Ensaio 2005

"Riscos do Tempo Presente" - por André Brasil, Christine Mello e Eduardo de Jesus


Riscos do Tempo Presente


por André Brasil, Christine Mello e Eduardo de Jesus


Poesia é risco. O célebre poema-síntese, enunciado, em suportes vários, por Augusto de Campos, reverbera, estranha e inversamente, na fórmula místico-empresarial de Andrew Grove(1): “só os paranóicos sobrevivem”. Para o diretor da Intel, em uma sociedade do risco e da instabilidade, é preciso ter a sensação de permanente ameaça. Diante da cínica lucidez de Grove, a conclusão imediata é a de que, para além dos seus processos de exclusão e de suas disparidades econômicas, o capitalismo contemporâneo opera perversamente no âmbito das subjetividades: somos incitados a nos posicionar contra tudo e contra todos, em uma estratégia individualista e competitiva arriscada.


Seja qual for o nome que damos a ela - sociedade do risco, da incerteza ou da instabilidade - a experiência contemporânea é frágil: vivemos na corda bamba, em um equilíbrio precário entre a perspectiva de, afinal e uma vez por todas, usufruir os avanços prometidos pela tecnociência e, por outro lado, a perspectiva - alardeada tanto pela mídia quanto pelo discurso científico - do próprio fim (da história, da arte, da ciência, da filosofia, do humano, da vida).


Antes de tudo, o risco é uma retórica (o que não quer dizer que não seja real e não interfira concretamente em nossa vida). Quando se concretiza, ele já se tornou uma catástrofe, um dano. Para que continue sendo um risco, é preciso que ele se mantenha latente, iminente, prestes a acontecer. Por isso, o risco é sempre algo que se situa no limite do discurso, em suas bordas.


Hoje, a mídia parece ser uma das principais fontes do discurso acerca do risco: ali, estamos sempre na iminência de uma catástrofe ambiental, de uma guerra nuclear, de um atentado terrorista, de contrair um vírus incurável, de perder o emprego, de ter a casa assaltada, de atravessar uma crise econômica... cada vez mais presente em nosso cotidiano, em sua extrema visibilidade midiática, a retórica do risco acaba por legitimar o controle. Diante do risco sempre próximo, reivindicamos mais e mais segurança, mais e mais polícia, mais e mais vigilância, mais e mais controle. Como nos sugere Giorgio Agamben(2), a instabilidade legitima a transformação do poder político em poder de polícia.


Ou seja, a experiência contemporânea deriva de um desejo contraditório: convocados a nos tornar empreendedores de nós mesmos, incitados a participar das redes de informação, entretenimento e consumo, precisamos continuamente nos arriscar, mas - não, obrigado - não queremos arcar com os riscos. O que imediatamente deriva desta contradição é uma espécie de assepsia da experiência: não sem que, antes, ela seja traduzida em informação, essa nova forma de comunicação que tudo esclarece, tudo explica(3).


Assepsia do espaço, que se torna cada vez mais transparente, visível, mapeado e monitorado em suas dimensões macro e microfísicas. Assepsia do corpo, que pode ser esquadrinhado e investigado por instrumentos óticos cada vez mais sofisticados e que, descoberto seu código de funcionamento, torna-se passível de ser manipulado indefinidamente.


Mas, aqui, é principalmente do tempo que se trata. Sabemos que as diversas técnicas desenvolvidas no campo da comunicação e da informática, da biotecnologia e da engenharia genética alteram nossa experiência do tempo, que parece se pautar cada vez mais pelas idéias de previsibilidade e antecipação.


Através de técnicas de simulação cada vez mais sofisticadas, utilizadas em campos os mais diversos - da genética às finanças - tornamos previsível o que é imprevisto, traduzimos o possível em informação passível de ser medida, calculada, previamente experimentada. Se, para Bellour, “o tempo constrói a imagem devorando-a, como um cigarro se consumindo”(4), o filme agora é reverso: é a imagem que - plástica, dinâmica e processual - consome o tempo, em sua voracidade por antecipá-lo.


