humano, novos modos de ser tecnológicos estão surgindo, ao lado de re-concepções como aquela em que o humano e os tecnológico estão em coexistência, co-dependentes, e mutuamente definidores. Podemos dizer que em “Between 1 & 0” o corpo/sujeito/Eu de Hill torna-se um ciborg. [26]

Em seu artigo “Sistemas Virtuais”, Allucquère Roseanne Stone mapeia os efeitos transformadores das novas tecnologias no caráter e no lugar das arenas sociais das sociedades industrializadas ocidentais. Em termos de caráter, ela argumenta “a mudança da interação individual ou de grupo, que implicava  presença física, em direção a uma comunicação descentralizada e fragmentada, cujas natureza e qualidade assumiram novas e rapidamente cambiantes. Em temos de lugar, significou uma mudança de um espaço físico para um cujas coordenadas geográficas resistem a modos de representação tradicionais” .[27] “o tipo e a qualidade de interações humanas criados por estas mudanças – interações de um tipo irreconhecível do ponto de vista das ágoras localizadas geograficamente – tem sido descritas e exploradas de muitas maneiras”. [28] Quando manifestados como sistemas de computadores, eles oferecem possibilidades de uma nova sociabilidade que tem ido apropriada por um largo espectro de interesses, que vão desde o militar a instituições de psicologia e educação e aos negócios. Entre as explorações notáveis no reino da ficção estão os inventores de jogos de computador, escritores de ficção científica e artistas visuais trabalhando com multimídia.

Só eles habitam ou não sistemas “reais” ou “ficcionais”, os habitantes desses espaços tecno-sociais são novos tipos de ser para quem a interação pode ser não apenas nova, mas transformadora. Pois, Stone, argumenta, cada uma dessas trocas contém “o potencial de comportamento emergente, pois novas formas sociais surgem dentro de circunstâncias em que ‘corpo’, ‘encontro’, ‘lugar’, e mesmo ‘espaço’ significam coisas bem diferentes do nosso normal”. [29] Estes binômios – 1/0, mais/menos etc. – que reescrevem o corpo em códigos computacionais, simultaneamente o redefinem, oferecendo alternativas potentes ao indivíduo atado como unidade padrão e ator social validado. Pois o sujeito em sistemas virtuais pode descolar-se do corpo vivente, constituído apenas por tecnologias de comunicação. A história de tais tecnologias é portanto uma das tensões entre Eus e os corpos, constantemente alargadas pelas separações, fusões e interações. Uma vez que o corpo pode ser manifestado através de próteses tecnológicas, a agência nesses espaços torna-se aproximada. Isso, por sua, vez,  implica que “quando as próteses se tornam mais complexas, a relação entre agência e corpo autorizante torna-se mais discursiva”. [30]

Para teoristas otimistas como Haraway e Stone, “sistemas virtuais e os mundos sociais que eles implicam são exemplos de adaptações vivazes e flexíveis que pessoas em busca de comunidade estão começando a explorar”. [31] Eles percebem o  escopo potencial de soluções inovadoras para restrições nas interações sociais, enquanto a visão de Hill dessas capacidades comunicativas parece hoje mais ambivalente. Sua versão da capacidade erótica, como em “Suspension”, pode ser lírica, assim como sua reconfiguração do sujeito em “Between 1 & 0” aparentemente oferece ao ciborg um modo “squizo” libertador (no sentido esboçado por Deleuze e Guattari), mas sua aceitação do simulado permanece qualificada. No coração de sua dúvida reside uma luta contínua com a questão de quais são exatamente as diferenças em nossos relacionamentos com o simulado e o real. Sua recusa de uma resposta prescritiva sugere que esses trabalhos recentes provavelmente serão prólogos de futuras reconstruções da estrutura da sociabilidade e mapeamento mais detalhados das geografias dos alhures.

Notas

1. Margot Lovejoy. Postmodern Culture Currents: Art and Artists in the Age Electronic Media (Ann Arbor; UMI Research Press, 1989); citado em Scott Bukatman, Terminal Identity: The Virtual Subject in Postmodern Science Fiction (Durham: Duke University Press, 1993), p. 109. Estou ainda em dívida com as teses de Bukatman, como as citações abaixo testemunham.

