Ensaio Rodrigo Alonso, 09/2006

Andrés Denegri, da distância à proximidade

O universo audiovisual de Andrés Denegri é construído, de um modo geral, a partir do encontro de elementos opostos: por um lado, nos deparamos com imagens distantes, estranhas, esquivas e, por outro, sentimos uma aproximação íntima e pessoal com essas imagens. Em cada uma de suas obras, a tensão criada a partir dessa oposição se resolve de diferentes maneiras. Às vezes, a distância se transforma em voyeurismo e a intimidade, em confissão. O estranhamento às vezes cai em um certo hermetismo, inclusive quando são trabalhadas situações cotidianas ou dados autobiográficos do artista. Seu gosto pelos recortes e detalhes - que escapam à totalidade do campo visual - costuma ter a contrapartida na origem pessoal do material audiovisual trabalhado, na tradução da vida privada do próprio artista.

Esse modo de composição manifesta-se desde seus primeiros trabalhos. Yo estoy aquí, colgado de la ventana (1997), por exemplo, reúne imagens de uma garota que, sem perceber, é observada à distância - provavelmente de uma janela, como sugere o título -, com um poema de amor que se desenrola através de uma simples animação. As imagens da garota ocupam pequenas partes da tela, porém, o enquadramento evidencia uma distância notável entre ela e a câmera que a registra. Essas imagens parecem ser o resultado de uma situação de espionagem, de um autêntico ato de voyeurismo que tem como cúmplice o espectador. Por outro lado, o poema expressa um alto grau de intimidade, não apenas pelo conteúdo, mas principalmente por ser manuscrito e em primeira pessoa. A distância e a proximidade se conjugam nesta primeira obra, e serão a resposta para toda a obra do artista. 

III Momentos (1998) baseia-se, novamente, numa paciente tarefa de voyeurismo. A obra apresenta três registros de pessoas anônimas, capturadas através das janelas abertas de seus lares. Aqui, a distância das pessoas observadas manifesta-se na ampliação da trama eletrônica que praticamente dissolve as figuras. O uso exagerado do zoom transforma a superfície da imagem numa retícula vibrante e luminosa. A ausência de som concentra a atenção, induzindo a uma percepção contemplativa, meditativa e intensa. A escassez de dados sobre o que acontece aumenta o interesse, multiplicando as situações possíveis. Esse interesse surge também do estranhamento de ações cotidianas e banais, que se revelam lentamente, criando um suspense ausente da realidade. O enquadramento extrai uma narrativa que não está lá, constrói um narrador/olho-de-câmera presente e ativo, e sugere, definitivamente, uma reflexão sobre a produtividade do ato de olhar. 

Uma das grandes qualidades da obra de Andrés Denegri é sua capacidade de gerar um relato a partir de elementos mínimos. Cuando vuelvas vamos a ir a comer a Cantón (2001) é talvez sua expressão mais bem realizada. O vídeo toma como base um pequeno grupo de fotografias, re-enquadradas e revistas obsessivamente, mas sem jamais se revelar por completo. Assim, o suporte estático converte-se em dinâmico, e seu lacônico mimetismo dá vida a uma narração. O som é fundamental nesta obra: trata-se da voz do artista que sussurra palavras a uma pessoa, que supomos presente nas fotografias, ainda que impossível de identificar. O relato oral é profundamente íntimo e emotivo; é uma confissão de amor, fala de encontros e despedidas. Mesmo que nunca se ancore nas imagens, a necessidade de atribuir um sentido à obra gera a conexão sonora e visual. A convenção cinematográfica que une imagem e som funciona como garantia única de uma possível relação. Uma vez não admitida, a obra se rompe em fragmentos irreconciliáveis.

Denegri gosta de forçar essa relação entre imagem e som, principalmente em situações onde a associação narrativa parece evidente. Se observarmos seus vídeos com atenção, perceberemos que estes partem com freqüência de um rompimento, em geral não disfarçado, entre o som e a imagem. Na maioria dos casos, as vozes em off que conduzem os relatos encontram-se num primeiro plano, muito próximo, contrastando com imagens geralmente longínquas, disfarçadas ou fora de foco. É estabelecido, desta maneira, uma espécie de efeito Kuleshov entre os registros sonoro e visual: a proximidade produz um sentido que parecia ausente nas partes isoladas. Como conseqüência, imagem e som gozam de uma certa autonomia que lhes permite uma relação de forma não unívoca.

