Nossas imagens

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postado em 25/07/2017
Leia ensaio de Vilém Flusser que integra o Caderno Sesc_Videobrasil 12 | METAFLUXUS

O ensaio a seguir foi escrito por Vilém Flusser em 1979 e marca o início de sua fase madura. É um dos primeiros textos em que o filósofo aborda o conceito de imagem técnica, com o qual trabalharia até o fim da vida.

O Caderno Sesc_Videobrasil 12 | METAFLUXUS é uma experiência editorial de viés flusseriano com curadoria de Rodrigo Maltez Novaes. Em breve estará disponível em português e inglês, impresso ou em e-book.

Lançamento: 12 de agosto, sábado, às 15h, no Galpão VB. Sessão de autógrafos e conversa com Rodrigo Maltez Novaes e convidados.

Saiba mais.

NOSSAS IMAGENS
De Vilém Flusser
Imagens: Leona Vingativa, sequência de quadros do vídeo Eu quero um boy

O nosso mundo se tornou colorido. A maioria das superfícies que nos cercam é colorida. Paredes cobertas de cartazes, edifícios, vitrines, latas de legumes, cuecas, guarda-chuvas, revistas, fotografias, filmes, programas de TV, tudo está resplandecendo em technicolor. Tal modificação do mundo, se comparado com o cinzento do passado, não pode ser explicada apenas esteticamente.

As superfícies que nos cercam resplandecem em cor, sobretudo porque irradiam mensagens. A maioria das mensagens que nos informam a respeito do mundo e da nossa situação nele é atualmente irradiada pelas superfícies que nos cercam.

São as superfícies, e não mais as linhas textuais, que codificam preferencialmente nosso mundo. No passado recente, o mundo codificado era dominado pelos códigos lineares dos textos, e atualmente o é pelo código bidimensional das superfícies. Planos como fotografias, telas de cinema e da TV, vidros das vitrines tornaram-se os portadores das informações que nos programam. São as imagens, e não mais os textos, que são os media dominantes. Poderosa contrarrevolução de imagens contra textos está se processando. No entanto: em tal contrarrevolução é preciso discernir que se trata de um tipo de imagem inteiramente novo, e jamais antes existente. As imagens que nos programam são pós-alfabéticas, não pré-alfabéticas, como são as imagens do passado.

A escrita linear (por exemplo, o alfabeto latino ou as cifras árabes) surgiu como revolução contra as imagens. Podemos observar tal revolução em determinados tijolos mesopotâmicos. Mostram eles a imagem de uma cena, por exemplo, a de um rei vitorioso. A imagem é composta de “pictogramas” que significam o rei e seus inimigos ajoelhados. Ao lado da imagem, os mesmos pictogramas foram impressos no barro mais uma vez, mas desta vez formam linhas. Tais linhas são textos que significam a imagem ao lado. O pictograma no texto não mais significa “rei”, mas significa “rei na imagem”, embora seja o mesmo pictograma. O texto dissolve a bidimensionalidade da imagem em unidimensionalidade e, destarte, modifica o significado da mensagem. Passa a explicar a imagem.

O texto descreve a imagem ao alinhar os símbolos nela contidos. Ordena os símbolos como se fossem pedrinhas (“calculi”) e os ordena em séries como em colares (“ábacos”). Textos são cálculos, enumerações da mensagem de imagens. São contas e contos.

Imagens devem ser explicadas, contadas, porque, como toda mediação entre o homem e o mundo, estão sujeitas a uma dialética interna. Representam o mundo para o homem, mas, simultaneamente, interpõem-se entre homem e mundo (“vorstellen”). Enquanto representam o mundo, são, como mapas, instrumentos para a orientação no mundo. Enquanto se interpõem entre homem e mundo, são, como biombos, coberturas do mundo. A escrita foi inventada quando a função tapadora, alienante das imagens ameaçava sobrepor-se a sua função orientadora. Quando as imagens ameaçavam transformar os homens em seus instrumentos, em vez de servirem de instrumentos aos homens.

Os primeiros escribas eram iconoclastas. Procuravam quebrar, perfurar as imagens tornadas opacas para fazer com que fossem novamente transparentes para o mundo. Para que as imagens novamente servissem como mapas, em vez de serem “adoradas”. Tal engajamento revolucionário dos escribas é nitidamente sorvível em Platão e nos profetas: desmitizavam imagens.

