Depoimento Simone Michelin, 2003
Durante o festival estaremos discutindo as questões do deslocamento e dos processos nômades como imagens e ações emblemáticas da situação política e cultural contemporânea. Como você reflete isso no painel da arte eletrônica? Este é um tema de interesse em sua obra?
Me parece que é a arte eletrônica em suas inúmeras vertentes que reflete esta situação, ao mesmo tempo em que participa ativamente de sua construção, constituição. Toda a imagem de sintese, imagem eletrônica, imagem técnica participa deste fluxo que se molda a todo o instante, que configura o espaço urbano, de onde tem saído o caldo da cultura contemporânea. trato disso sim no meu trabalho sob diferentes perspectivas. No caso do vídeo Lições Americanas Ho Ho Ho o deslocamento acontece revelando uma anomia do sul em relação ao norte (nas Américas), que se expressa no modo de olhar as festas natalinas, que decorre de toda uma complexa situação de desenvolvimento, colonialismo, etc, que moldam/ram as relações sócio-econômicas no Ocidente, por.ex. no web site O Santinho On Line, a narrativa presentifica a memória de uma ação passada promovendo um deslocamento no tempo e no espaço, acontecimentos de diversos dias estão disponíveis simultaneamente on line. Por outro, no nível de linguagem, ele se coloca criticamente em relação a todo um sistema de comunicação, direção, controle, escolha, uma ampla gama de possíveis relações entre partes, baseadas em comportamentos sociais adquiridos. tudo isto hoje em dia é mediado por máquinas, códigos, sistemas - meu trabalho se relaciona com isso tudo.
A relação entre arte e política é ao mesmo tempo rica e conflituosa. Como você percebe esta relação no caso específico do seu trabalho? nos últimos anos meu trabalho reflete sobre esta possível relação, ou sobre que relação seria possível,ou quais no plural, entre arte e política. no trabalho O Santinho este é o mote declarado - a respeito disso acho que o mais importante é a qualidade da metáfora em suas inúmeras e sutis ambiguidades.
Por exemplo, quando trato do tema 'arte para que?', a política entra 'idealmente', e, nestes termos, ela corresponderia à busca do bem supremo. Por outro lado, a arte, seria do âmbito do 'puramente desinteressado', porque pertence ao território do estético. O completamente desinteressado é o que é livre, e a liberdade é o supremo bem. Então, nesse ponto, talvez, arte e política possam se encontrar (convergir). mas talvez seja só neste plano 'ideal' e em mais nenhum outro.
As tecnologias da imagem e da informação participam de estratégias de controle e vigilância, sutis (ou não) e generalizadas. Diante desta realidade, qual seria , a seu ver, o papel da arte em contextos midiáticos?
É o mesmo papel em qualquer contexto - apresenta um outro modo de ver as coisas se formos pensar que o contexto midiático é o contexto dos centros urbanos que se extende através da televisão e agora do computador, o papel da arte definitivamente perde qualquer contorno modernista e entra no campo, no mercado, na rua, ao mesmo tempo em que cria seu próprio espaço nos entre-espaços das coisas. vide fragmento entrevista que dei para a obraprima.net "Em relação a um possível papel da arte, como diz Arlindo Machado, a arte (no caso ele se referia à media art) articula "alternativas críticas aos modelos normativos da sociedade atual". Atual em qualquer tempo cronológico, qualquer período histórico, portanto estamos falando sempre de arte contemporânea. (grifo meu) .......... O sentido da alternativa crítica em relação aos sistemas é 'natural' do ponto de vista da arte, não por razões 'romantico-revolucionárias', mas pelo próprio mecanismo humano de percepção, onde informação é 'qualquer diferença que faz diferença'. " parece que neste momento a arte em contextos midiáticos articula esta passagem, constrói pontes para o futuro.
No contexto sócio-político e cultural contemporâneo, as identidades locais se reconfiguram em tensão com os fluxos globais. Inserida neste processo, a arte eletrônica participa como um campo aberto à experimentação e expressão de novas formas de subjetividade. Como essas questões se manifestam em seu trabalho?
Todo o modo do trabalho trata disto porque o meio é baseado em colagens, fusões, entre-tudo, interstício, etc. o tipo de câmera, de luz, a qualidade ou as características da imagem; o tratamento de pós-produção, enfim, todo o processo informa sobre quem faz o trabalho, de onde ele vem. acho inevitável que o que se vive seja manifesto no nosso trabalho. e hoje vivemos em estado de permanente hibridização. o que vai passar das características 'originais' locais é o que tiver força para se perpetuar - bem assim, Darwin... ehehe mas, objetivamente, no caso dos meus trabalhos aqui do festival eles tem uma estética predominantemente barroca - entao isso é uma das características da cultura local que transpira no que eu faço.