Podemos encontrar esse mesmo procedimento em Uyuni (2005). Aqui, as imagens mostram ruas desertas de uma pequena cidade sem identificação, mas que supomos ser a cidade boliviana que dá título ao vídeo. As tomadas são longínquas, borradas e com um tremor de câmera quase permanente, ao que se soma um efeito de defasagem, também contínuo. Sobre as imagens, um casal fala em off, num plano sonoro próximo. Trata-se de viajantes instalados em Uyuni, que discutem suas diferentes percepções acerca do lugar: ele parece estar tranqüilo ali; ela, entediada. A discussão constrói uma história sobre algumas imagens tratadas (originalmente registradas em Super 8), porém de um ponto de vista plástico. A convenção relaciona imediatamente as palavras dos viajantes com o lugar, porém, o casal fala de um hotel, de restaurantes e militares que nunca vemos. A conexão entre palavras e imagens, mesmo que funcione do ponto de vista narrativo, não está estritamente assegurada na construção sintática da obra.

Essa atitude sugere, nas entrelinhas, o suposto caráter indicial do vídeo. Segundo Rosalind Krauss, o vídeo compartilha com a fotografia o fato de ser um índice; isso significa que depende de uma realidade a qual se refere, por proximidade. Denegri questiona essa declarada dependência postulando, em contrapartida, um princípio de incerteza, ao obscurecer o vínculo entre o registro eletrônico e a realidade sobre a qual opera. Esse procedimento se repete num grupo de obras de cunho documental. Inclusive quando recorre ao registro direto, o artista consegue desarticular a relação imediata entre o que vemos e o fato documentado, geralmente através de pontos de vista forçados ou pouco usuais. O vídeo Luján (2004) é paradigmático nesse sentido. Enquadramentos inusitados e tomadas excessivamente longas desviam a atenção do acontecimento registrado - uma procissão religiosa - para o próprio acontecer do vídeo. Boa parte das ações importantes tem lugar fora do alcance da câmera; como espectadores, só vemos pistas que nos obrigam a completar o que a imagem é incapaz de transmitir na sua totalidade. Aqui manifesta-se outro dos elementos-chave da linguagem formal dos vídeos de Andrés Denegri: seu eterno retorno à metonímia, sua predileção por construir o relato audiovisual a partir de fragmentos que remetem a um todo ausente, que o espectador deve completar. 

Denegri exige muito do seu público. Não só pede que preencha as lacunas voluntárias das suas histórias, como, às vezes, força os níveis de informação, exigindo sua ativa participação na organização discursiva. Aqui, os procedimentos centrais são a acumulação e a sobreposição. Explorando ao máximo os diferentes canais de informação do vídeo (imagens, sons, textos, composição visual, intervenção gráfica, efeitos de edição, etc.), o artista oferece ao espectador uma estrutura audiovisual complexa, rica em múltiplas leituras, que não se cristaliza num relato unificado.

É a partir dessa perspectiva que Denegri aborda seu documentário sobre o artista Oscar Bony (Acerca de Bony, 2005), uma figura-chave da arte argentina da década de 1960, com quem conviveu alguns anos antes de sua morte. À maneira de Godard em La Chinoise ou Histoire(s) du Cinéma, Denegri sobrepõe diferentes registros de imagens, sons e textos, incentivando os choques, as redundâncias, as contradições. O resultado é uma espécie de palimpsesto no qual convivem relatos biográficos e autobiográficos, reflexões estéticas e filosóficas, opiniões e conceitos, veiculados através de uma colagem de situações cotidianas, urbanas, familiares e de trabalho. Uma complexidade compositiva que ecoa a complexidade da vida de Bony, um artista polêmico e controverso, às vezes marginalizado, mas, sem dúvida, fundamental. 

