Entrevista Marcio Harum, 2011

1- Pensando em onde moro: você poderia falar sobre o convite que recebeu há alguns anos para produzir uma nova obra (Double Voyage) em São Paulo, para a 27a Bienal de São Paulo (2006), e como isso influenciou sua carreira? O que estava acontecendo com você na época?

Quando Lisette Lagnado me convidou para criar uma nova obra para a Bienal, lembro-me de pensar nas possibilidades de trabalhar em São Paulo. Era muito mais interessante pensar um projeto diretamente relacionado ao ambiente imediato do que importar uma obra de outro lugar.

Queria desenvolver um projeto que tivesse conexões com Sydney, minha cidade natal, e São Paulo. As duas conexões em que pensei depois de visitar São Paulo para pesquisar eram altamente discursivas, mas sem dúvida fortes – skate e cultura transexual. Eu tinha interesse no skatista Oggy de Souza já alguns anos antes de ser convidado por Lisette para ir ao Brasil, e essa parecia a oportunidade perfeita para trabalhar com ele. Também estava muito interessado na cultura transexual e nas diferentes formas de dança e performance erótica. Havia uma grande conexão entre essa cultura no Brasil e na minha cidade natal, Sydney, onde há uma cultura transexual muito forte. Pensei em explorar esse interesse também, juntamente com a forma única de Oggy andar de skate (ele não tem movimentos nas pernas e criou uma maneira original de andar de skate usando seu tronco).

Meu trabalho estava tomando a forma de um retrato duplo, uma investigação sobre indivíduos que forçavam os limites de seus corpos ou, melhor dizendo, "forjavam seus corpos no fogo da sua vontade". Ambos eram indivíduos muito extremos e apaixonados, que estavam se transformando em outros e, nesse sentido, o projeto é bem romântico.

Após pesquisar e encontrar a outra protagonista de Double Voyage, Grace O'Hara, voltei a São Paulo para gravar o trabalho.

Naquela época, eu estava pensando no corpo e em seu potencial de recriar ou transformar o ambiente. Fazia sentido gravar Oggy diante das formas imponentes e sensuais criadas por Niemeyer para o Parque do Ibirapuera e, em seguida, filmar Grace fazendo pole dance em uma boate – lembrando as estruturas e molduras com que Francis Bacon ambientava suas figuras arfantes e carnudas.


2- Após sua série de vídeos Apologies 1-6 (2007-2009) a paisagem do 'outback' australiano ficou mais presente e intensa em sua obra. Por que a necessidade pessoal-artística de 'voltar pra casa'?

De 2005 a 2007, trabalhei bastante em projetos fora da Austrália (entre eles o que acabei de mencionar em São Paulo) e, até então, tinha me concentrado principalmente no espaço urbano. No entanto, um trabalho meu em vídeo, Storm Sequence, do ano 2000, foi voltado para a interseção entre os ambientes urbano e natural, e foi esse trabalho que me levou a pensar em uma paisagem distintamente australiana. Storm Sequence retratava um local tipicamente australiano, mas em condições sensuais. Assim como os brasileiros, nós australianos celebramos a cultura da praia, mas esse vídeo descreve um forte temporal na praia. Pensei em trabalhar com outros lugares da Austrália que me dessem muita liberdade para brincar – obras que poderiam reforçar estereótipos, mas também questioná-los.

Apologies 1-6 foi motivado pelo interesse em explorar uma região famosa (e até mítica) do interior australiano, trabalhando no deserto, ou 'outback'. Eu não queria afirmar minha autenticidade só porque nasci na Austrália. Na verdade, até 2007 eu nunca tinha entrado no deserto, só nas redondezas. Eu era como a maioria dos australianos, morava numa cidade litorânea, e só fui pensar na minha relação com o deserto australiano através desse projeto. Era um lugar cercado de mito, uma miragem de si mesmo! Por isso, apesar de eu nunca ter ido ao deserto, tinha uma sensação estranha de conexão com o lugar, simplesmente por causa de todos os filmes a que assisti sobre ele no cinema e na TV. Todas essas imagens formaram minha pré-concepção do 'outback'. Assim, quando fui ao deserto, decidi criar uma obra que reconhecesse a influência do cinema sobre minha ideia desses lugares. A série Mad Max, de George Miller, teve um impacto enorme em mim quando adolescente; por isso, a estética de Mad Max foi citada de forma tão clara e direta nessa obra.