Acaso, imprevisto, devir: aquilo que o futuro apresenta de risco, virtualidade e diferença irredutível em relação ao presente passa a ser monitorado, controlado através de todo tipo de técnica preventiva e de simulação. Ou seja, para reduzir o que a experiência possui de “arriscado” precisamos nos cercar de mais e mais informação, o que torna o nosso um cotidiano cada vez mais in-formado. Como diria Jean-Louis Comolli(5), vivemos uma vida cada vez mais roteirizada, protegida do “risco do real”.


Nesse contexto, a imagem eletrônica e digital possui um estatuto ambíguo. De um lado, tornada informação, ela pode participar de dispositivos de vigilância e simulação, ampliando a transparência do espaço e a previsibilidade do tempo. De outro, apropriada por estratégias artísticas e políticas contemporâneas, pode reinventar espaços de descontrole e abrir novamente o futuro ao risco. Mas, agora, trata-se de um risco de novo tipo, o risco da experiência estética, aquele que é capaz de reconfigurar o nosso campo de possibilidades, de ampliar o nosso horizonte de expectativas e o âmbito daquilo que considerávamos “pensável”.



Riscos eletrônicos


Em sua extrema instabilidade - “poeira nos olhos”, na feliz expressão de Fargier(6) - a imagem eletrônica se insere histórica e semioticamente entre os vários campos artísticos e comunicacionais, operando infiltrações, passagens entre um e outro, transformando-os e sendo por eles transformada. Hoje, mais do que nunca, a produção eletrônica vive uma proliferação expressiva, gerando formas impuras, imprevisíveis: formas que, por isso mesmo, não se adequam comodamente às classificações genéricas. Tudo isso contribui para tornar o campo da produção eletrônica uma zona de risco, espaço de tensão entre linguagens e estratos culturais.


Trata-se também de uma produção de caráter expansivo. As imagens eletrônicas - analógicas ou digitais - transbordam os limites da tela, redesenham os espaços urbano e doméstico, abrigando e transformando as subjetividades. Se, para Philippe Dubois(7), vivemos uma espécie de “estado-vídeo” é porque, da televisão às câmeras de vigilância, do videoclipe aos painéis eletrônicos, a experiência contemporânea é, cada vez com maior intensidade, mediada e reconfigurada pelos vários dispositivos eletrônicos, que operam ubíqua e instantaneamente. A imagem eletrônica torna-se, dessa forma, um estado da imagem e da própria realidade: através dela se processam e se pensam as outras imagens e nossa presença no mundo.


Mas, para além de seu caráter expansivo e permeável, a imagem eletrônica deve ser considerada arriscada principalmente pela sua dimensão de acontecimento. Essa dimensão pode ser investigada em vários sentidos. Um deles diz respeito à forma particular como a imagem eletrônica opera a inscrição do tempo: sua dimensão temporal, seu caráter processual a transformam num verdadeiro acontecimento eletrônico. Como esclarece Arlindo Machado, o quadro videográfico não existe no espaço, mas na duração de uma varredura na tela. As imagens eletrônicas, complementa ele, “não são mais expressões de uma geometria, mas de uma geologia, ou seja, de uma inscrição do tempo no espaço. Dessa forma, o tempo já não é, como era no cinema, aquilo que se interpõe entre um fotograma e outro, mas aquilo que se inscreve no próprio desenrolar das linhas de varredura e na superposição no quadro”(8). Acontecimento eletrônico, portanto, que vai se tecendo, processualmente, no momento mesmo em que a imagem se forma na tela. Risco da imagem que atravessa e é atravessado pelo risco da experiência.


Há outra forma de se pensar o estatuto de acontecimento próprio à imagem eletrônica. Menos recorte de um instante do que fluxo ininterrupto de sinais luminosos, a imagem eletrônica se processa em tempo real e permite, muitas das vezes, a coincidência entre o momento de produção da imagem e o de sua exibição. Tempo real aliado a telepresença faz da nossa uma sociedade que se processa ao vivo, em constante superposição, em um presente expandido, de diferentes espaços e temporalidades. Podemos acrescentar criticamente, com Virilio(9), que, potencializadas pelas tecnologias eletrônicas e digitais, as imagens transmitidas instantânea e remotamente dominam a coisa representada, provocando ali uma espécie de acidente, um curto-circuito entre presença e distância. Configura-se, assim, uma “era paradoxal das imagens”(10).