Nos últimos anos, Andrés Denegri voltou-se para a produção de um grupo de obras totalmente autobiográficas. Partindo de fotografias e filmes caseiros, o artista se entregou à tarefa de reconstruir sua própria vida, marcada por uma ambígua relação com seu pai e seu crescimento durante a última ditadura militar argentina. As duas obras produzidas até agora (o vídeo El ahogo e a videoinstalação Un martes, ambos de 2006) são algo herméticas, mas conseguem transmitir um efeito perturbador. Como em toda sua produção, o sentido definitivo fica por conta do espectador. Aqui, como sempre, recorre à sua imaginação, mas também à sua capacidade de estruturar dados que, à primeira vista, parecem desconexos, ou até irrelevantes. 

Apesar da sua juventude, Andrés Denegri é um dos autores mais conseqüentes e pessoais da videoarte argentina. Transita com fluidez entre a ficção e o documentário, o relato biográfico e a experimentação. Sua obra demonstra um conhecimento profundo do meio audiovisual, de suas capacidades estéticas e de suas técnicas de construção de sentido. Mas, fundamentalmente, Denegri encontra no vídeo um meio de aproximação das pessoas e do mundo, uma ponte para a interioridade e os afetos, capaz de transformar a distância midiática em proximidade emocional.

Entrevista Eduardo de Jesus, 09/2006

A questão do espaço aparece como um direcionamento forte na construção de trabalhos como Cuando vuelvas vamos a ir a comer a Cantón, III Momentos e Yo estoy aquí, colgado de la ventana. Existe nas suas obras a intenção de pensar questões típicas do espaço contemporâneo?

Esses vídeos não tiveram como primeira intenção refletir sobre a problemática do espaço contemporâneo, esta nunca foi uma abordagem anterior, tendo como perspectiva o vídeo. Porém, é uma questão que me interessa particularmente, por isso é natural que se construa como um dos assuntos tratados na maioria dos meus trabalhos. Acredito que os meus vídeos enfrentam antes o tema da cidade, talvez um problema mais moderno que contemporâneo. Isso também aparece como uma idéia forte em Uyuni e é a base de Duchamp: Buenos Aires no existe, onde é construída uma cidade atemporal no olhar criador de Marcel Duchamp, propondo um vínculo direto entre a produção artística do francês nos meses em que viveu em Buenos Aires e as características urbanas dessa cidade. 

As grandes cidades me parecem muito ricas esteticamente, especialmente à noite. No texto do catálogo da mostra Sortilegio, eu explicava que, quando criança, me sentava na escuridão e olhava um aquário por horas e como esse aquário foi substituído por uma televisão e depois por uma janela, de onde via Buenos Aires: “...À minha frente tenho dezenas de janelas. O retângulo iluminado recorta-se num fundo neutro. Riem, não posso escutá-los. A sensação é semelhante à da infância. Eles sabem que estou no escuro. Percebem que estou em cada janela em frente à deles. Inclusive posso me ver na penumbra vizinha. Encaro Buenos Aires como uma grande videoinstalação, onde os monitores estão repletos de peixes. Janela-televisão. Janela-aquário. Indiferente”*. Este texto acompanhava Ventanas, uma versão de III Momentos, uma videoinstalação que justamente foi pensada para ser projetada sobre as paredes laterais dos edifícios, que geralmente destinavam-se a publicidade, criando um vínculo entre imagens cotidianas, em alguns casos bastante íntimas, com o espaço público. 
 

III Momentos pode tratar-se de breves cenas da vida de outros a partir das quais podemos gerar um mundo. Podemos, nas cidades, encontrar-nos rodeados de ficções em permanente construção. Só vemos uma cena, o resto é “desenquadre” (Bonitzer), se o entendemos assim, potencialmente isso nos transforma de observadores em criadores. É aí que esse trabalho atravessa uma questão fundamental do espaço urbano, estamos sempre perto do outro, podemos vê-lo. Cuando vuelvas vamos a ir a comer a Cantón é uma carta de amor. O espaço tratado nele é a distância. Ela está longe, ele sente falta dela. Tenta-se uma aproximação no uso da memória através das quatro fotos com as quais o vídeo foi feito. O espaço se fragmenta, mas também, o corpo: é uma recordação reconstruindo sensações. E o referencial espacial concreto é Cantón, um restaurante de comida típica chinesa, típico de Buenos Aires. 

