Entrevista 04/2007

A pesquisadora e documentarista Consuelo Lins, autora de um livro sobre Eduardo Coutinho – e também do ensaio sobre o trabalho de vocês no FF>>Dossier – diz que “cinema, para Coutinho, é interação com o mundo”. Isso parece se ajustar a vocês. Arte para vocês é interação com o mundo?

M: Em 2002, fizemos uma pequena antologia com dez trabalhos e escrevemos um texto, O Outro começa onde nossos sentidos se encontram com o mundo, em que tentamos falar sobre a alteridade que guia o nosso trabalho. A questão é: onde a alteridade começa? Eu diria que ela começa no abandono de si mesmo. Quando você abandona o próprio desejo, o próprio direcionamento, quando faz uma pausa para aspirar a algo que vem de fora. Como Oswald de Andrade, eu me interesso por aquilo que não é meu.

W: É o desejo de se completar. Para fazer sentido, preciso conectar com outros. Acredito que sou um fragmento, não sou uma identidade inteira. Ninguém existe como uma ilha, só existe conectado. Eu me faço nesse exercício permanente de me completar.

Noto que, em grande parte dos trabalhos, o outro é o estrangeiro, o imigrante, o refugiado, o que está deslocado de seu lugar. O outro almejado por vocês é sempre o que está distante?

W: Se busco muito perto, talvez caia em um comportamento estruturado a partir de minhas cegueiras. Mas o que seria próximo? Isso é outra pergunta, porque eu posso me sentir fora de lugar estando no meu lugar. Não é uma questão geográfica. São condições humanas: estar no seu lugar ou buscar um lugar.

M: O desejo é o que aponta para o outro. Ele é subjetivo e pode apontar para algo muito estranho a você. Por exemplo, o trabalho que estamos fazendo para a Documenta é um trabalho sobre esse desejo. É um trabalho sobre a fantasia européia sobre a cultura tropical. Hans Staden, que em 1557 escreveu os primeiros textos etnográficos e literários sobre o Brasil, é do subúrbio de Kassel. Ele escreve sobre os tupinambás e o canibalismo; ele conta a experiência dele e chama o livro de A história verdadeira. Esse pedaço de vida dele, fantasioso ou não, vivido ou não, é narrado dentro de outro contexto, que é a Europa em 1557. Por mais preciso que tenha sido seu relato, foi um relato. E o livro foi ilustrado por alguém que nunca veio ao Brasil e que se baseou nos relatos dele. Essas ilustrações do canibalismo viraram um arquétipo visual, que vai dominar durante trezentos anos o imaginário europeu sobre o trópico, vai impregnar toda leitura etnográfica sobre os trópicos e, naturalmente, determinar a história política tropical dentro do contexto universal.

O viajante sempre foi um narrador que preservou muito mais de si mesmo do que do outro? Através de um relato, vemos mais o narrador do que o fato narrado?

W: É importante hoje perceber que, quando olhamos, vemos não o que existe, mas o que estamos vendo. Quando escuto, ouço o que estou ouvindo e não o que está sendo falado. Essa é uma consciência que é relativamente nova, que vem através da psicanálise e outros métodos de análise. A coisa em si existe fora do instrumento do olhar. Essa fragilidade é bonita, é complexa e me interessa.

M: Começamos a nos dar conta de uma história paralela, que é a história da percepção das coisas. Essa é outra história, que vai ser totalmente impregnada, ou guiada, pelo problema da alteridade. Fazer uma coisa, é uma coisa. Agora, ser visto fazendo uma coisa, é outra coisa. E o outro vai contar uma história paralela à que você está contando. Em Hans Staden, você pode ver que existe toda uma idéia inteligente do que seja o trópico, mas que não é a história do trópico. Começamos a nos dar conta agora desse problema que existe na narrativa, seja ela etnográfica ou jornalística. Não dá para ter a inocência de pensar que um documentário conta uma verdade. O documentário faz uma narrativa. Nós trabalhamos com vídeo. O vídeo não é uma imagem que você cria, não é uma linha desenhada numa folha em branco. Quando ligamos a câmera, estamos trabalhando com uma imagem que existe, em princípio. Isso é fazer documentário? Temos que pensar o que define o documentário, porque, na sua base, a imagem nem é documental, nem é fictícia. Uma imagem é uma imagem. A literatura que você vai relacionar a ela é o que vai construir o sentido dessa imagem. Posso colocar diante da câmera uma realidade encenada ou a própria realidade. De toda forma, quando editar, vou estar representando aquilo que filmei, por mais real que seja. Então, as noções de documentário devem ser revistas, como estão sendo revistas as noções de registro.