Apesar de todas as ambigüidades políticas e estéticas produzidas por esse paradoxo, a abertura ao tempo real, ao fluxo ininterrupto do tempo presente, faz com que a imagem esteja aberta também ao acontecimento em sua imprevisível emergência. A contingência da captação da imagem aliada à sua instantânea circulação pode tornar-lhe permeada de aleatoriedades, eivada de pequenos (quase) acontecimentos.


Para além de seus aspectos meramente técnicos ou tecnológicos, mas deles indissociável, a apropriação estética da imagem eletrônica se efetua tendo em vista, portanto, seu caráter temporal, processual e de acontecimento. O artista que lida com a matéria-prima eletrônica acaba por moldar, manipular, ou melhor, modular o próprio tempo. Com isso, ele pode abrir a imagem à duração, ao acontecimento, ao risco do tempo presente e tudo aquilo que ele comporta de contingência e descontrole.


Aberta à duração, a imagem pode, então, abrigar o eventual. Pode, muitas das vezes, até mesmo provocá-lo, como é o caso de certos procedimentos documentais ou performáticos que visam menos registrar do que produzir uma experiência (que não aconteceria não fosse a intervenção daquele que, através da câmera, a produz).


O evento, “o inesperado de toda esperança”, diria Blanchot, é aquilo que pode nos afetar e, com isso, reconfigurar, ampliar nosso campo de possibilidades: quando atravessa a imagem em sua inapreensível aparição, o acontecimento pode nos fazer pensar o que a nós era antes impensável. Abre-se ali um território arriscado: “um espaço sem lugar e um tempo sem engendramento”(11), onde caminha “um pensamento que ainda não pensa”(12). Ambígua, precária, instável, a imagem se instala então nessa zona de risco, onde é impossível discernir, decidir, explicar, agir. Resta-nos “... um esforço, não para expressar o que sabemos, mas para sentir o que não sabemos”(13).


Podemos retomar o célebre poema de Augusto de Campos que inicia este ensaio: o risco poético, de muitas maneiras, se diferencia daquele risco que, através do discurso midiático ou tecnocientífico, nos deixa em estado de constante alerta, de constante paranóia. Se, com cada vez mais freqüência, o último é utilizado para legitimar o controle, a invasão de privacidade e a guerra (a justiça infinita, diriam alguns), o primeiro é aquele capaz de desfazer nossas certezas: com isso, reinventa nosso horizonte de expectativas, nosso campo de possibilidades. Trata-se, nesse caso, menos de antecipar o futuro para colonizá-lo do que de abrir virtualidades ainda inauditas.


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(1) Apud Sibila, Paula. “O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais”. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.


(2) Agamben, Giorgio. “Sobre a segurança e o terror”. In: Cocco, G. e Hopstein, G. (org.). “As multidões e o império: entre globalização da guerra e universalização dos direitos”. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002.


(3) Benjamin, Walter. “Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política”. São Paulo: Brasiliense, 1994.


(4) Bellour, Raymond. “Entre-imagens”. Campinas: Papirus, 1997, p. 41.


(5) Comolli, Jean-Louis. “Cinema contra espetáculo”. In: Forumdoc.bh.2001. Belo Horizonte, 2001.


(6) Fargier, Jean-Paul. “Poeira nos olhos”. In: Parente, André (org.). “Imagem Máquina”. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.


(7) Dubois, Philippe. “Cinema, Vídeo, Godard”. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.


(8) Machado, Arlindo. “O desafio das poéticas tecnológicas”. São Paulo: Edusp, 1996, p. 52.


(9) Virilio, Paul. “A imagem virtual mental e instrumental”. In: Parente, A. (org.). “Imagem Máquina”. São Paulo: Editora 34, 1993.


(10) Idem.


(11) Blanchot, Maurice. “O livro por vir”. Lisboa: Relógio D'água, 1984, p. 88.


(12) Idem, p. 60.


(13) Blanchot, Maurice. “À parte do fogo”. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 81.