Yo estoy aquí, colgado de la ventana foi meu primeiro vídeo e devo confessar que a fragmentação e o barroquismo nele talvez tenham muito a ver com o deslumbramento provocado nos anos 1990 pelo descobrimento do Adobe Première. Isso somado a uma importante influência não muito filtrada de alguns grandes videomakers como Larcher, Toti ou Greenaway. Eu entrava em êxtase com esses vídeos, e talvez entendesse que isso estivesse relacionado à manipulação excessiva da imagem. De todas as formas Yo estoy aquí...consegue construir uma certa ficção que atravessa a questão das distâncias entre os corpos no espaço urbano. Ele se desfaz de desejo por ela, está tão perto que pode ver como se despe ao chegar em casa, inclusive é testemunha do momento em que tem relações sexuais com outro. Ela vive na janela da frente, porém é inalcançável. 

Como você chegou à percepção do espaço que está presente em Uyuni? A obra nasceu vídeo ou instalação?

Tinha estado viajando pelo norte da Argentina e grande parte da Bolívia, durante todo esse percurso não tirei a câmera a não ser para guardá-la entre as coisas que levava na mochila quando ia de uma cidade à outra. Para a cidade de Uyuni cheguei já planejando a volta, só para passar uma noite e pegar o trem que me levaria até Villazón. Mas o trem nunca saiu, uns mineiros, como protesto, cortaram as vias. Toda manhã caminhava até a estação onde me informavam se o trem sairia aquela tarde ou no dia seguinte. Mas o trem nunca saiu, então depois de uns dias tive que deixar Uyuni em uma caminhonete, cheia de gente e de coisas, que prometia chegar, por estrada nenhuma, até outra cidade de onde eu poderia continuar minha viagem.

Durante os cinco ou seis dias em que estive nessa cidade, caminhei. Não entendia a lógica do lugar: ruas desproporcionalmente compridas onde não havia tráfego algum. Só superei o juízo sobre a funcionalidade do espaço enquadrando essas avenidas, convertendo-as em paisagens. Então, quando se transformou em imagem, a incoerência do espaço de Uyuni mostrou-se esteticamente valiosa. Dediquei algumas tardes a registrar as esquinas de Uyuni, imagens que, ao término da viagem, ficaram guardadas por anos, até que eu escrevi um texto ficcional que relata um diálogo entre um casal que passou por Uyuni. Cada um constrói uma cidade totalmente diferente. Os formatos de imagens em movimento correspondem a dois pontos de vista: ele e ela, vídeo e Super 8. Na imagem fílmica e na eletrônica tenta-se gerar o mesmo enquadramento, mas é impossível.

Incompatibilidades de proporção de quadro, velocidade de duração, profundidade focal geram, a partir de um mesmo espaço, representações díspares. Essas duas imagens convivem durante todo o vídeo, variando seus níveis de opacidade. Em alguns momentos predomina o cinema, em outros, o vídeo, e existem casos em que é difícil identificar na imagem o que é próprio de cada suporte. Assim se constrói o espaço com um olhar múltiplo; é ao mesmo tempo um e muitos.
 

Uyuni nasceu como vídeo, logo a possibilidade de voltá-lo para o espaço potencializou a proposta da leitura múltipla que constrói o lugar. A técnica de trabalhar imagem fílmica e eletrônica para produzir uma mesma imagem duplica-se em duas telas. O que antes se podia entender como o olhar dele ou dela, agora nos diz que cada olhar é diferente em si. Propõe-se que um espaço, como texto, não é único, sequer para o mesmo observador. 

No catálogo da sua exposição com Gabriela Golder e Silvia Rivas em Buenos Aires, você fala do espaço como ideologia. Essa idéia aparece mais em Uyuni, a instalação, ou no vídeo? Ou trata-se de uma característica inerente ao seu modo de registrar as imagens?