2. Ibid.

3. Esta afirmação feita em 1974 em um novo prefácio ao romance de Ballard de 1973, Crash, é citada em Bukatman, op. cit, pp. 116-7.

 4. Vilém Flusser, “The Status of Images”, em Metropolis (Berlim: Martin Gropius Bau/Nova York: Rizzoli, 1991), p. 53.

5. Gary Hill, “Interviewed Interview”, Gary Hill (Valência: IVAM Centre del Carme, 1993), p. 152.

6. A impressão que dá de estar flutuando sobre fronteiras da inteligibilidade nos faz lembrar da caracterização evocativa de Blanchot: “Nem discurso, quase nem um murmúrio, quase nem um tremor, menos que silêncio, menos que o abismo vazio; cheio de vazio, algo que não se pode silenciar, ocupando todo o espaço, o ininterrupto, o incessante, o tremor e o já murmúrio, não um murmúrio, mas um discurso, e não qualquer discurso, discurso distinto, discurso preciso ao meu alcance”. Celui qui ne m`accompagnait pas (Paris: Gallimard, 1953), pp. 22-3, citado em Foucault, Blanchot, “Maurice Blanchot. The Thought From Outside”, (Nova York: Zone, 1990), pp. 22-3.

7. “Primarily Speaking” (1981-83). Nesta fita, as imagens estavam ligadas ao discurso de tal maneira que cada sílaba pronunciada mudava a imagem. O ímpeto de explorar isso e os aspectos relativos à tecnologia nasceram da preocupação, surgida nos anos 70, de investigar as especificidades do meio, uma preocupação dividida com muitos pioneiros trabalhando no campo da eletrônica, em rápida transformação. No trabalho de vídeo de Hill, a partir do final da década de 70, som era o elemento-chave; no começo dos anos 80 ele tomou a forma de linguagem  texto, assim como discurso.

8. A noção de Heidegger de que “A linguagem é a morada do ser onde habita o homem”, tem sido central para muito do pensamento de Hill, ainda que tenha chegado a ele via Blanchot e, Ludwig Wittgenstein e outros autores mais do que diretamente através e textos do filosofo alemão. Para uma discussão mais extanesa veja Lynne cooke “Gary Hill: Beyond Babel”, Gary Hill (Valência: IVAM Centre del Carme, 1993), pp. 163-71. Que esta noção tenha continuado a ser importante  para o pensamento de Hill é evidente em duas peças que realizou recentemente: “Site Recife (a prologue)” (1989 e “I Believe It is an Image in Light of the Other”(1991-92). Em “Site Recife”, a alinguagem não apenas gera e dá forma a tudo, ela também ameaça consumir tudo. Na maior parte dessa fita a câmara se move de maneira circular em tracking, que evoca uma visão onisciente, ou um modelo de uma mente gerando um mundo. Nos segundos finais, no entanto, uma imagem de uma boca falando, gravada a partir de um ponto perto da base da língua, é de repente substituída por uma natureza-morta, deslocada, e portanto sem lugar, que até então havia sido o único objeto sob escrutínio. A afirmação de conclusão altamente carregada – “imaginando o cérebro mais perto do que os olhos”- dá peso à afirmação de Bellour de que “não há imagem visual que seja mais e mais apertadamente agarrada, mesmo na sua retirada mais radical e essencial, do que dentro de uma imagem audiovisual ou scriptovisual... que a envolve”(Raymond Bellour, “The Double Helix”, Passages de l`Image [Barcelona, Centre Cultural de la Fundación Caixa de Pensions, 1991], p. 72). Em “I Believe”, sete latas contendo monitores e lentes são suspensas sobre livros abertos jogados no chão de um lugar escuro. Imagens do corpo e de escrita são literalmente sobrepostas de modo que o texto se incorpora e a anatomia codifica-se na escrita impressa.

9.  Garry hill, “Inasmuch as It is Always Already Taking Place”, em OTHERWORDSANDIMAGES (Copenhague: Video Gallerie/NY Carlberg Glypotek, 1990), p. 27.

