Entrevista Ivana Bentes, 2007

entrevista_ Arthur Omar - por Ivana Bentes


Ivana Bentes_A fusão, a montagem, a pulsação luminosa, o fluxo torrencial, a câmera lentíssima e o hi­per­acelerado, a intensificação musical são algumas das figuras de linguagem nos seus filmes e vídeos. São essas as bases de um pensamento audiovisual e sensorial que você busca?

Arthur Omar_Eu vejo três diferentes níveis de elaboração no meu trabalho. As figuras de linguagem organizam a imagem, formalizam, forjam a matéria, seja do filme, vídeo, fotografia. São a forma de atingir o cérebro diretamente através dos órgãos do sentido. Sou fascinado por interferências e remixagens sonoras, ultraedição, fusão, tudo o que ultrapasse o imediatismo da imagem e o verbal. Palavra, depoimento, fala, para mim tudo é matéria para ser modulada. Não me interessa a transmissão de nada preexistente às imagens, mas a produção de uma experiência com a imagem, na imagem, como uma reação química cerebral, que só ocorre ali. Se na instalação Dervix filmo a cerimônia sufi num estilo absolutamente pessoal, não se trata de desejo de interferir na linguagem. Ali estou dialogando com a experiência direta do próprio sufismo, com o êxtase, e fazendo com que o vídeo introduza uma contribuição para sua percepção. Deixando para trás o cinema, com o meio vídeo descobri outro elemento, o tempo real, o continuum, a deriva da imagem. Meus vídeos recentes e inéditos são ultrainformais. Num segundo nível, teríamos não mais as figuras de linguagem organizando a imagem, mas um reagrupamento dos trabalhos a partir de orientações conceituais: a antropologia, o êxtase, o ato, o antidocumentário. São plataformas, bases que atravessam diferentes trabalhos. Finalmente, a questão central que sempre me ocupou é a relação sujeito e objeto. É uma reflexão teórica, metodológica mesmo (uma fenomenologia sui generis), investigada na prática dos trabalhos. Como produzir experiências perceptivas, posições subjetivas, explodindo os clichês? Esse é o maior desafio. Como me colocar em outro lugar, inventar posicionamentos, fugir dos lugares que reservaram para mim, inclusive pela crítica e pelos historiadores. É o mais vital e difícil.


O que diferencia e qual a linha de continuidade entre a sua obra de curtas-metragens dos anos 1970, os vídeos dos anos 1980 e 90, a fotografia, a música, o desenho e as instalações atuais?

Vejo duas linhas, duas séries, nesses trabalhos, que muitas vezes se encontram, outras vezes se bifurcam em direções distintas: a desconstrução e o êxtase. Nos curtas dos anos 1970, há um impulso desconstrutor, em cada filme buscava uma especificidade, algo singular, caro à percepção cinematográfica. Em Congo, por exemplo, invertia as hierarquias e dava à palavra escrita, ao grafismo e ao letreiro mais importância que à imagem, desconstruindo a estrutura demonstrativa do documentário clássico e seu regime de verdades, propondo o antidocumentário. Em Vocês, criamos um dispositivo artesanal que simulava a luz estroboscópica e fizemos um flicker filme político, sobre a iconografia do guerrilheiro e sua paródia, com uma metralhadora de pau e cuja pulsação luminosa (guerra e cinema, luz que fere a retina) interfere na própria sala de cinema, na arquitetura mesmo, fazendo a sala escura pulsar. É um videoclipe avant la lettre, estruturado inteiro sobre uma versão de Bob de Carlo, de uma música cantada por Michel Polnareff. Em Tesouro da juventude, trabalho o found footage, filmes encontrados no lixo de uma emissora de TV, e pela primeira vez penso em uma antropologia visual, lírica, com o uso desses pedaços de filmes antropológicos dos anos 1920. Para mim, cada filme deve conter uma plataforma de percepção. Como o Triste trópico. Não é Cinema Novo, não é cinema marginal. É uma proposta de hipertexto, de intertexto radical, ainda em 1974. Nos vídeos dos anos 1980, a desconstrução mais radical cede ao fluxo, ao fluido, passagem do cinema ao vídeo, a idéia de êxtase, a captura da experiência aparecem como uma reconstrução (do ceticismo à crença na imagem).

Como você situaria hoje três textos/manifestos. O Antidocumentário provisoriamente (1972), Kodak-gnose (1988), e Foto, cine, vídeo: A questão do artista (1992), sobre a passagem entre os meios?

Os textos são resultado de um corpo-a-corpo com filmes, vídeo, fotografia, música. No Antidocumentário, desconstruo o documentário sociológico, mostrando como documentar é demonstrar e ficcionalizar, usando as regras da ficção clássica. Em Kodak-gnose, investigo o êxtase na fotografia, a relação de exibição, exposição e sincronia entre fotógrafo e fotografado. Em A questão do artista, penso o artista digital tornado amador, não-especialista, trabalhando com o tempo real e o continuum espacial. Chego ao informal. Se parasse de filmar hoje, poderia ficar dez anos produzindo vídeos, fotografias, imagens. Edito diariamente. Pensar, editar, filmar, fotografar, samplear, desenhar virou um só fluxo.

(catálogo do 16º Videobrasil). ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil": de 30 de setembro a 25 de outubro de 2007, p.114-115, São Paulo-SP, 2007.