BRASIL, André; JESUS, Eduardo de; MELLO, Christine. "Riscos do Tempo Presente". In: Caderno Videobrasil. Associação Cultural Videobrasil, nº1, p. 96-100, São Paulo, 2005.

Ensaio Eduardo de Jesus, 04/2006

ensaio_ Daniel Lisboa_"Imagem Política"


Imagem política


A produção audiovisual contemporânea desliza como um fluxo entre os mais diversos caminhos e possibilidades de criação. Os múltiplos processos de construção imagética servem para explicitar os diversos vetores, linhas de força e de continuidade que, de alguma maneira, reforçam os vínculos de uma espécie de história do audiovisual (ou uma “Arqueologia dos meios”, como afirma Siegfried Zielinski). As heranças da videoarte, do cinema novo, das vanguardas e do primeiro vídeo são freqüentemente rearticuladas em novas produções que se propõem refletir os descaminhos do dispositivo audiovisual e de suas manobras em torno dos estilhaços da realidade.


Os vídeos de Daniel Lisboa estão situados em uma destas linhas de continuidade que unem, às vezes de forma quase paradoxal, a imagem composta de modo experimental com princípios formalistas e a inquietude de uma visão política e anárquica do evento social, especialmente da situação política e social da Bahia. Lisboa parece herdar o modo de operar do aparato técnico das vanguardas históricas da década de 20 ou do primeiro vídeo, nos anos 60, e a inquietude dos realizadores que logo depois migraram para as TVs experimentais e comunitárias que marcaram a produção audiovisual dos Estados Unidos nos anos 70. Parece que a obra de Lisboa pertence a essas duas linhas que muitas vezes se mostraram excludentes, como nos mostra Martha Rosler em seu ensaio “Video: Shedding the Utopian Moment” publicado na coletânea Ilumminating Video* :


A tentativa de usar o vernáculo principal e o meio popular teve diversos caminhos. O esforço da inspiração ou influência surrealista significou o desenvolvimento de uma nova poesia da linguagem cotidiana da televisão, para introduzir um prazer estético dentro do comportamento de massa e fornecer um lampejo utópico proporcionado pelas sensibilidades liberadas. Isso significou não somente o estético hedônico enquanto pausa de uma realidade instrumental, mas também enquanto manobra liberalista. Um outro caminho estava mais interessado na informação do que na poesia, menos interessado na transcendência espiritual, mas igualmente ou mais interessado na transformação social. Sua dimensão política foi mais coletiva, menos visionária, em seu esforço de aumentar o espaço para que as vozes dos sem-vozes pudessem ser articuladas.


No caso do trabalho de Lisboa essas duas correntes se misturam em vídeos que, se de um lado tratam a imagem formalmente, de outro acabam por revelar questões políticas e sociais. O que destaca nessa mescla - e que nos faz lembrar dos vídeos de Paul Garrin, especialmente Home(less) Is Where the Revolution Is (1990) - é justamente usar procedimentos formais mais típicos do vídeo experimental fundidos com elementos do documentário, explicitando uma tensão natural entre a imagem, sua forma e os conteúdos sociais apresentados. Na produção de Daniel Lisboa podemos ver isso nitidamente em U Olhu Du Povu, Freqüência Hanói e em O Fim do Homem Cordial, vídeo premiado na 15ª edição do Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil.


O grande plano-seqüência com imagens em preto-e-branco de pessoas comuns na rua, que aparece em quase toda a duração de U Olhu Du Povu, revela um tratamento estético interessante. As pessoas são recortadas do fundo, que se torna um mero vestígio, marca tênue do lugar. Essa imagem do fundo solarizado, com as pessoas à frente, parece uma cópia xerox do espaço real, reconstrução piorada, não fidedigna e que já se mostra falida na possibilidade de revelar alguma coisa. Pura construção imagética. Assim somos embalados, em ritmo lento, pela música de Chico Science (Coco Dub) e pelas imagens de pessoas que olham perplexas. A tensão continua até os últimos minutos do vídeo, quando vemos que se trata de uma manifestação de estudantes, partidos de esquerda e populares nas ruas de Salvador, durante o processo de cassação do Senador Antonio Carlos Magalhães, figura central na política mais conservadora do Estado da Bahia, devido ao escândalo de alteração do painel eletrônico. O depoimento de uma mulher no final do vídeo colabora para que as imagens do povo agora ganhem um novo sentido. Perplexidade, passividade e assombro. Lisboa soube captar esse sentimento e, de forma bastante instigante, constrói uma espécie de narrativa que culmina com o motivo de tamanho espanto por parte das pessoas.


