Para além do horizonte
a cartografia cultural como instrumento de pesquisa e produção
- uma reflexão em sete momentos sobre os programas públicos do Videobrasil

por João Laia

sobre os Focos 2 e 3 dos Programas Públicos do 18º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil



"A política é, em si mesma, cultura. Ao mapearmos diferentes culturas, os contornos políticos e sociais dessas realidades emergem diante dos nossos olhos."

Yuko Hasegawa


"Mas se tudo o mundo é composto de mudança,
Troquemo-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança."

José Mário Branco













 

1.

Em ‘Geo-Cultures’ circuitos de artes e globalizações, Irit Rogoff defende que as práticas artísticas contemporâneas ao invés de serem meros reflexos ou consequências dos processos de globalização são, inversamente, agentes dessas dinâmicas, contribuindo para a sua construção e desenvolvimento. Deste ponto de vista, o circuito artístico internacional torna-se um fator de mudança e não apenas um espelho dos processos em curso. Rogoff afirma ainda que a mobilidade e a proliferação são características centrais da globalização, e que, por isso, o mundo da arte é um espaço excepcionalmente posicionado para estudar esse processo, uma vez que é um campo onde estas dinâmicas são, simultaneamente, produzidas e observadas1. De forma semelhante, Enwezor Okwui em The Postcolonial Constellation argumenta que “trazer a arte contemporânea para o contexto geopolítico que define as relações globais (...) poderia oferecer uma visão perspicaz da constelação pós-colonial”2. Para Okwui a arte deve ser vista como um instrumento de leitura do presente, sendo algo que pertence e influi na evolução atual do panorama geo-político mundial. Este tipo de entendimento do circuito artístico como um elemento ativo das mudanças geo-políticas em curso é contrário à concepção da arte como um mero reflexo ou expressão do espírito do tempo, uma área periférica da vida e sem qualquer influência nas forças que moldam o nosso quotidiano.


2.

Posicionar o contexto artístico como algo autônomo é típico do modernismo do século XX (formulando uma das suas narrativas estruturais), onde a lógica interna da obra de arte é marcada pela sua exclusão do domínio da vida social, posicionando o trabalho do artista como um produto de cultura erudita, separando-o da vida quotidiana. Esta distinção pode ser relacionada com o estabelecimento-imposição de mais uma oposição ideológica que constitui uma outra grande narrativa: a divisão norte-sul, ambas resultantes de uma interpretação eurocêntrica da realidade, que, até recentemente, dominou as relações internacionais. Novamente em The Postcolonial Constellation, Okwui desenvolve esta ideia: “o encontro europeu com a chamada “arte primitiva” colocou desafios ao modernismo do século XX mas foi subsequentemente assimilado e subordinado aos seus imperativos totalizantes”. Do seu ponto de vista, admitir a ruptura paradigmática que este encontro produziu, significava questionar a narrativa da história da arte moderna. Em consequência, as funções utilitárias destas obras não-ocidentais foram silenciadas, transformando-as em objetos reificados de arte e retirando-lhes qualquer valor ritual e mágico que possuíam no seu contexto original. Como resultado desse encontro, a arte africana foi tornada inócua, as suas peças destituídas de qualquer significado sacramental ou quotidiano, tornando-as autônomas. Associando-se ao pensamento de Édouard Glissant, Okwui refere, ainda, a necessidade de qualquer crítica aos sistemas expositivos de arte moderna ou contemporânea incluir uma referência aos fundamentos destas histórias: às suas raízes no discurso dos impérios coloniais, mas, também, às pressões que no presente o pensamento pós-colonial exerce nestas narrativas3.


3.

O festival de arte contemporânea Videobrasil dedica-se à investigação deste tipo de questões, propondo uma visão não autônoma da arte contemporânea, transformada numa ferramenta para pensar e construir o mundo. O evento habita um espaço intersticial entre geografia real e simbólica, incorporando uma critica à narrativa dominante da historia da arte e experimentando novos caminhos para o seu desenvolvimento. Aqui, cartografar não é sinônimo de um novo entendimento geográfico, mas antes uma forma de questionar concepções cristalizadas ao longo de séculos e de propor uma concepção renovada da sociedade e da arte. As exposições e os Pprogramas Públicos do festival, bem como o programa de residências e itinerâncias, constituem instrumentos onde se investiga o passado e o presente e se propõem hipóteses de futuro, apresentando uma multiplicidade de visões, que, no seu conjunto fragmentado, se opõem a entendimentos estanque sobre a realidade contemporânea. Mais do que localizações, o festival desenha um mapa de relações e afetos, onde cada interveniente se torna parte deste processo cartográfico, centrado na produção de uma nova imagem da geopolítica internacional: o sul, também chamado de sul geopolítico, que não equivale à zona a sul do equador, ao hemisfério sul, incluindo, também, regiões como o norte da África, o Oriente Médio ou a Europa do Leste.


4.

