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Texto de curadoria Jean-Marie Duhard, 1994

O poeta, guardião das infinitas faces do vlvente*

O tema forçou-me a acordar de madrugada. Não que eu deteste isto, pelo contrário, gosto de acordar cedo, mas me obrigou a percorrer de volta o meu caminho. Em minha juventude, eu era aluno do curso de teatro do conservatório de Bordeaux e toda semana recitava poemas no rádio, quase sempre ao vivo e na frente de um público experiente. Anos depois abandonei o teatro para fazer cinema, em seguida o cinema para me dedicar ao vídeo e à televisão Aí está, é tudo muito simples. Mas nunca abandonei a poesia. Para mim, ela permaneceu o corpo profundo, misterioso e transcendental de nosso envoltório humano, a metáfora do real e o "grito" metamórfico da realidade. Amo a poesia da alma, essa que faz natural e infalivelmente a viagem do cérebro-cérebro para o cérebro-coração e para o cérebro-corpo.

"Mago da insegurança, o poeta não tem senão prazeres adotados. Cinzas sempre inacabadas"(1). A alquimia entre o vídeo e a poesia poderia ser a Grande Obra dos tempos da eletrônica, do digital e do virtual. No mundo atual, mais preocupado com a comunicação das máquinas e delas entre si - numa comunicação sem fim - pode-se falar de poesia? Mas onde está a poesia? Nos gritos de urn jovem poeta de dezessete anos, ate hoje o mais incômodo, o mais perturbador, o mais autêntico de todos os nossos poetas: Arthur Rimbaud. Com D'une saison en enfer, Jean-Christophe Averty exalta o clamor de um adolescente, colocando-lhe furtivamente os desenhos ou pinturas, os acentos desesperados dos doentes mentais internos em hospício.

Há mais poesia no 'Ier" do que no "ouvir". Ela está nos fragmentos, nos restos, nos farrapos da memória do filme maravilhoso de Patrick de Geetere e Cathy Wagner: En pire. No estranho vazio do poema de Borges, Ausencia, que Christian Barani realizou em video. Nos códigos amorosos, porém incertos e frágeis, de L'amour transcodé de Patrick Prado.

Há mais poesia no "escrever" do que no "ouvir". Ela está na ficção, na documentação, na representação dos poetas da obra de Jean-Paul Fargier. No corpo de Gallotta interpretando o homem que falava vinte e cinco línguas, o poeta Armand Robin. Curvado sobre a beleza, Robin traduzia e servia os maiores de todos- Pouchkin, Ady, Froding, Imroulquaïs, Tou-Fou, Essenin, Maiakovsky, Palamas - e assim homenageava aos homens do mundo inteiro.

Há mais poesia no "ver" que no "ouvir". Ela está na contemplação de Scénographie d'un paysage, de Dominique Belloir, no dilaceramento e sofrimento em D'aprés le naufrage, de Alain Escalle, no olhar e na observação de Jour de beau temps, de Valerie Dc Meerleer. Em L'amour du regard, de Hervé Nisic, cuja invisibilidade na página cheia nos conduz a nossa própria força e nos ajuda a atravessar, sem perigo e sem angústia, o muro da morte. Nossa própria morte.

Há mais poesia no "sentir" do que no "tocar". Cathy Vogan, em Methuselah, nos diz - desde a cavidade da árvore ao fundo da alma - o que o maravilhoso conto fiiosófico de Paulo Coeiho , O Alquimista, nos revela: cada um de nós tem sua "própria lenda" e tem que vivê-la.

A poesia frequentemente afasta as pessoas. Lê-la? Às vezes sim. Ouví-la? Não muito. Vê-la? Sim, mas com a condição de não se vê-la, talvez.

Contudo, ela está aí, sutil, tenaz, inextirpável, inabalável, imortal. Transpira em todos os lugares, no interior e no exterior da pele. Capilar, ela se ramifica no nosso sistema de pulsões. Permanece firme, soberba, rigorosa, indomável. Está nas ruas, nas casas, nos olhos, no tempo, no espaço, nos elementos, nos corpos, na natureza, nas palavras, nos sons, nos ritmos, nos movimentos. É jubilosa com Michel Jaffrenou, lúdica, alegria e energia em Vidéopérette. Pura, espontânea, ingênua nas mãos do pintor eletrônico Michaël Gauminitz.

Grave, terna e profunda interpretando em imagens os magníficos versos de Omar Khayyâm , ou ainda de tirar o fôlego na comovente carta do marido da bordadeira em Courrier des télespectateurs

Há sempre poesia para quem sabe vê-Ia, ouvi-la, senti-la, reconhecê-la e aceitá-la. Ela está presente em cada um de nós e de nada adianta falar ou escrever sobre ela, pois não é um conceito, é um estado. Um estado que freqüentemente ignoramos ou refutamos. Um elo que o poeta guardião das infinitas faces do vivente, ou o alquimista das imagens, tece entre nós e ele, para que seja preservada a estabilidade unilateral e o caminho secreto da eternidade. O poeta é o imperador preocupado unicamente com o recolhimento da paz... "Pode-se, afinal, viver sem filosofia, sem música, sem alegria, e sem amor. Mas não tão bem". (2)

Sim, não tão bem, não sem este vento brando que às vezes nos acaricia ou este fogo que nos devora, sem este olhar que faz com que eu te veja e tu me sorrias.

* e (1) René Char "Fureeur et mystère." Poésie/Gallimard, 1967
(2) Vladimir Jankélévitch.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "10º Videobrasil: Festival Internacional de Arte Eletrônica": de 20 a 25 de novembro de 1994, São Paulo-SP, 1994.