Já no inquietante Freqüência Hanói, co-dirigido com Diego Lisboa, a beleza das imagens do céu intensamente azul cortado por fios elétricos, antenas e outras “gambiarras urbanas” serve para revelar um discurso franco de um presidiário (será mesmo?) que narra sua história, suas indignações e sonhos. Durante todo o vídeo, a voz do presidiário é interrompida pelos ruídos de sintonia, como se fosse um rádio. O interessante é que a interferência também alcança a imagem que, nestes momentos, torna-se uma tela preta e algumas vezes revela pequenos fragmentos de imagens. Como lampejos, muito rápidos, vemos imagens de uma delegacia e de pichações. Sintonias que se encontram no discurso político indignado do presidiário e nestas imagens que recortam o azul do céu. Neste jogo entre perder e encontrar a sintonia, Lisboa dá voz aos que normalmente não conseguem alcançar os meios.


O resultado é pura potência, revelação do estado das coisas, principalmente na política, na Bahia e no Brasil. As imagens não mostram o presidiário e, com isso, não se estruturam em torno de uma representação do real, fazendo com que as possibilidades de sintonias desta “imagem-rádio-voz” nos revelem, em profundidade, uma voz que não estamos acostumados a ouvir com freqüência. Voz que normalmente se perde nos grandes meios de comunicação.


Se em Freqüência Hanói essa voz que ganha espaço é a do presidiário, em O Fim do Homem Cordial a ficção desenvolvida em torno de um dispositivo terrorista revela a furiosa voz marginal dos excluídos. O vídeo desenvolve-se com a apropriação de imagens do noticiário vespertino da principal emissora da capital baiana e, assim como os terroristas da rede Al-Qaeda, solicita a exibição de material que enviaram para a emissora sobre o seqüestro de um conhecido senador baiano. O que se vê é de uma contundência brutal e parece nos esfregar na cara o assombro da vida de milhares de brasileiros que são constantemente afetados pelas manobras corruptas dos políticos. Ao assumir o vídeo como um dispositivo terrorista (imagem que invade a programação, ausência de movimentos de câmera, violência no discurso, baixa qualidade da imagem, interferências visuais de toda ordem), Lisboa parece subverter o lugar do audiovisual e se referir a uma realidade construída na mediação e da qual a imagem já faz parte. Nessa apropriação subversiva das imagens, surge o discurso “pouco cordial” daqueles que normalmente não têm voz. “Cabeça branca vai rolar” grita o “terrorista baiano” exibindo impávido, para a câmera, o facão. Lisboa explicita ainda mais o dispositivo terrorista ao sutilmente mudar as legendas de inglês para árabe e ao incluir uma trilha também árabe no fim do telejornal. Estratégia de assumir o vídeo como um dispositivo que se coloca na violenta situação de forjar o real, de revesti-lo de ficção para, assim, talvez, conseguir ver o alcance dos seus estilhaços de imagem. Curto-circuito da mídia e imagem como vestígio do real midiático.


A obra de Lisboa revela, de forma bastante contundente, uma vertente da produção audiovisual brasileira que oscila entre formatos e gêneros, absorvendo, na multiplicidade imagética atual, possíveis situações de subversão, recriação e apropriação, como, por exemplo, a televisão em seus agenciamentos (notícia, informação, entretenimento, entorpecimento), em O Fim do Homem Cordial, ou a tensão entre documentário, ficção e experimentação, em Freqüência Hanói.


Além disso, as tensões típicas do encontro com o Outro, reveladas nas obras, fazem parte de um repertório de estratégias para nos envolver como espectadores e colocar em conflito diferentes visões do mundo. O resultado é o impacto de uma produção intensamente conectada com a vida social que consegue dar voz ao Outro explicitando assim, de forma contundente, as questões políticas brasileiras que muitas vezes são boicotadas nos noticiários nacionais.