Este posicionamento cartográfico não-realista, a falta de equivalência entre zona geográfica denominada e os territórios que participam no festival, não constitui novidade. Yuko Hasegawa, curadora da XI Bienal de Sharjah em 2013, assinala que, ao estudar os mapas da zona do Golfo Pérsico dos últimos quinhentos anos, notou como as cartas marítimas evoluíram, mostrando, ao longo dos séculos, os mesmo territórios em posições mais próximas ou mais longínquas entre si. Esses mapas não tinham como objetivo uma representação fidedigna da zona geográfica a que se referiam, mas, pelo contrário, estimulavam ou refletiam as relações de proximidade entre diferentes povos, espelhando a política da época em que o mapa foi produzido. Do mesmo modo, as zonas geográficas que participam no Videobrasil também pertencem a um sul imaginado, um território que, ao longo de séculos, sofreu a imposição de se ter de incorporar e subordinar a um pensamento eurocêntrico como única forma de desenvolvimento. Hasegawa questiona-se: “como seria a aparência de um mapa cultural hoje?”4. O Videobrasil tem esta pergunta como força motriz, apresentando a cada edição uma cartografia renovada do circuito artístico e, logo, geopolítico.


5.

A série de programas públicos do Videobrasil, constituída por debates, conversas e programas de vídeo, tem como objetivo principal expandir as ideias exploradas nos trabalhos apresentados na exposição Panoramas do Sul, e, adicionalmente, especular possíveis tópicos de investigação em edições futuras do festival. Entre os temas discutidos destacam-se: Pelo mundo: processos e sentidos da internacionalização da arte; Territórios do sul: experiências, cidades e fronteiras; Natureza mágica; e A “transnacionalidade” como horizonte; das sessões em auditório: História, regresso e pertencimento ou Ambivalência dos espaços arquitetônicos. O objetivo maior destas atividades é “extrapolar a especificidade do universo da arte para relacionar as obras das exposições aos seus contextos históricos, sociais, políticos e econômicos”5, uma vontade que corresponde precisamente ao posicionamento de Okwui ao defender que “(...) qualquer instituição cultural, como um objeto de pensamento histórico, tem uma vida social bem como uma dimensão política e a sua função não pode ser dissociada da complexa arena social e cultural onde o seu discurso institucional está inserido”6. Nesse sentido, o conjunto de atividades do Videobrasil, em especial os seus programas públicos e a plataforma VB, formam o que Okwui entende como uma constelação pós-colonial: “um espaço para a expansão do que constitui a cultura contemporânea e as suas afiliações com outros domínios e práticas; interseção de forças históricas alinhadas contra os imperativos hegemônicos do discurso imperial. A constelação pós-colonial busca interpretar uma ordem social particular, mostrar as relações entre as realidades políticas, sociais e culturais, áreas artísticas e histórias epistemológicas, sublinhando não apenas os aspectos contestados mas também a sua redefinição continua.”7


6.

O Videobrasil encontra na incorporação de questões micropolíticas a melhor forma de opor e rearticular as grandes narrativas históricas que ainda condicionam os dias de hoje e que Okwui denomina de imperativos hegemônicos do discurso imperial. É desta forma que encontramos o ponto fulcral das duas seções do festival (as exposições e os programas públicos): a subjetividade. Os trabalhos incluídos na mostra Panoramas do Sul, bem como os vídeos projetados em sessões de auditório e as ideias partilhadas ao longo dos debates e conversas, partilham uma investigação pessoal de diferentes camadas da vida quotidiana, formulando políticas de subjetividade que confrontam as grandes narrativas. O legado de Walter Benjamin, em especial as suas Teses sobre a filosofia da história, ganham uma relevância renovada neste contexto. Apesar de produzidas em reação a acontecimentos ocorridos na Europa de inicio do século XX, o seu entendimento particular do processo de construção histórico, preserva uma atualidade e adequação notável. Benjamin caracterizou a história como um produto de elites no poder em detrimento de uma larga maioria silenciada. A necessidade que o pensador expressou de uma oposição feroz a leituras dominantes do passado, passava principalmente por formas de oposição individuais, logo subjetivas, e desta forma relaciona-se de forma profunda com a política que marca o Videobrasil. No momento atual, onde forças políticas e econômicas se rearticulam de forma violenta e repressiva, com fortes impactos na esfera social, e principalmente nas minorias, as suas Teses (...) ganham ainda mais sentido e ecoam os movimentos de contestação como o Occupy Movement ou a Primavera Árabe. Regressando aos trabalhos incluídos no Panoramas do Sul, entre os temas mais fortes destas perspectivas pessoais, assinalam-se a memória e a sexualidade (gênero e orientação), que, por sua vez, se podem relacionar com o interesse renovado na ideia de natureza. Okwui cita Hal Foster ao referir como a emergência de novas forças como os movimentos feministas, de negros, gays, estudantis ou ecologistas, entre outros, tornaram claro a importância única de fatores como gênero ou orientação sexual, etnia ou localização geográfica. Foster chama a este processo “a revolta da natureza”, uma mudança paradigmática na relação entre poder e conhecimento que se encontrava instituída até este tipo de questões aparecer8. Ficcionalizar a natureza implica claramente uma destruição da oposição modernista entre cultura e natureza (uma outra grande narrativa), onde a cultura seria produto do homem e a natureza uma área virgem, desorganizada, selvagem e, logo, externa ao projeto “civilizacional” dos povos colonizadores. A recuperação da natureza permite ainda contrapor o silenciar de outras vozes artísticas, entre as quais a africana, recuperando o seu valor mágico, ritual e quotidiano, o que representa, também, a destruição da narrativa modernista referente à autonomia da arte. Como referido, este movimento de transposição do projeto modernista tem como base a importância renovada das dinâmicas sociais subjetivas e, em especial, dos processos de memória individuais. A implosão, ou pelo menos, o questionar de leituras dominantes do passado, abre caminho à visibilidade de dinâmicas anteriormente silenciadas (gênero, orientação sexual ou étnicas, entre outras), o que resulta na ativação de um processo democrático de distribuição de poder: na emergência de uma pluralidade de vozes. Foi este tipo de questão que dominou os programas públicos do Videobrasil, aparecendo transversalmente nos trabalhos, conversas e experiências partilhadas ao longo do evento.