O trabalho de vocês é justamente orientado no sentido de explorar esses instrumentos de percepção. Cada trabalho aguça novos sentidos. Mas também é possível entender o documentário não só como representação da realidade, mas como a criação de encontros e acontecimentos fílmicos, em que todos os envolvidos têm consciência de estarem vivendo uma situação inventada. Se o documentário contemporâneo prevê essa consciência do encontro entre realizador e realidade, vocês podem se reconhecer como documentaristas?

W: Eu ainda não. Queria definir uma escala mais larga ainda. Eu espero que o nosso trabalho permita um exercício de sentir que esse encontro com a realidade é um fluxo, em que a realidade está sendo construída permanentemente. Isso é quase um dispositivo performático para viver o momento. Meu desejo é continuar estimulando o encontro e o conflito com o material e não agir como Hans Staden, afirmando conhecer a verdade. Isso é enganoso.

M: Eu diria categoricamente que não me reconheço como documentarista. O que nos interessa na questão do documentário é justamente questionar a existência possível desse material tão limpo que a gente possa chamar de documentário. Você pode fazer arte com material real. A arte é ligada à questão da representação e da interpretação das coisas. Isso é o que diferencia a arte do jornalismo, que não tem essa preocupação. Talvez o documentário clássico também não tenha, mas, da produção de documentários, se desenvolveu uma arte. O apego pela prática estética gerou talvez um outro gênero, mas que é arte, não tem mais nada a ver com informação. Os filmes de Jean Rouch, por exemplo...

Não são documentários?

M: Podem ser, mas acho pouco. Aquilo é uma obra de arte perfeita, como uma obra de Picasso. No corpo da obra de um artista você tem alguns trabalhos que reúnem essas qualidades todas e apontam para o sublime. Você tem isso em pintura e tem no documentário. Você tem obras de Jean Rouch e de Eduardo Coutinho que são sublimes.

Então, há um problema de nomenclatura, e certos trabalhos não deveriam ser tratados como documentários?

M: Há um problema de nomenclatura. No texto O Outro começa onde nossos sentidos se encontram com o mundo, a gente pergunta o que é o outro. E então falamos nessa nossa necessidade de nomear as coisas. A gente tem uma necessidade de classificar e ordenar as coisas para poder funcionar em relação a elas.

A palavra documentário aprisiona?

M: Toda palavra restringe. A criação de uma palavra é uma decodificação de uma coisa, que nunca vai ter a complexidade dessa coisa. Esse é o problema do documentário. Ele tem a pretensão de traduzir uma coisa, mas jamais vai ter a complexidade dessa coisa.

Mas pensar o trabalho de vocês só como arte não é restringi-lo também? Seu trabalho não se abre a outros campos que não o artístico?

M: Como todo trabalho de arte. Acho que todo trabalho de arte abre também o campo da reflexão. Qualquer boa pintura faz isso.

Isso é sem dúvida uma conquista dos últimos trinta anos: falar em arte implica em falar de coisas que estão além da arte. Mas o documentário também não conquistou esse estado “expandido”?

M: Acho que o documentário já conquistou isso na execução e na forma. Há documentários que são maravilhosos. Mas não é a realidade que está te emocionando. É a narrativa. É a maneira como a história é contada que te emociona ou não.

W: Aqui temos um problema de testemunho e verdade. Existem problemas muito grandes sobre como falar das coisas do mundo. Do sofrimento, por exemplo. O documentário assume uma responsabilidade que ele não pode ter. Isso é uma armadilha da câmera, que produz essa ilusão de realidade.

M: Uma armadilha na qual a mídia foi a primeira a cair.

W: Sim, há uma expectativa em relação ao documentário a que ele é incapaz de corresponder.