10. Jean Fisher, “V-I-D-E-O-Z-O-N-E”. Em Topographie II: Untergrung (Viena, 1991), p. 27.

11.  Garry Hill, OTHERWORDSANDIMAGES, p. 27.

12. Em contraste, “Site Recife (a prologue)”, era originalmente pensado como um vídeo interativo, isto [e, para prover um contexto em que os espectadores pudessem entrar e movimentar-se de acordo com seus próprios impulsos. Através de uma espécie de insistência fenomenológica, teria sido possível, Hill esperava, “fazer com que os participantes ficassem cientes de seu p[roprio processo de mediaçãoo”. Citado em Christine van Assche, “Interview with Garry Hill”, Galeries Magazine, dezembro 1990-janeiro 1991, p. 141.

13. Garry Hill, “Between Cinema and a Hard Place”, texto não publicado, 1991, não paginado.

14. Ibid.

15. Vivian Sobchack, “A Cena da Tela: em direçãoo a uma fenomenologia cinemática e da presençaa eletr6onica”, Post-Script, 10, 1990, pp. 50-9.

16. Maurice Merleau-Ponty, “Eye and Mind”, em The Primacy of Perception, James M. Edie (ed.) (Evaston: Northwestern University Press, 1964), p 186.

17. Sobchack, op. cit. P. 56.

18. Ibid, pp. 57-8.

19. Ibid. P 57.

20. Gilles Deleuze e Felix Guattari, A Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia (Minneapolis: University of Minneapolis Press. 1964), p. 25.

21. Ibid.

22. Ibid, p. 153.

23. Ibid.

24. Ibid, pp. 164-5.

25. Ibid, p. 162.

26. Em seu texto agora celebrado, “A Cyborg Manifesto: Science, Technology and Socialist-Feminism in the Late Twentieth-Century”, Haraway parte da premissa de que o ciborg (um termo que ela analisa extensamente) literaliza a inseparabilidade do homem e da máquina em uma simbiose de corpo e tecnologia, a partor da qual ela formular um potencial ut[opico deste estado místico do ser, em que ser[a possível evadir as dicotomias raciais, de gênero, de classe que residem no âmago da cultura ocidental. Donna Haraway, “A Cyborg Manifesto: Science, Technology and Socialist-Feminist in the Late Twentieth-Century, reimpresso em Simians, Cyborgs and Women: the Reinvention of the Nature (Nova York: Routledge, Chapman and Hasll, 1991), pp. 149-82.

27. Allucquère Roseanne Stone, “Virtual Systems”, em Incorporations, Jonathan Crary  Sanford Kwinter (eds) (Nova York: zone, 1992). P. 609.

28. Ibid.

29. Ibid, p 610.

30. Ibid, p. 616.

31. Ibid, p. 620.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "13º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 19 a 23 de setembro de 2001, p. 107 a 117, São Paulo, SP, 2001.

Entrevista Helio Hara, 2001

Entrevista com Gary Hill

Em anos recentes, a tecnologia tem estado em todo lugar. Você tem a sensação de que quanto mais ela progredir, mais liberdade haverá para alguns artistas?

Ser humano significa ser tecnológico, mas é necessário apropriar-se da tecnologia e não ser apropriado por ela. Na verdade, a imagem é que se tornou ubíqua, com a ajuda da tecnologia. E é a imagem que nos deve fazer ficar em guarda. O fluxo contínuo de imagens cambiantes produz uma fascinação inconsciente, e isso é perigoso quando não sofre mediação. A velocidade com que a tecnologia muda e as “possibilidades” que ela oferece aumentam exponencialmente no tempo. O que antes eram engenhocas curiosas hoje são aparelhos “essenciais”; o que antes eram efeitos especiais hoje são partes comuns da linguagem da imagem. Quando a tecnologia pára de trabalhar é que vemos o que a tecnologia é. De maneira similar, quando ficamos doentes ou resvalamos na morte sentimos a presença e a vulnerabilidade da vida. Eu me cerquei de máquinas de fazer arte e às vezes penso que é apenas para que eu as refute.

Você julga a interatividade tecnológica algo muito diferente da interatividade da experiência estética?

