O artifício da sobreposição
por Mariana Lorenzi

sobre o Foco 7 dos Programas Públicos do 18º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil


Dizer que uma obra de arte nunca se esgota significa que ela dá abertura a múltiplas leituras e que, para existir, requer o olhar de outros agentes além do artista, como o curador, o crítico, o educador e, principalmente, o público.

A importância desse tema foi particularmente discutida durante o Foco 7 do 18º Festival Videobrasil. Sob o titulo "Leituras Sobrepostas", três curadores e uma artista foram convidados a estabelecer interlocuções com as obras expostas na mostra Panoramas do Sul e na exposição 30 anos. Pediu-se aos convidados que, munidos com cerca de 100 obras de artistas provenientes do eixo Sul geopolítico, sobrepusessem leituras que ativassem os trabalhos e o espaço expositivo de uma maneira não convencional.

A presença do curador dentro do espaço expositivo geralmente se dá por meio do texto escrito, como uma forma de estreitar o diálogo entre o artista e o público. Nesse caso, a proposta intertextual, que se contrapõe a um caráter de autoridade, justapondo-se mais do que sobrepondo-se à obra, foi particularmente presente nas intervenções propostas pelos curadores Galciani Neves e Julio Martins.

A curadora e crítica de arte Galciani Neves propôs para o Foco 7 um exercício de experimentação expográfica ao convidar artistas – alguns deles participantes do 18º Festival –, a escreverem sobre algumas das obras da mostra. Esses pequenos textos foram colocados ao lado das legendas de identificação das exposições. Com isso, a curadora subverteu o papel do texto dentro do espaço expositivo e revelou que o mesmo pode servir para complementar os trabalhos exibidos, não apenas para interpretá-los ou descrevê-los. As Escritas Sobrepostas desdobraram as obras, ampliando as suas camadas de compreensão. Ao serem destacados, o textos continuam ecoando mesmo fora do espaço da exposição. 

Em 4 Livros à Margem, Júlio Martins, curador e historiador de arte, distribuiu um caderno de anotações em cada um dos quatro cantos do espaço expositivo, que representavam os pontos cardeais – signos de orientação. Os cadernos, como objetos presentes nas margens da exposição, provocavam no espectador inadvertido a impressão de tratar-se de uma obra entre as outras. Assim, nos faz pensar sobre os limites da exposição e das experiências nela contidas, o que é obra e o que é sobreposição. Ao abri-los, percebemos que os livretos dialogam com a exposição Panoramas do Sul, ainda que Martins exponha ao público um aspecto pessoal de sua prática, uma forma intuitiva, enraizada em sua memória, de estabelecer conexões entre as obras e múltiplas referências da literatura e da história da arte.

Se Galciani Neves e Júlio Martins sobrepuseram suas leituras utilizando o texto, Carolina Mendonça e Paulo Myiada optaram por outro tipo de interlocução, utilizando a performance e o vídeo respectivamente para provocar a mirada do espectador. Nas duas propostas o público era o alvo, provocando a sair de seu papel de observador e a assumir o centro da experiência artística.

Para o arquiteto, urbanista e curador Paulo Miyada, o público ocupa um lugar de produção de sentidos e discursos dentro do espaço expositivo. A fim de destaca-lo, Miyada produziu um vídeo chamado Mixtape: Videobrasil, no qual, utilizando artifícios de documentário e ficção, acompanhou um jovem casal em sua visita pelo 18º Festival. Ao ser exibido dentro da própria sala expositiva da mostra 30 anos, a plateia que assiste ao filme se identifica com a situação, ocupando tanto o lugar de objeto a ser analisado, quanto de sujeito que analisa e observa, provocando uma sobreposição de tempo e espaço real e representado.

A artista e diretora teatral Carolina Mendonça adotou a performance como formato para sua leitura sobreposta. Reunindo quatro performers, foi desenvolvida uma ação sutil chamada Público que jogava com a experiência do espectador no espaço expositivo e sua relação com as obras. Dentro de regras pré-estabelecidas pela diretora, os atores circulavam discretamente pela mostra Panoramas do Sul, seguindo os visitantes e pouco a pouco interferindo no seu percurso e na sua experiência. Em uma dessas intervenções, um espectador compenetrado não se deu conta de que ditava o ritmo do grupo de performers. Todos pararam na obra de Eneida Sanches, Transe, deslocamento de dimensões, na qual diversas gravuras de olhos de bois misturavam-se com imagens e sombras projetadas, dando a impressão de que obra e espectador se observavam simultaneamente. Ao final da ação, os atores cercaram o visitante recitando um texto da historiadora de dança Bojana Cevik que dizia: “É uma visão comum hoje que no momento em que nós nos vemos em público – se não antes disso, uma vez que somos seres sociais desde o início – nós nos percebemos performando nós mesmos diante dos outros”.

As sobreposições apresentadas no Foco 7 jogam com os elementos e os mecanismos da arte, seja questionando o papel do texto curatorial, deslocando o espectador para o centro da obra ou ativando lugares pouco prováveis do espaço expositivo. As novas e variadas possibilidades de leitura que encontramos nas propostas nos fazem compreender a sobreposição como artifício para a renovação da experiência estética.