7.

Desenvolvimentos recentes, resultantes da expansão econômica neo-liberal, como a crise financeira, política e social que grassa na Europa e Estados Unidos ou a potente emergência de outras economias como a China, alguns estados do Oriente Médio ou o Brasil, problematizam as formas vigentes de cartografia simbólica internacional, questionando sua validade e reclamando um novo entendimento geopolítico. Assistimos ao aparecimento de uma pluralidade de novos e diferentes categorias de sul e norte. O sul da Europa é um exemplo recente e agudo deste tipo de dinâmica, talvez um ex-norte tornado um novo sul? A China um outro caso de um hipotético sul que se transforma num potente norte. E o que dizer da comunidade negra dos Estados Unidos, sujeita desde há séculos a diferentes dinâmicas de exclusão? Substituindo sul por invisíveis ou subordinados e norte por visíveis ou dominantes e recuperando a pergunta de Yuko Hasegawa “como seria a aparência de um mapa cultural hoje?”. Este tipo de questão começou a emergir sutilmente durante as conversas e sessões de vídeo dos programas públicos. Da mesma forma, a questão da diáspora também complexifica a construção de uma geopolítica simbólica, que dependa de localizações específicas. A base teórica do Videobrasil, embora conte com princípios de base como a centralidade do eixo sul, vai sendo construída no decurso do evento: numa primeira fase através da seleção de trabalhos e, posteriormente, através dos encontros, diálogos e cruzamentos (os previstos no programa mas, também, os de caráter informal, estimulados pelo formato do evento). Olhando para a história do festival, ela mesma objeto de uma das exposições da edição deste ano (2013), fica clara a lógica auto-reflexiva que dirige o Videobrasil e a certeza que as complexas questões que foram levantadas em 2013 não vão ficar por responder em edições futuras. A forma do evento aponta para, por um lado, a forte vontade de apresentar um discurso plural, e por outro, a abertura constante à mudança. Em O Pós-Modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio, Frederic Jameson defende que é na forma onde se encontra a ação política, onde a ideologia é revelada e não no conteúdo: a maneira como o pensamento é exercido constitui, em si mesma, uma modalidade de produção e implementação ideológica9. O modelo do Videobrasil apresenta uma coerência extrema com os ideais políticos que definem o festival. A colaboração de vinte anos com a rede SESC, em especial o espaço Pompeia, permite ao evento efetivar a rejeição modernista da autonomia da arte, utilizando um espaço aberto, onde, em simultâneo, se oferecem atividades esportivas e entretenimento dedicadas a todas as idades, formulando uma quase-utopia social. Em termos formais, é de realçar a manutenção do nome: apesar de funcionar como uma bienal o evento manteve a denominação de festival, indicando a importância do encontro social como forma de produção crítica e fortalecimento de conexões. Finalmente, o fato de utilizar um open call como método programático fortalece o cariz plural do evento, em especial tendo em conta o seu objeto: uma zona do globo sujeita a formas mais ou menos visíveis de domínio. Estas características democráticas, que o Videobrasil tem vindo a desenvolver ao longo do seu percurso, deixam antever a possibilidade do festival, no futuro, passar por uma outra definição de sul geopolítico, que seja ainda mais inclusiva. Uma demarcação capaz de incluir as dinâmicas em curso hoje, que problematizam definições sustentadas por parâmetros como localização geográfica. Uma definição flexível mas sustentada, com princípios mas sem referentes físicos. Uma coordenada para além do horizonte.

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1 Rogoff
2, 3, 6, 7, 8 Enwezor Okwui The Postcolonial Constellation: Contemporary Art in a Sate of Permanent Transition in
4 Texto introdutório do catálogo da Bienal de Sharjah 2013 por Yuko Hasegawa
5 Catálogo Videobrasil 2013, texto programas públicos
9 Frederic Jameson