“Interativo” é outro termo superutilizado, como “instalação”. A melhor descrição que ouvi para diferenciar estas duas noções de interatividade são os termos "implícito" e "explícito". Implícito significa interagir com o mundo em geral (experiência estética ou não), e explícito significa que há algum tipo de interface tecnológica através da qual, ou com a qual, um participante confronta um trabalho. Não seria difícil acrescentar muitos subdivisões a elas. Esta última definição nos coloca no campo das máquinas. Ela envolve retroalimentação (feedback) e cibernética. Penso que para um trabalho de interação explícita obter sucesso, a interface e sua complexidade não podem ser sentidas conscientemente, mas sim ser “naturais” - confrontar-se com uma obra de interação explícita é tão simples quanto dirigir um carro. Muitas das primeiras obras de interação explícita tinham o problema de forçar o participante a adotar uma posição consciente cada vez que uma decisão precisava ser tomada. Por exemplo, “você está aqui; para onde você quer ir: A, B, C, ou D?”. Isso especialmente no caso dos CD-ROMs e de outros meios de “encruzilhada” [branching]. Processos intuitivos são impedidos ao sermos levados de volta à superfície - o "script" tecnológico, poderíamos dizer. As interfaces correntes são consideravelmente mais sofisticadas e intuitivas, mas, mesmo assim, permanecemos conscientes da interface. Há algo de quase fetichista, e isso porque em obras com poder a interatividade é muda.

Você começou trabalhando com escultura. Em que ponto você percebeu que o vídeo era um bom meio para lidar com a fisicalidade da linguagem?

Minha experiência inicial com o vídeo foi muito forte. Parecia que tinha a ver com meu sistema nervoso, com feedback, e com assistir a mim vendo a mim mesmo e “interagindo” com esta conversação. Eu estava dentro de um processo e ao mesmo tempo eu podia ver o processo de fora. Talvez seja algo comparável a uma primeira viagem de ácido, ou a um certo tipo de avanço na psicanálise, ou “ao momento” de algum esporte radical. Infelizmente, pelo menos em retrospecto, eu estava fascinado, ou deveria dizer mesmerizado, pela imagem eletrônica - sua arquitetura, como se podia processá-la e manipulá-la e assim por diante. Eu era um escravo do pixel. Foi só pelos meados dos anos 70 que comecei a falar e a usar meu corpo para interromper a fluxo constante de imagem - o sinal. Neste ponto as coisas ficaram muito mais interessantes para mim.

Nos anos 80, muitos artistas usavam o vídeo de maneira um tanto estática. Agora vemos o vídeo sendo usado pela indústria do cinema, na internet... Você acha que todas as mídias [todos os meios] estão ficando cada vez mais misturados?

Uma vez que se torna digital, abrem-se as comportas! A web chegou para ficar, e “intermídia”, um termo cunhado pelo poeta Dick Higgins décadas atrás, é tão natural à web que criará muitas possibilidades a mais do que as que já tem. A net art está passando por um processo semelhante àquele do vídeo em seus primeiros estágios. Eles estão ligadas à idéia de intermídia - para não falar nas implicações políticas em jogo, no acesso e em quem o controla, o dono da mídia [dos meios]. As possibilidades estéticas da net não são tão interessantes quanto os projetos de base mais conceitual. É importante perceber que o vídeo, net art etc. são ligados a fontes no passado - não se trata de nova tecnologia gerando, por conseqüência natural, novas formas de arte.

Até que ponto o significado é importante em obras como Remarks on Color, que será apresentada em São Paulo, já que consiste em leitura?

Remarks on Color é, sim, sobre significado; como podemos concordar sobre qual seja o significado quando, em última instância, não temos certeza do que a outra pessoa está dizendo precisamente. Nós dialogamos, falamos e escutamos porque buscamos o significado - queremos significado [sentido] em nossas vidas e nas coisas que nos cercam. Em Remarks on Color eu tentei externalizar esse processo fazendo uma criança ler algo que ela pouco entende, o que faz com que a inflexão e a pronúncia mudem um pouco. Algo como quando uma criança tem uma ilusão de óptica ou quando uma palavra tem duplo sentido: estes são casos em que fazemos a travessia e então vemos a outra palavra/sentido. Nesse tipo de espaço, o sentido não é fixo; está mais próximo de um processo em andamento, onde a natureza do sentido está se fazendo conhecida.

A filosofia desempenha papel importante em seu trabalho. Em Remarks on Color, por exemplo, há uma referência a Wittgenstein...