Entender a ideologia como um espaço que os homens habitam e de onde pensam, e não como algo pensado por eles, é um modelo proposto por Paul Ricoeur, autor em que cheguei através de um texto de Graciela Fernandes Toledo. É interessante relacionar essa idéia com escritos de Frederic Jameson, onde ele diz que: “O espaço - o hiperespaço pós-moderno - conseguiu transcender finalmente as capacidades do corpo humano individual para situar-se, organizar perspectivamente seu entorno imediato e localizar cognitivamente sua posição em um modelo externo suscetível de ser mapeado”. Essa impossibilidade de se localizar me impede de ter consciência da minha ideologia; não sei a partir de onde penso. Assim, é fácil entender o capitalismo como a natureza do ser humano, já que é a origem da turbulência que impede a geração de referências espaciais, impondo-se como o único espaço possível. 

O lugar de onde falo ou penso é também a partir de onde vejo e crio uma imagem. Para mim, como realizador, ter isso presente é fundamental, pelo que digo, pelo que faço com a imagem do outro. Estudei cinema, me ensinaram como se faz um filme, foi doloroso o processo de enfrentar esse modelo. Primeiro, entendi que não havia uma linguagem cinematográfica, mas sim um modelo de produção. Depois, compreendi que esse modelo não era como fazer e sim de onde fazer: o modelo industrial de produção cinematográfica é uma situação ideológica. Prefiro me manter longe dela.

Em Uyuni, a questão do espaço está presente como temática; de onde se mostra esse espaço a cada um dos protagonistas, o que está antes da imagem, é a sua ideologia. Ver a partir de diferentes lugares supõe ver diferentes coisas, isso acontece com os personagens de Uyuni, o que é gerado pelo seu olhar não é a sua ideologia, senão o resultado dela. 

Tanto no seu trabalho mais recente El ahogo, como em outros, como Cuando vuelvas vamos a ir a comer a Cantón, a fotografia serve de ponto de partida para a construção da imagem em movimento. Como você vê esse cruzamento entre meios de captação de imagens em seu trabalho?

Uso a fotografia para refletir sobre o passado. A fotografia tem a ver com a memória de uma maneira muito diferente da do vídeo, muito mais contundente e profunda. É uma marca cultural que parece sua natureza. “A fotografia é uma evidência extrema, carregada, como se caricaturizasse não a figura que ela representa (é exatamente o contrário), senão sua própria existência. A imagem, diz a fenomenologia, é o nada do objeto. Agora, bem, na fotografia, o que estabeleço não é somente a ausência do objeto; é também, através do mesmo movimento, a igualdade com a ausência, que esse objeto tenha existido e que tenha estado ali, onde eu o vejo.”** 

Em El ahogo trabalho com fotos e Super 8; esse último formato, mais que memória, é memória dos anos 1970. Isso é fundamental para o tema tratado, porque ao estar relacionado com as fotos, estas, além de serem recordações, tomam o valor de documento histórico. Meus vídeos têm um forte componente narrativo e cada uma dessas informações dadas pelo suporte é parte constitutiva de um possível relato. Em Cuando vuelvas...acontece algo semelhante, como explicava antes, as imagens, as fotografias, são recordações atualizadas. 

Acredito que esse é o valor que encontro na utilização de diferentes suportes, elementos culturais que entendemos como próprios de cada tecnologia que, sem serem as únicas possibilidades que existem na combinação de diferentes meios, me servem para dar pontos de apoio onde construir um relato absolutamente atomizado. 

Poemas, textos plotados, falas que impõem o ritmo da edição. Qual é a importância do elemento texto na sua obra?