Atualmente, verifica-se nas culturas locais o desafio de reinventar as memórias pessoais e coletivas, sem deixar que elas se esvaziem frente aos fluxos de comunicação global. A seu ver, como este desafio se traduz nas experiências da artemídia?
Isso acontece sempre que um artista interessado nisso tem acesso aos meios de produçao. o trabalho que resulta dai é a tradução ou uma das possíveis chaves...
No contexto de abordagem dos meios eletrônicos-digitais , interessa-lhe as questões do corpo? Como o corpo aparece em sua obra?
O corpo me interessa porque é interface para tudo. o que me interessa é manter as qualidades sensoriais e agregar novas possibilidades - novas experiências - um corpo n-sensorial sempre, um espaço n-dimensional n-possibilidades de ser. este tipo de relação se evidencia nas instalações, mais do que nos vídeos monocanal ou nos web sites, aí o que aparece é o corpo social.
Associação Cultural Videobrasil
Texto crítico Solange Farkas, 2024
O trabalho de Simone Michelin estende-se por mais de quatro décadas e inclui vídeos, fotografias, instalações audiovisuais imersivas, arte sonora, projetos online e de realidade virtual e performances. A sua obra extensa e diversificada explora a intersecção entre arte, ciência e tecnologia. No entanto, a sua abordagem não glorifica a tecnologia nem aceita o seu papel na sociedade como dado. Pelo contrário, Michelin aborda explicitamente as dimensões políticas, bem como os mecanismos de poder e controle, que definem as realidades tecnológicas contemporâneas.
Rompendo com as narrativas convencionais, a artista, oriunda do sul do Brasil, baseia o seu trabalho nas realidades específicas do país - por sua vez, parte do Sul Global, onde o acesso aos bens de consumo é desigual e antidemocrático. A partir desta perspetiva geopolítica, Michelin situa a sua arte na esfera pública, envolvendo-se com o tecido social e criando um diálogo matizado entre corpo e linguagem, local e global, individual e coletivo. Assim, a potência do seu trabalho reside na utilização da “arte tecnológica” como um campo de ação crítica e não de mera contemplação - levantando questões, realçando incertezas e impactando e moldando a forma como os espectadores interagem e vêem o mundo à sua volta.
Integrante da segunda geração da videoarte brasileira, Simone Michelin iniciou sua carreira no final dos anos 1970, estabelecendo sua reputação na década seguinte com trabalhos que integravam vídeo, fotografia e intervenções em espaços públicos. Ganhou reconhecimento com a instalação imersiva Prato Feito (1984), realizada num restaurante, onde abordou questões e temas relacionados com o panorama sociopolítico dos últimos anos da ditadura brasileira. Mais tarde, embarcou no projeto de longa duração A Noiva Descendo a Escada, desenvolvido entre 1989 e 2011, utilizando diversos meios para explorar ironicamente o papel da mulher na história da arte.
Michelin continuou a incorporar tecnologias emergentes na sua prática, aprofundando a sua investigação sobre as relações entre corpo, espaço e mídia. Um exemplo notável é ADA - Anarquitetura do Afeto (ADA - Anarchy of Affection, 2004), uma peça que desafiava os sistemas de vigilância contemporâneos, filmando o interior do espaço de exposição e transmitindo-o ao vivo para a rua, transformando assim o “circuito interno” das câmaras num “circuito externo”. Na década de 2000, a artista participou com destaque de três edições do Festival Videobrasil, apresentando obras que examinavam criticamente temas como o consumismo e a comercialização da internet.
Entre suas obras que abordam questões sociais contemporâneas urgentes está a instalação imersiva Qualia (2010), que utilizou tecnologia de ponta para denunciar a violência do Estado e a poderosa influência do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Nos últimos anos, a artista voltou seu foco para as questões indígenas, abordando a violência infligida aos povos indígenas em vídeos e instalações como Tiam(A)tu(2023) e Caiçara Vermelha (2022).
Simone Michelin é doutora em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo completado estudos avançados na Temple University e na University of Plymouth. O seu trabalho foi exposto no Museu de Arte do Rio, na 10ª Bienal de Havana, na 7ª Bienal do Mercosul, na Tate Modern e no ZKM, entre outros.
Fonte: Biografia expandida do programa Vivendo com dois cérebros: Mulheres nas novas mídias artísticas, décadas de 1960-1990, da plataforma AWARE: Arquivos de Mulheres Artistas, Pesquisa e Exibições.