Eu diria que muitos documentários não têm essa pretensão de dizer verdades sobre o mundo. A trajetória de Eduardo Coutinho – que é um dos nossos mais ativos documentaristas, passou pela televisão, etc. – é uma mostra disso. Veja O fim e o princípio, em que o filme é um percurso atrás de um assunto.

M: Essa para mim é a qualidade do documentário. O documentário jornalístico crê que é mais importante um conteúdo específico do que a maneira como ele vai ser contado. O verdadeiro documentário, enquanto arte, nunca vai cair nessa armadilha, pois sabe muito bem que é a narrativa que vai determinar tudo. Nesse sentido, quando você pergunta se nosso trabalho é documentário, eu continuo dizendo que não, porque existe um interesse grande com a narrativa, com o contar histórias. O artista tem três funções das quais ele nunca vai se livrar: a primeira é contar histórias. Depois, o artista também cumpre a função de entreter. A distância que existe entre as coisas e as idéias é quase insuportável e o artista trabalha nessa lacuna, aliviando, levando as pessoas a se divertir. O terceiro papel é o de fazer refletir, de abrir o corpo de reflexão do trabalho. No documentário puramente jornalístico, se é que isso possa de fato existir, essas três coisas se perdem de vista. Até mesmo o repórter de guerra, com toda sua proximidade ao fato, o que ele faz é um relato da guerra. Como diz Walter Benjamin, a cerâmica vai sempre guardar a mão, a caligrafia do escultor.

Quando entrevistei vocês pela primeira vez, Maurício me falou sobre o narrador benjaminiano. Em Devotionalia, as histórias são contadas durante sessões de modelagem. E a abertura do videodocumentário é um jogo de telefone sem fio, que traduz a forma como o conhecimento oral é transmitido, sempre incorporando as marcas do caminho. Devotionalia é uma homenagem a esse narrador benjaminiano?

M: Não, a gente conheceu Walter Benjamin depois de ter feito Devotionalia, a partir de observações críticas sobre o trabalho. Quase sempre fazemos as coisas de forma bem intuitiva. Foi só quando colocamos dez trabalhos juntos e que escrevemos O Outro começa... que sacamos que todo o trabalho era sobre o outro. E esse outro como complemento de nós mesmos. Uma coisa totalmente ligada ao desejo, porque fizemos trabalhos com grupos específicos – meninos de rua, michês, policiais, porteiros, seres humanos como nós –, que estavam dentro de rótulos de identidades que não são nossos. Mas, talvez pelo fato de não ser como eles, haja uma necessidade de refletir sobre eles.

Como vocês criam os dispositivos desses encontros, que são bastante diferentes em cada caso?

W: Para chegar a um patamar de conversa que interessa, a gente precisa de um dispositivo diferente para se aproximar. Sempre há essa troca entre os mundos interior e exterior. Para a gente é fundamental chegar nesse lugar, falando com o outro. Esses trabalhos com áudio, com toque, com cheiro foram métodos muito produtivos para criar um contexto completamente distinto de conversa, para criar outras palavras. Uma preocupação permanente na conversa com alguém é quebrar a coreografia cotidiana, porque estamos quase sempre nos auto-representando. As pessoas muitas vezes falam tudo o que aprenderam, mas não falam o que pensam. Eu gosto muito dos momentos em que a pessoa procura a palavra, encontra-a e daí fala.

No trabalho com o funk que vocês estão desenvolvendo, que formas encontraram para quebrar esses condicionamentos? Que dispositivos de relação criaram?