Embora seja forte, o visual de Mad Max foi apenas uma referência em Apologies 1-6. Na verdade, estava interessado em representar o deserto de uma maneira completamente diferente daquela vista nos filmes da série Mad Max ou em qualquer filme popular. Meu trabalho foi apresentado em câmera lenta e com tomadas longas, diferentemente da edição veloz e furiosa do cinema popular. No entanto, para mim era importante manter essa referência forte a filmes específicos. O deserto foi uma experiência incrível – quando fui trabalhar lá pela primeira vez, eu sabia que teria que realizar vários projetos interligados. O deserto é um ambiente para o qual sempre volto, e não só para obter inspiração. O espaço molda meu trabalho de forma direta, bem como a cultura midiática que o cerca.


3- Fale da ideia de 'pintura móvel' que aparece em seu trabalho de vez em quando.

Acho que o conceito de pintura móvel pode ser apropriado para algumas formas de videoarte, e certamente pode ser aplicado a muitos de meus trabalhos. Em todo esse campo, parece haver uma troca livre entre cinema, pintura, instalação, imagens geradas por computador, e eu adoro essa liberdade e esse alcance. Poderia descrever meu trabalho como pintura móvel em função de todas as referências sutis e explícitas à história da arte e da pintura em particular, mas acho que também pode ser descrito como cinema lento ou arquitetura "não congelada" (numa brincadeira com a citação de Goethe).

Assim como muitos outros videoartistas, não sinto necessidade de competir com o modelo hollywoodiano de imagem de alta definição. Ainda trabalho com câmeras de vídeo domésticas (que hoje em dia, é claro, são de alta definição), mas o mais importante para mim é esse acesso aos meios de produção. Em termos de qualidade de imagem, interesso-me pelo texto de Hito Steyerl chamado "In Defense of the Poor Image" (Em defesa da imagem ruim). A baixa resolução, ou imagem ruim, faz parte de nossas vidas (e certamente de nossas vidas on-line) tanto quanto as imagens de cinema de alta resolução. Esse tipo de imagem também representa um desafio interessante ao modo de produção de Hollywood. Tenho interesse em videoarte segundo a análise da 'imagem ruim' de Steyerl. Em alguns casos, meu trabalho é ao mesmo tempo de baixa e alta definição. Quando se trata de material gravado com equipamento doméstico, sinto que minha prática é muito próxima do uso mais geral do vídeo no mundo atual. Isso me faz pensar nos escritos de Boris Groys, que não faz distinção clara entre a atividade considerada como sendo de vanguarda e os milhões de usuários do Facebook e do YouTube. Quando John Ruskin e, posteriormente, Joseph Beuys insistiram que 'todos somos artistas', as primeiras mídias que adotamos (evidenciadas pela internet) foram fotografia e vídeo (a performance também pode ser incluída).

A popularidade de uma mídia como a pintura também está se igualando à dos produtos eletrônicos e à diversão da reprodução de imagens e vídeo, aliada a sua transmissão. Isso começou à medida que a pintura se distanciou da arquitetura e aproximou-se de suportes mais móveis, como as molduras. Neste período de aceleração histórica, o vídeo é uma mídia muito rápida, e sua aplicação não se restringe às artes plásticas!


4- Qual seria o projeto de seus sonhos para ser realizado no Brasil?

Essa pergunta é extremamente difícil! Se não tivesse limites ou restrições, adoraria realizar uma série de trabalhos no Brasil. A obra seria principalmente em vídeo, mas também teria elementos de arquitetura. Gostaria de criar uma obra voltada para a maneira como os corpos reagem a diferentes ambientes no país. Um dos ambientes onde eu teria muito interesse em trabalhar seria Brasília. Gostaria muito de gravar um vídeo com manobras de skate de altíssimo risco na capital brasileira. Acho que Niemeyer criou uma pista de skate sem saber, e gostaria de trabalhar em Brasília durante um período longo de tempo, com uma comunidade de skatistas locais e internacionais. Seria uma continuação do trabalho que produzi em São Paulo com Oggy de Souza. Mas, é claro, eu também tenho interesse em formas de movimento como a capoeira, a dança e a arte de rua, surfe, parkour, escalada livre, trekking de sobrevivência etc. Gostaria de estudar a relação que os corpos têm com uma ampla variedade de espaços no Brasil.

Seria uma obra extensa, mas por causa do tamanho do país, e da diversidade e do volume de atividade nesses setores, só poderia me concentrar em fragmentos. Seriam fragmentos maravilhosos, com certeza!