Associação Cultural Videobrasil. "FF>>dossier>>017>>Daniel Lisboa". Disponível em: . São Paulo, abril de 2006.

Ensaio Eduardo de Jesus, 11/2008

ensaio_ff>>dossier O arquivo do tempo

O arquivo do tempo

Eduardo de Jesus


A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade; é aquilo que, fora de nós, nos delimita.

Michel Foucault (A arqueologia do saber)

As formas de arquivar, o papel desempenhado pelo arquivo, assim como as potentes relações entre os arquivos e as imagens, são alguns pontos de partida para tratarmos dos trabalhos do argentino Nicolás Testoni. A princípio nosso foco era o vídeo Canto de aves pampeanas (2006), premiado na última edição do Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil. No entanto, observando outros trabalhos de Testoni, ficam nítidos procedimentos similares e as mesmas confrontações com o campo do documentário, com os discursos da memória e suas possíveis fabulações.

Aquilo que, fora de nós, nos delimita, como diria Foucault, dá forma ao arquivo e revela uma complexa relação de alteridade construída com essas fagulhas de tempo que conseguiram ser retidas e acumuladas. Testoni em seus vídeos faz essa operação no tempo da memória. Acaba por recolocá-lo no tempo presente, mas deixando uma série de lacunas que vão ganhando sentido ao longo do vídeo e que vão revelando, aos poucos, essa forma de organização típica dos arquivos. No entanto, ao mesmo tempo mostra sua imponderável atualização, pelas fagulhas de real que afetam e reconfiguram os sentidos das imagens.

Estamos cercados pelo presente daquelas imagens, mas envolvidos numa situação de arquivamento que tanto a locução quando os intertítulos, dividindo as partes de cada canto, nos mostram. Vamos do passado do filme perdido – do qual só resta o registro sonoro do canto das aves pampeanas – à invasão da indústria petroquímica. Testoni associa as imagens, longos planos abertos com nenhum acontecimento aparente, ao som. Somos guiados pelo canto das aves.

(Do canto das aves, confesso que ele próprio me remete às minhas memórias. Meu pai cria pássaros como hobby até hoje. Passei grande parte da minha infância e adolescência vendo meu pai sentado, ouvindo e contando os cantos, as chamadas “flautas” de cada um deles. A sensação, ao ver esse vídeo pela primeira vez, foi de retomar essas situações de memória, não pela imagem, mas sim pelo som. Ouvindo os cantos, lembrei-me de tudo. Madeleine proustiana, mas sonora.)

Os supostos locais onde as gravações sonoras do filme perdido teriam sido feitas são as locações que Testoni escolhe para emoldurar um outro tempo, temporalidade típica desse arquivo que, ao mesmo tempo em que é próximo de nós, é diferente de nossa atualidade. Talvez aquele tempo em que as aves pampeanas pudessem cantar sem precisar dividir a paisagem com a indústria petroquímica.

As imagens de Testoni estão longe da máquina de Morel a que Casares deu forma em seu livro. A invenção de Morel guardava as imagens como se fossem uma forma de vida acumulada no passado, distante de possíveis atualizações. Na ilha, distante de tudo, o fugitivo, ao se apaixonar pela mulher que contempla diariamente o pôr-do-sol, nem de longe imagina se tratar de uma imagem vinda do passado, de alguém que não está ali e nunca mais estará. Uma espécie de projeção do tempo e do espaço, estranhamente incrustada naquele espaço-tempo da ilha. Ao contrário, em Canto de aves pampeanas não temos somente as imagens do passado a compor o arquivo. Convivem junto em um mesmo registro, sempre oscilante, o tempo das aves, do suposto filme perdido, com as imagens atuais desses possíveis lugares. Tudo é estranhamente real e atual, mesmo porque o movimento proposto é uma forma de atualização, paradoxalmente construída como arquivo, misturando de forma dinâmica passado e presente. Testoni nos mostra que a estabilidade do arquivo é atualizada pela natureza das imagens, pelo que elas revelam tornando-se instável em nossa percepção.