M: O trabalho não é sobre funk, mas sobre a percepção do exótico. Na verdade, o que constrói o exotismo pode ser tanto uma empatia quanto um medo ou uma certa antipatia. Tanto num caso como no outro, isso vai resultar numa dificuldade de leitura. A mitificação de alguma coisa dificulta o entendimento sobre essa coisa. A aproximação é o que vai nos trazer a noção de entendimento. Funcionamos dessa forma, precisamos pegar as coisas. Então, o universo visível do trabalho será o universo do funk, mas o roteiro é o capítulo 28 do livro do Hans Staden. Nesse capítulo, ele começa dizendo como as mulheres capturavam, decoravam, transavam e comiam os homens inimigos. De como, no ato de ingerir o inimigo, elas ampliavam o próprio poder. O roteiro é sobre tupinambás, o que, em princípio, não tem nada a ver com o funk. A gente está pegando esse roteiro de 1557, jogando nesse universo visual subversivo e fazendo o que os canibais faziam. Estamos encenando com eles aquelas ilustrações. O baile funk do morro é subversivo ao Estado, à cultura, ao comércio, assim como o canibalismo era considerado subversivo em 1557. Então, a decisão por aproximar essas duas coisas dá a forma e o conteúdo do trabalho. O trabalho não é sobre funk ou Hans Staden, mas sobre essa aproximação. Estamos trabalhando com um instrumento que chama ibirapema, que era usado pelas mulheres para dar o golpe fatal. A gente fez um ibirapema com três câmeras que gravam simultaneamente. Não sabemos que está sendo gravado, porque estamos participando daquela festa antropofágica.

Vocês estão subvertendo o Hans Staden. Ele não comeu a carne, mas vocês, quando se jogam na pista do funk, estão simbolicamente comendo a carne. Ou não?

M: Acho que sim. A idéia não é ser o Hans Staden, mas ele entra como um link de Kassel, porque esse trabalho é para a Documenta. Quando descobrimos que ele era de Kassel, dissemos, é ele. Tudo vai se juntar. O funk, que é uma realidade super local... a gente procura sempre realidades locais que traduzam questões que são universais. Porque nenhum trabalho é sobre o contexto. Voracidade máxima não é sobre prostituição. Ele é feito em colaboração com prostitutos, mas é um trabalho que investiga aproximações entre a subjetividade, entre o sexo e a economia. O único encontro possível, onde essas coisas vão se misturar, vai ser na cama. Não há nada que relaciona o cliente com aquele imigrante ilegal que virou um prostituto gay, mas num dado momento ele vai pagar para dormir com esse cara. Assim como existe esse encontro improvável na cama e na prostituição, existe na arte. Saímos para buscar naquilo que nos é muito estranho o entendimento daquilo que nos é muito próximo e essencial. Isso pode se dar onde você menos espera. Como agora: eu nem gosto muito de comer carne, mas acho superinteressante conhecer o universo de Hans Staden, que está me permitindo entender toda uma história da percepção sobre a vida e a cultura dos trópicos, segundo a mentalidade européia, que ainda norteia a nossa cultura. Tudo o que a gente vende ainda tem o rótulo de exótico.

W: A própria brasilidade é uma construção em cima desses mitos. O imaginário visual do funk, dos corpos, é alucinante. Você pega o jornal mais podre do Rio, O Povo, e pega as fotos que saem lá todos os dias, resultado do encontro do policial com esse mundo dos favelados. O que temos é algo próximo das ilustrações do livro de Hans Staden: braços cortados, corpos mutilados para serem devorados publicamente em cada esquina nas bancas de jornal. O povo compra carne humana e a devora visualmente. E como está sendo contada a história dessa aproximação? O próprio funk fala sobre isso, é uma tradução em forma de música e arte. O texto de Hans Staden é um relato, e às vezes a distância temporal entre as duas coisas é quase implodida.

Ao encenar o canibalismo numa pista de funk, vocês estão usando da dramaturgia para expressar alguma verdade?

M: Temos que substituir rapidamente a palavra verdade por precisão. Existe uma busca pela precisão, pela perfeição quase técnica naquilo que estamos fazendo. Não existe uma preocupação com a verdade, mas uma preocupação com o conceito, em transmitir um conceito com uma linguagem mais precisa possível. A gente começa um trabalho mais com questões do que com idéias. Nosso trabalho tem um caráter muito mais investigativo do que afirmativo. Ele sempre parte de algum interesse, de alguma curiosidade. Temos muito pouca coisa a afirmar. Mas temos realmente uma paixão pela precisão.

Sempre que podem vocês se incluem no trabalho?

M: É impossível não se incluir. Eu liguei o botão da câmera.

