Biografia comentada Eduardo de Jesus, 04/2006

A produção do baiano Daniel Lisboa (Salvador, 1980) se distingue pela vocação política e por uma compreensão particular do poder mobilizador da imagem. De um olhar melancólico, quase fatalista, diante da subserviência política - a chamada cordialidade brasileira, seu tema-chave -, o artista evolui para um uso do vídeo que, em vez de se alinhar às formas regulares de militância da esquerda, empresta, não sem ironia, a crueza das estratégias de difusão do terror contemporâneo. Com O Fim do Homem Cordial (2004), que concretiza de forma contundente a idéia de “Terrorismo Audiovisual”, conquista reconhecimento (como o Prêmio Novos Vetores, no 15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil) e causa incômodo: a obra é retirada da Mostra de Vídeo Jovens Realizadores Baianos, em Salvador, num escandaloso episódio de censura.

Precedida por experiências caseiras e videoclipes - aos 15 anos, Lisboa ganha sua primeira câmera -, a opção pela temática política vem do contato não só com a miséria das ruas de Salvador, mas com uma passividade que ao artista parece igualmente ostensiva. O documentário experimental U Olhu Du Povu (2002), sua primeira realização de peso, parte de uma manifestação pública na qual estudantes, militantes e populares pedem a cassação do senador Antonio Carlos Magalhães, então envolvido em fraude eleitoral no Senado, na capital baiana. Com a câmera na mão, Lisboa dá as costas aos manifestantes para registrar o olhar apático de uma multidão que assiste sem participar e sem compartilhar da rebeldia. 

Premiado pela expressão poética, o trabalho carrega o germe de algo que se tornará central nas obras e articulações de Lisboa: a idéia do homem cordial. Para chegar ao termo, o artista se serve livremente da definição oferecida para o brasileiro por Sergio Buarque de Hollanda no monumental Raízes do Brasil: um homem cordial, afável, generoso e hospitaleiro. Refutada por Hollanda, que afinal a considerou “ambígua”, a expressão renasce com o sentido adicional de subserviência política tanto em O Fim do Homem Cordial quanto no nome do Movimento Anticordial, coletivo de intervenção urbana que responde à proibição do filme, e do conjunto de mandamentos do Manifesto Cinematográfico Anticordial, que prega um “cinema brusco, rápido, necessário”, financeiramente independente de editais governamentais e nascido do “contato entre a tecnologia digital e a falta de recursos”.

Até que a idéia por trás de O Fim do Homem Cordial se consolide, porém, Lisboa expande seu olhar em várias direções. Em Um Milhão de Pequenos Raios (2003), documentário musical sobre a guerra de pipas travada entre adultos e crianças na orla da capital baiana nos fins de semana, explora sua afinidade com a música eletrônica e com a coreografia das ruas de Salvador. No mesmo ano, exercita seu fascínio pela riqueza humana da cidade no Projeto Figuraça, portfólio de personagens soteropolitanos peculiares, como Seu Marinho, aposentado que se autoproclama guarda de trânsito, e Pimentinha, dono de bar que recebe os clientes com passes de candomblé. Ainda em 2003, registra a semana de manifestações que se seguem a um aumento da tarifa do ônibus urbano na cidade, no documentário R$ 1,50.

Os manifestantes que transformam a cidade em caos para protestar contra as tarifas de ônibus em R$ 1,50 e os cidadãos que vociferam contra a elitização do carnaval baiano em Projeto Figuraça estão longe de ser exemplos de cordialidade - tampouco prenunciam a virulência do ataque feito à figura de proa do coronelismo baiano por O Fim do Homem Cordial. Dirigida contra Antonio Carlos Magalhães e seus mecanismos de sustentação política, a primeira ficção de Lisboa põe em prática todos mandamentos do cinema anticordial: encena o seqüestro do senador e o pedido de resgate com crueza, e se constrói a partir de um “seqüestro audiovisual” - a apropriação e manipulação de imagens da TV Globo baiana. “Da mesma forma como, no sistema globalizado, o terrorismo ataca o império, no nosso contexto, o Terrorismo Audiovisual ataca o império audiovisual”, diz Lisboa. “Como eles, sabemos o poder da imagem.” 

Além de seus méritos óbvios - como o fato de usar a precariedade como linguagem, a favor do teor virulento da mensagem -, O Fim do Homem Cordial nasce de um achado: a idéia de confrontar um poderio político cuja longevidade deve muito ao controle dos meios de comunicação com a prática aqui inusitada, mas comum entre grupos terroristas palestinos, de usar a TV para enviar mensagens e divulgar ações. O poder da mistura pode ser medido pela reação que provocou: um episódio de censura bizarro - o vídeo foi retirado às pressas da Mostra de Vídeo Jovens Realizadores Baianos -, que resultou no afastamento de Sérgio Borges do cargo de diretor de Artes Visuais e Multimeios da Fundação Cultural da Bahia.

A O Fim do Homem Cordial, seguiram-se vários prêmios em festivais brasileiros, além de uma onda de ações do Movimento Anticordial, grupo de artistas que organizam atos em protesto à censura do filme, e para estimular o debate público sobre política, arte, comportamento, meio ambiente, urbanidade e comunicação. Divisor de águas, a obra trouxe Lisboa para uma trilha mais próxima da criação artística que do documentário militante. Freqüência Hanói, o vídeo que conclui em seguida, contrapõe as falas de um homem que está preso em uma penitenciária baiana, colhidas a partir de uma ligação feita por celular clandestino, a imagens randômicas de um céu que escurece, cruzado por fios de alta tensão e observado desde um carro em movimento. Da incursão radical à ficção, o artista parece ter voltado mais livre.