Eu realizei uma série de trabalhos que eram inspirados em textos específicos, mais do que em leituras completas de pensadores particulares. De todo modo, eu diria que tinha a ver com tratar esses textos quase como objetos físicos, nos quais a compreensão é trazida para o primeiro plano e experimentada como processo. Meu relacionamento com esses textos e como trabalhei com eles vem em parte dos metálogos (metalogues) de Gregory Bates e de sua descrição da estrutura que comportam. Ele fala sobre o conteúdo da conversação sendo refletido na estrutura da própria conversação - algo como forma e conteúdo, mas de um ângulo um pouco diferente. De fato, um dos primeiros trabalhos que realizei sobre texto de um escritor foi Why Do Things Get Into a Muddle? [Por que as coisas ficam confusas?], de Bateson's. Fiz uma espécie de metavídeo sobre o metálogo do mesmo título, com a adição do subtítulo (Come on Petunia) [Vamos lá, Petunia].

Quais são as mudanças em trabalhos como Remarks on Color quando são apresentados em inglês, alemão ou português, línguas de estruturas diferentes?

Bem, eu espero que o jeitão da obra seja o mesmo pelo menos no que toca às leituras. Claro que há mudanças de nuança, inflexão, transformação de pronúncia e de palavras, mas a maneira como o sentido vem e vai e como a audiência experimenta a compreensão reflexivamente deve ser bem similar. Por outro lado, os sets ou cenário das leituras são um tanto diferentes, particularmente na versão em português, que acontece no meio de folhagem. Além disso, as cores que o leitor veste são diferentes, e essa referência traz relações diferentes com o texto.

Existem áreas/questões especiais que você gostaria de tratar no futuro?

Eu ainda estou interessado no espaço ontológico onde ser, pensar e experimentar sejam ativos de uma maneira meio tímida e ao mesmo tempo experimentada em um nível muito visceral - onde o pensamento se torna quase palatável. Por outro lado, fico ainda fascinado com o problema diário de como uma imagem se segue à outra.

Como você vê a interseção entre o som e a imagem em seu trabalho?

Quando comecei a usar vídeo, eu estava realizando muito trabalho de som com minha escultura. Trabalhei com barras de ferro, que por acaso tinham ricas possibilidades sonoras. Isso me levou a usar gravadores, fitas em loops, feedback e, por fim, som gerado eletronicamente. Eu fiquei muito interessado na noção de ver o que se ouve e vice-versa - algo como a fita de Mobius, em que um lado não tem precedência sobre o outro [não há lado de dentro nem de fora]. Eu estendi essa idéia para o discurso. Em Around & About [Em volta e em torno] e em Primarily Speaking [Primariamente falando] as imagens são editadas para que os elementos silábicos da linguagem dêem a sensação de que linguagem tem espaço e tempo em oposição a ser objeto do sentido.

O tempo é uma questão crucial no ambiente de vídeo. Como tempo, memória e linguagem são articuladas em seu trabalho?

Esta é uma questão muito ampla, que cobre muito terreno. Eu tentarei responder ao espírito da coisa falando de um trabalho específico, Midnight Crossing, de 1997. Para começar, o próprio título vem de um momento que ocorre em códigos de tempo. Quando 23:59:59:29 muda para 00:00:00:00, podemos falar em “travessia da meia-noite”, que realmente se refere a uma espécie de não-tempo - ou talvez um momento breve para se pensar sobre o tempo. Na obra, há um texto falado construído de frases individuais que são ouvidas a intervalos irregulares, digamos de 15 a 90 segundos, com silêncios entre eles. Durante o tempo da vocalização, um número de luzes de alta intensidade instantaneamente ilumina uma tela e sua estrutura de apoio tipo andaime, obliterando qualquer imagem que lá estivesse. Ao esperar pela próxima imagem, que emerge do negro total, o espectador ainda vê o pós-imagem [after images] da tela e do andaime, que “se movem” e “se misturam” com a nova imagem, que lentamente se faz visível e que firma novamente a tela e a estrutura de apoio. O tempo da luz intervém na construção da narrativa através de imagens, ao mesmo tempo que sinaliza o próximo elo ou frase que o espectador continua a construir e a rememorar do texto falado. Mais e mais a questão se coloca: aquilo era a memória da imagem e/ou da linguagem deste espaço e tempo, ou era a memória coletiva dos espectadores?

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "13º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 19 a 23 de setembro de 2001, p. 101 a 106, São Paulo, SP, 2001.