O gesto de ler e escrever textos se passa em nível de consciência afastado um passo do nível no qual imagens são cifradas e decifradas. Para a consciência imagística, o mundo é contexto de cenas: é vivenciado e conhecido por mediações bidimensionais, superfícies. Para a consciência textual, o mundo é contexto de processos: é vivenciado e conhecido pela mediação de linhas. Para a consciência estruturada por imagens, a realidade é situação: impõe a questão da relação entre seus elementos. Tal consciência é mágica. Para a consciência estruturada por textos, a realidade é devir: impõe a questão do evento. Tal consciência é histórica. Com a invenção da escrita, a historia se inicia.

Mas a escrita não eliminou as imagens. A história do Ocidente (dessa única “cultura histórica” sensu stricto) pode ser vista como dialética entre imagem e texto. A “imaginação”, como capacidade de decifrar imagens, e a “conceitualização”, como capacidade de decifrar textos, superam-se mutuamente. A concepção torna-se progressivamente mais imaginativa, e a imaginação, mais conceitual. A sociedade ocidental pode ser dividida em dois níveis: o nível básico dos iletrados que vivem magicamente (os servos) e o nível dos letrados que vivem historicamente (os sacerdotes). No nível das imagens e no nível dos textos. Há feedback entre os níveis: imagens ilustram textos e textos descrevem imagens.

A invenção da impressão e a alfabetização geral pela escola obrigatória modificaram tal dialética dramaticamente. Textos tornaram-se baratos e acessíveis, primeiro à burguesia, depois ao proletariado. A consciência histórica tornou-se acessível à sociedade ocidental toda. E sobrepõe-se à consciência mágica. As imagens foram expulsas da vida cotidiana para o gueto das “belas-artes”. As mensagens históricas, sobretudo as científicas, iam se tornando inimagináveis. Os textos passavam a ser “puramente conceituais”. Destarte, os textos passavam a trair a intenção pela qual foram inventados: deixavam de explicar imagens, desmitizá-las. Deixavam de ser desalienantes e passavam a obedecer à sua dinâmica interna, que é a da linearidade do discurso.

Os textos, como as demais mediações, inclusive as imagens, obedecem a uma dialética interna. Representam o mundo e encobrem o mundo, são instrumentos de orientação e formam paredes opacas de bibliotecas. Desalienam e alienam o homem. O homem pode passar a esquecer a função orientadora dos textos, sua finalidade pretendida, e pode passar a pensar e agir em função dos textos. Tal inversão da relação “texto-homem”, tal “textolatria”, caracteriza nossa historia nos seus últimos estágios. As ideologias politicas são exemplos desse tipo de loucura. Destarte, a consciência histórica ia perdendo o chão que a sustenta, o contato que os textos estabelecem com o mundo da experiência concreta. E tal contato se dá apenas quando textos explicam imagens, têm mensagem imaginável. O século 19 é, pois, palco da crise da historicidade.

Foi quando foram inventadas as fotografias e seus vários desenvolvimentos, como filmes, vídeos, hologramas, em suma: as tecnoimagens. São elas instrumentos para tornar imaginável a mensagem dos textos. Os textos se dirigiam, originalmente, contra as imagens, a fim de torná-las transparentes para a vivência concreta, a fim de libertar a humanidade da loucura alucinatória. Função comparável é a das tecnoimagens: dirigem-se contra os textos, a fim de torná-los transparentes para a vivência concreta, a fim de libertar a humanidade da loucura conceitual. O gesto de codificar e decifrar tecnoimagens se passa em nível afastado um passo do nível da escrita, e dois passos do nível das imagens tradicionais. É o nível da consciência pós-histórica. Trata-se de nível ainda dificilmente sustentável. É demasiadamente novo para podermos ocupá-lo, a não ser por instantes fugazes. Recaímos constantemente para o nível da historicidade. Somos, em relação às tecnoimagens, como o são os iletrados em relação aos textos.