O dispositivo construído por Testoni para seu vídeo fala do arquivo, mas também da impotência dele. Estrutura-se como um audiovisual didático, nitidamente inspirado em filmes de observação, em catálogos indexados e organizados por tipos de pássaro. No entanto, o canto das aves, que a princípio emoldura o campo com as imagens, acaba por nos arremessar para fora dele quando, aos poucos, nas três divisões que estruturam o vídeo, vemos cada vez mais indústrias ocuparem o espaço. No fim, junto à descrição do canto de cada ave, aparecem os nomes das indústrias, tudo conduzido pela voz imposta do locutor que os enumera. Aquilo que vem de fora do campo, o canto das aves (já que elas não são mostradas em primeiros planos como nos documentários didáticos), acaba delimitando-o, para logo em seguida ser rompido. Falha no arquivo. O suposto didatismo dos procedimentos usados por Testoni ganha outros contornos, refaz outro trajeto entre passado e presente. Guarda um tempo que parece vazar das imagens, especialmente pelo rigor com que o diretor conduz a construção desse “falso” arquivo.

Não há qualquer texto que funcione como legenda junto às imagens. Somente ao final do vídeo são associados os cantos, os locais e o que se passava neles, que com isso ganham a mesma dimensão com os habitantes do local e suas vidas cotidianas. O arquivo nessa instabilidade ganha novo sentidos, acaba mesmo por nos delimitar, por conformar uma certa atualidade, um certo tempo que passa diferente entre presente e passado.

Ainda podemos perceber nessa obra uma potente tensão em torno do campo do documentário, especialmente no sentido de ampliá-lo para áreas de passagem e de contaminação entre outros domínios. Talvez isso seja um dos traços distintivos da experiência do documentário mais contemporâneo que tenta fugir do espetáculo (no sentido debordiano do termo), das singularidades dos personagens e das situações preestabelecidas. Alguns desses documentários buscam, por sua vez, aquilo que é mais ordinário, mais comum, para que a voz do “Outro” apareça diferente. Menos espetaculares e mais abertas, essas experiências apontam para lugares menos padronizados pelos estereótipos recorrentes e mais propícios à invenção dos sujeitos que vêem e daqueles que se deixam mostrar, inclusive os próprios diretores, como, por exemplo, em Passaporte húngaro (2003), de Sandra Kogut, e 33 (2004), de Kiko Goifman, entre outros.

Testoni, em seus outros trabalhos, também deixa transparecer essa filiação ao documentário contemporâneo, nítido na série de cinco curtos episódios de El puerto (2003-2006). Trata-se de personagens locais, quase sem qualquer “singularidade espetacular”, que relatam as suas experiências cotidianas no porto da cidade de Bahía Blanca (Argentina), onde Testoni vive e trabalha. Os planos fixos e as imagens pouco ilustrativas revelam a situação de imprevisibilidade daquelas vidas. Segundo Testoni, esse projeto se estrutura como uma série, dentro de um conceito televisivo, mas para passar de mão em mão, e não nos canais configurados. Um registro aberto de memórias, sem formato final ou conclusivo em torno das imagens.

Os aspectos da memória também aparecem no vídeo S/T (White Noise, 2007), de Testoni e Ricardo De Armas. Com uma sofisticada edição de imagens retiradas de velhos filmes domésticos em super-8 e elaboradas interrupções no fluxo das imagens, o vídeo explicita o ritmo e a freqüência da memória. O que vemos parece ser uma materialização dos modos de funcionamento da memória, das suas falhas e defeitos constitutivos encadeados em situações fugazes de lembrança e esquecimento, como oscilações. As possíveis recordações que esse vídeo parece suscitar, também no contexto de Bahía Blanca e do porto de Ingeniero White, são sempre lacunares e reiterativas, estruturando-se tanto na imagem quanto em sua ausência para a construção dos sentidos.

Os trabalhos de Nicolás Testoni traduzem de forma contemporânea algumas das tensões da memória, das formas de arquivamento, das diluições entre formatos e gêneros audiovisuais, nos mostrando alguns dos caminhos pelos quais trilha a imagem eletrônica na atualidade, em seus enfrentamentos com a vida social.

Associação Cultural Videobrasil. "ff>>dossier 040>> Nicolás Testoni". Disponível em: . São Paulo, novembro de 2008.