O texto é fundamental em alguns dos meus trabalhos, mas sempre num vínculo íntimo com a imagem; procuro que o trabalho terminado seja plenamente audiovisual, sem preponderância do elemento texto. Muitas vezes o texto cumpre a função da música. Nas propostas com uma estrutura totalmente livre, muitas vezes a música, como o texto, resolve o grande desafio de ir adiante, de avançar. Talvez por isso nunca use música nos meus vídeos, a música é uma expressão artística muito forte que, em muitos casos, submete a imagem, convertendo-se num esqueleto invisível que sustenta todo o trabalho, e é o único elemento que sustenta o avançar. Minha intenção é ter essa problemática muito presente quando trabalho nos meus vídeos. Em Cuando vuelvas...a imagem segue o ritmo da voz, porém acredito que se fundem em uma mesma experiência. O que fala, relembra, e a imagem se aproxima de sensações táteis relacionadas a essa memória, essa imagem háptica (Deleuze), adquirindo um valor que constrói junto com o texto, no mesmo nível, demandando uma audiovisão (Chion). Isso também acontece em Uyuni, a imagem diz tanto ou mais que a palavra, a imagem fala daqueles que escutamos falar, e o faz em nível reflexivo. Em nenhum caso o texto precede a imagem. Todos os meus trabalhos começam a partir da imagem, esse é o primeiro passo, o encontro com algum espaço (Uyuni), alguns corpos (III Momentos), uma recordação (Cuando vuelvas...), um gesto criador (Instante Bony), uma sensação física relacionada a uma história pessoal (El ahogo) que se transforma em imagem; em alguns casos, a partir dessas imagens surge, sempre depois, um texto.

Realizadores como Ivan Marino, Mariela Yeregui, Gabriela Golder, Silvia Rivas, Jorge La Ferla, Gustavo Galuppo, Marcello Mercado e muitos outros constituem uma potente cena de arte eletrônica na Argentina. Como curador e diretor de um centro de fomento, como você enxerga essa produção? Quais são suas linhas de força e suas características específicas?

Acredito que a produção argentina de vídeo é extremamente heterogênea. Essa diversidade, que vejo como algo muito positivo, impede-nos de fazer juízos generalizados. Deveríamos tratar esse assunto por casos e para isso precisaríamos de muito mais espaço do que estas linhas. Talvez, devesse aproveitar este lugar para esclarecer que, apesar de encontrar alguns realizadores com propostas muito interessantes, não existe uma grande produção sólida. Existem muitos vídeos, mas poucos se apresentam como resultado de um processo de criação reflexivo e consistente. A cena jovem é a mais deficiente, ao que parece. Eles não conseguem processar a MTV, e a estética “Flash” os tira de lado. A maioria dos alunos chega à universidade totalmente indefesa frente à imagem, é integralmente vulnerável ao discurso midiático corporativo, e não tem capacidade de gerar nenhum nível de enfrentamento crítico em relação a ele. Depois de um tempo de faculdade essa situação não varia muito. Dez anos de "menemismo" deixaram sua marca [Denegri se refere aos dois governos do presidente argentino Carlos Menem]. E isso se reflete nos trabalhos. Acredito que, na Argentina, devemos ficar muito atentos a esse fato alarmante e trabalhar para formar criadores livres antes de empregados úteis.


* Denegri, Andrés IN Rizzo, Patrícia (curadora), Sortilegio. Buenos Aires: Fondo Nacional de las Artes, 2001.
** Barthes, Roland, “La câmara Lúcida”. Buenos Aires: Paidos, 2003.

Biografia comentada Eduardo de Jesus, 09/2006

Andrés Denegri (Buenos Aires, 1975) integra a potente cena argentina de arte eletrônica, ao lado de artistas como Marcello Mercado, Mariela Yeregui, Gabriela Golder, Ivan Marino, Gustavo Romano e Gustavo Gallupo, entre muitos outros. A situação de destaque da arte eletrônica do país se deve não só à qualidade dos trabalhos, mas à incansável ação de curadores, professores e teóricos como Jorge La Ferla, Graciela Taquini e Rodrigo Alonso, que vêm mapeando a produção local em mostras e publicações. 

Como outros artistas argentinos, Denegri transita entre as várias possibilidades do ambiente audiovisual. Graduado em direção cinematográfica pela Universidad del Cine, divide-se entre uma intensa produção artística (de vídeos, instalações, documentários e programas experimentais de televisão; como VJ, ligado ao grupo eletrônico Tekhne), atividades acadêmicas e curadorias. Também atua no fomento da produção independente em vídeo e novas mídias na América Latina. Com Gabriela Golder, coordena o Centro de Investigação para o Desenvolvimento da Criação Audiovisual - Continente, ligado à Universidad Nacional de Tres de Febrero. 