As tecnoimagens são essencialmente diferentes das imagens tradicionais. As imagens tradicionais são produzidas por homens, as tecnoimagens por aparelhos. O pintor coloca símbolos em superfície, a fim de significar determinada cena. Os aparelhos são caixas-pretas que são programadas para devorarem sintomas de cenas, e para vomitarem tais sintomas em forma de imagens. Os aparelhos transcodificam sintomas em imagens. O programa dos aparelhos provém de textos: por exemplo, das equações da química e de óptica. De maneira que os aparelhos transcodificam sintomas em imagens em função de textos. São caixas que devoram história e vomitam pós-história.

As tecnoimagens têm a pretensão de não serem simbólicas como são as imagens tradicionais. Pretendem que são sintomáticas, “objetivas”. A diferença entre símbolo e sintoma é que o símbolo significa algo para quem conhecer o convênio de tal significação, enquanto o sintoma está ligado causalmente com seu significado. A palavra “cachorro” simboliza, a pegada sintomatiza o bicho. Tal pretensão à sintomaticidade, à objetividade, das tecnoimagens é fraude. Na realidade, os aparelhos transcodificam sintomas em símbolos, e o fazem em função de determinados programas. A mensagem das tecnoimagens deve ser decifrada, e tal decodificação é ainda mais penosa que a das imagens tradicionais: é ainda mais “mascarada”.

O processo da transcodificação efetuada pelos aparelhos pode ser observado com relativa nitidez no caso da televisão. Trata-se de gigantesco aparelho transcodificador que irradia imagens anfiteatralmente. Os aparelhos individuais são aberturas para o seu output, pelas quais as imagens são lançadas espaço privado adentro. O aparelho como um todo dispõe também de aberturas para o input, pelas quais devora sintomas e textos. Os sintomas vêm na forma de fitas cobertas de impressões causadas por cenas, por exemplo, fitas de vídeo. Os textos vêm em duas formas diferentes. Na forma de reportagens, scripts etc., que “descrevem” cenas. E na forma de programação que, por sua vez, se fundamenta em textos de teorias cientificas e de ideologias. Isto é: o aparelho se nutre de sintomas e de história em vários níveis. Tudo isto lhe serve de matéria-prima. No interior da caixa que é o aparelho de televisão, tal material é traduzido em imagens e irradiado. É transcodificado, de sintoma e história para pós-história.

Não que a história tenha deixado de “desenvolver-se”. Pelo contrário: rola mais rapidamente que anteriormente, porque está sendo sugada para o interior do aparelho. Os eventos se precipitam rumo ao aparelho com rapidez acelerada, porque estão sendo sugados e parcialmente provocados pelo aparelho. A história toda – política, arte, ciência, técnica – vai, destarte, sendo incentivada pelo aparelho, a fim de ser transcodificada no seu oposto: em programa televisionado. O aparelho tornou-se a meta da história, passa ele a ser represa do tempo linearmente progressivo. A plenitude dos tempos. História transcodificada em programa torna-se eternamente repetível.

De maneira que as tecnoimagens, ao contrário das tradicionais, não significam cenas, mas eventos. Mas não deixam de ser, elas também, imagens. Quem estiver por elas programado vivencia e conhece a realidade magicamente, como contexto de situações (“Sachverhalte”). Mas tal magia não é retorno para a pré-historicidade. Não está baseada em fé́, senão em programas. “Programa” é “prescrição”: a escrita é anterior a ele. É magia pós-histórica, e a história lhe serve de pretexto. Quem estiver programado por tecnoimagens vive e conhece a realidade como contexto programado.

Por certo: é possível transcender-se tal forma de existência pela decifração das tecnoimagens. Mas isto exige um passo para trás das tecnoimagens em direção à programação, não um passo para a frente em direção à conceitualização característica de textos. Exige um quarto passo. A crítica histórica, aquela que procura motivo atrás das tecnoimagens, não emancipará o homem delas. De modo que a atual contrarrevolução das tecnoimagens é superável apenas graças à faculdade nova, a ser desenvolvida, e que pode ser chamada “tecnoimaginação”: capacidade de decifrar tecnoimagens. Capacidade esta que tem a ver com o pensamento formal, tal como este vai se estabelecendo na informática, na cibernética e na teoria dos jogos. Se não conseguirmos dar esse passo rumo ao “nada” (“estrutura ausente”), jamais poderemos emancipar-nos do pensamento e da ação programados por tecnoimagens.