W: Sim, porque não fazemos um espetáculo para hipnotizar a audiência, o que o cinema muitas vezes faz: uma virtuosa aplicação de fórmulas pra satisfazer, te tirar do real e te eliminar como pessoa consciente. Nesse sentido, a gente é muito mais brechtiano, tentando manter uma resistência, que te faz sentir no espaço, mas também trabalhar com a sedução e ser entertainer. Brecht sempre foi um entertainer que manteve uma resistência antiilusionista, lembrando o espectador a todo tempo que ele está no teatro.

Vocês enxergam o trabalho de vocês na sala de cinema?

M: Nada do que fizemos até hoje daria para passar numa sala de cinema. Mas a gente trabalha no limite das artes visuais. Pra que alguém vai comprar o nosso trabalho? Ao mesmo tempo, a gente não faz o cinema que daria pra encher uma sala. Então, nosso trabalho tem questões que a gente não sabe responder.

Vocês não falam só com o público da arte, falam com muito mais gente, por isso também pergunto sobre a televisão.

W: Seria bacana. Acho que seria um desafio, mas a televisão também teria que se abrir. Teria que mudar tudo.

Talvez o acesso seja mais por infiltração, pelas brechas...

W: Concordo, vejo muito espaço abrindo na internet e na televisão. Toda essa área da circulação de imagens e de conteúdos vai mudar muito nos próximos cinco, dez anos. O monopólio da estética global, por exemplo, aqui no Rio, é sufocante. Mas estou muito otimista em relação a aberturas de espaços para se produzir.

M: Existe a brecha e existe a fenda. Na brecha você entra porque quer e na fenda você cai. Foi através de uma fenda que caímos nas artes plásticas. Foi como cair num buraco, porque nunca decidimos isso de fato. O Walter nunca teve nada a ver com isso e nós começamos a trabalhar juntos quando eu estava de saco cheio do sistema de artes plásticas. A gente se juntou a partir desse cansaço. E começamos a trabalhar justamente com essas metodologias e ações investigativas.

W: O meio em que nosso trabalho está sendo apresentado é o meio das artes visuais, onde fomos acolhidos, onde havia receptividade. No mundo do teatro isso não aconteceu, no mundo do cinema existe um estranhamento. Mas isso não me incomoda, porque se você fica muito acomodado em um lugar, você fica com segurança demais. Não me incomoda essa nossa dificuldade permanente de nos posicionar.

Vocês brigam para encontrar outros lugares que não a instituição?

M: Juksa é uma dessas tentativas de sair da fenda. Foi feito numa ilha do Pólo Norte, onde fomos encontrar três pessoas. A primeira apresentação do trabalho foi feita só para essas três pessoas, e levamos uma cantora de outro país para cantar uma ária durante a apresentação.

W: Há um elemento que não foi mencionado até agora e que é muito importante para a gente e que vários trabalhos percorrem, que é o uso de material de arquivos. Não no sentido da memória, mas também da produção do sentido contemporâneo. A memória é sempre uma construção, também.

Em Devotionalia, o texto de jornal funciona quase que como contraponto à dimensão pessoal do depoimento de cada um. Qual a função do arquivo nesse trabalho?

M: Nosso interesse em usar material de arquivo é exatamente criar um contraponto, porque o que nos interessa é a história subjetiva daquilo que estamos contando. Ou seja, inserir a subjetividade nos contextos em que ela foi perdida. A última coisa que uma pessoa de classe média pensa, ao se falar de policial, menino de rua, porteiro ou prostituto, é que essas pessoas tenham uma subjetividade. É aquilo a que a Suely Rolnik brilhantemente se refere como “subjetividade lixo”. O que a gente tenta fazer no nosso trabalho é a reinserção da subjetividade nas histórias que a gente conta. No caso de Devotionalia, o texto de jornal é aquilo que lemos todos os dias e que nos anestesia. Tentamos tornar visíveis esses mecanismos através dos quais a subjetividade é extraída dos contextos para facilitar a nossa relação midiática com o mundo. Quando o menino conta que o amigo morreu, e você lê exatamente a mesma história no jornal, você enxerga a distância que há entre as duas coisas, como se se tratassem de dois universos distintos. O que, de fato, são.

Isso produz uma revelação, que talvez seja a precisão a que você se referia.

M: É isso, exatamente. A possível verdade está aí, nesse jogo formal de inclusão de contrapontos.