As experiências voltadas para o desenvolvimento da produção audiovisual começam cedo na trajetória de Denegri, entre 1997 e 2002, quando atuou como coordenador da área de cinema, vídeo e multimídia do Centro Cultural Ricardo Rojas. Sua própria produção nasce ainda antes de finalizar a graduação. Desde seus primeiros trabalhos, como Yo estoy aquí, colgado de la ventana (1997) ou Cuando vuelvas vamos a ir a comer a Cantón (2001), destaca-se pela singularidade no uso dos recursos de edição. Muitas vezes voltados para uma pesquisa formal, que toma como ponto de partida a fotografia ou mesmo a imagem quase parada, como se viesse de uma câmera de vigilância, os vídeos de Denegri restituem o movimento às fotografias por meio da edição, gerando com isso novos sentidos.

Em Cuando vuelvas..., as fotografias são exibidas no vídeo por movimentos que escondem um rosto, enquanto a locução sussurrada de uma carta de amor amplia os sentidos da imagem, tensionando o íntimo e o público. A situação de confronto será retomada em outros trabalhos, que sobrepõem de diversas formas próximo e distante, público e privado, real e fantasia. Em Acerca de Bony (2004), sobre o artista Oscar Bony, figura central na produção artística argentina dos anos 1960, mais uma vez imagens quase paradas, associadas a ruídos (de tiros, de projeção) e a uma série de contradições e paradoxos constroem uma situação complexa, muito sintonizada com o universo de Bony. 

A obra também é exemplar do forte vínculo que Denegri mantém com a produção de documentários e do modo como opera as passagens entre os diversos gêneros. Seus documentários, assim como os programas de TV (Duchamp; Buenos Aires no existe, 2005), parecem absorver aspectos formais típicos dos trabalhos mais experimentais e voltados para a videoarte. Juego de Manos (1999), realizado com a artista e professora Matilde Marín e ganhador do prêmio de melhor obra audiovisual da Associação Argentina de Críticos de Arte, Viridiana (2001) e o longa-metragem Luján (2004), sobre a peregrinação anual de fiéis de Buenos Aires até a Basílica de Nossa Senhora de Luján, padroeira da Argentina, são incursões cada vez mais maduras, e não por isso menos experimentais, ao documental. 

Obra-tema desta edição, a ficção experimental Uyuni (2005) retoma a tensão entre lugares e esferas diversas, que Denegri reforça ao associar cada um dos dois personagens centrais a uma qualidade diferente de imagem (vídeo, película). Com outra finalidade, mais ligada à exploração da memória, a fotografia reaparece em El ahogo (2006). Neste vídeo delicado, Denegri parte de imagens familiares e domésticas, restituindo-lhes o movimento com uma edição sofisticada, que parece recobrar os próprios movimentos dispersivos da memória. Ao sobrepor fragmentos de imagens da memória política da Argentina, mais uma vez parece usar de procedimentos formais e conceituais para incrustar elementos de universos distantes e gerar tensão, neste caso entre memórias coletivas e familiares. 

Memórias pessoais e coletivas - da mesma natureza - são o tema de uma das principais curadorias já realizadas pelo artista, em parceria com Gabriela Golder: a recente Ejercicios de Memoria - Reflexiones sobre el horror a 30 años del golpe (1976-2006), que reuniu obras de dezoito artistas centradas em memórias pessoais da ditadura militar na Argentina no Museo de la Universidad de Tres de Febrero, em Buenos Aires.

Referências bibliográficas

Continente
Site da organização sem fins lucrativos coordenada por Andrés Denegri e Gabriela Golder e dedicada a fomentar a produção independente em novas mídias da Argentina e de outros países da América Latina. Ligado à Universidad Nacional de Tres de Febrero, o núcleo dá ênfase às obras experimentais e aos olhares que se diferenciam dos “estereótipos da linguagem audiovisual”. A organização de mostras temáticas é sua atividade principal.

Banco de dados
Contato e bio do artista, além das participações de Uyuni no 15º Videobrasil (2005) e na Seleção Especial da Itinerância Videobrasil 2006-2007.