Ensaio Christine Mello, 05/2006

corpo duVA

Um dos primeiros trabalhos realizados por duVa - como assim ele gosta que grafemos seu nome - é o vídeo experimental Grotesque, com duração de quatro minutos, criado em 1987. Um dos seus últimos é a videoperformance Grotesco Sublime MIX (GSMIX), apresentada em 2005. Dos anos 1980 para cá, são duas décadas de projeto poético que ele desenvolve. As questões aqui levantadas são: por que falar de duVa hoje e sob quais circunstâncias?

Há muitas formas de perceber a presença de um gesto, uma ação estética e seus contextos criativos, assim como há também muitas formas de falar do plano simbólico de uma obra. Contudo, há uma experiência subjetiva no cerne de cada leitura. Melhor seria abordar, aqui, múltiplos tipos de caráter, no que diz respeito à noção do grotesco, e, desse modo, optar pela análise daquilo que consideramos um caráter híbrido e disforme na obra do brasileiro, nascido em São Paulo, em 1965, Luiz Duva.

Por que duVa?

Primeiro, a sua existência artística não trata de interpretar o mundo, trata de experimentar o mundo. É a questão do pensamento como estratégia, ou processo de subjetivação, como afirma Deleuze. Não se trata, portanto, de apresentar duVa como um sujeito, mas sim apresentá-lo em sua dimensão de pensamento-artista.

O início de seu percurso, nos anos 1980, foi pela ficção. Uma tarefa relativamente árdua num país como o Brasil, que se compõe cotidianamente por meio das novelas da TV. Como instituir então, nesse gênero, um deslocamento de linguagem?

Deus come-se é um vídeo de duVa realizado em 1990. Nele, a figura de um homem é fragmentada minuciosamente pela edição eletrônica. A ação da obra, como um quebra-cabeça, ou uma construção em abismo (a edição dentro da edição), é elevada à própria dimensão desconstrutiva dos discursos da arte. Nesse vídeo, é o processamento que transforma conceitos em imagens. Trata-se de uma das principais marcas da criação em meios eletrônicos em que, para além de todo o humanismo da visão conduzida pelas câmeras, como diria Dubois, é a mão que toca, apalpa, tateia, se infiltra, edita e, por conseqüência, imprime os significados.

Como um geômetra, por meio dos múltiplos recortes que procede sobre a tela, duVa concebe em Deus come-se um tipo de edição matematicamente construída. Nela, ele exerce o controle semântico e sintático através da decomposição de um corpo em pleno ato ficcional. Tal corpo revela um caráter ambíguo, que só o meio eletrônico dá conta, na medida em que, aparentemente, esse corpo está fixo e ao mesmo tempo se movimenta numa série de cortes sucessivos. E mais, enquanto o corpo humano é retalhado, kafkaniamente ele se depara com um inseto. De forma simultaneamente angustiante e irônica, um boi é degolado, desmembrado, sangra e é morto. Enquanto isso, o inseto e o homem procuram devorar, ou dominar, um ao outro. Tais corpos dialogam e se reconhecem a partir do outro. No entanto, é a imagem e o som do vídeo - metaforicamente falando - que os come, os devora e os subverte por meio do efeito trágico de purgação, ou uma visão excessivamente próxima. Melhor, a imagem tem a capacidade de transformá-los em um corpo dessemelhante, grotesco, híbrido de homem e animal, como uma negação da criação divina. 

Se Deus come-se foi gerado no cerne de um processo criativo iniciado há duas décadas, falar de Luiz Duva hoje significa, antes de mais nada, falar de uma proposição poética consistente, que não só resiste à passagem do tempo como tem a capacidade de imprimir uma percepção de mundo. Sob esse raciocínio, é possível notar também a dimensão atemporal em que essa percepção se expressa. Por exemplo, assim como o holandês Peter Bruegel imprimiu a sua percepção grotesca na Renascença, é possível notar na contemporaneidade gestos estéticos similares dessa mesma natureza sendo impressos, quer seja nas obras de artistas como Matthew Barney, no contexto internacional, quer seja nas obras de artistas como Luiz Duva, no contexto brasileiro.

Por que a estética do grotesco?

Apontar experiências estéticas do grotesco na obra de duVa representa associá-lo a um repertório voltado à discussão das contradições humanas, que no Romantismo, no século 19, foi traduzido por Victor Hugo por meio de operações contaminadas, que suscitam escárnio e riso, que passam da tragédia à comédia, do sublime ao grotesco. É nesse momento que Hugo*, em oposição às normas clássicas, afirma, por meio do drama moderno, o princípio de mistura dos gêneros, de rejeição das regras, de recusa da imitação dos modelos e da liberdade na arte.

Na visão de Guinsburg, é pelo paradoxo, pelo inverossímil e pelo vórtice abismal, que a arte do grotesco desestabiliza e movimenta tudo quanto toca, desequilibrando relações harmônicas, justapondo no mesmo plano axiológico o elevado e o baixo, o refinado e o grosseiro, o belo e o monstruoso, o trágico e o cômico**. É nessa direção que ocorre o deslocamento de linguagem nas proposições de Luiz Duva. E não é só um deslocamento de ordem semântica como também de ordem sintática. O deslocamento ocorre tanto em procedimentos singulares (como no caso de Deus come-se pela ruptura da ficção) quanto pelas circunstâncias limítrofes a que ele submete o meio eletrônico no conjunto de sua obra.

Tal afirmação advém do ato de observar o gesto perceptivo de duVa como uma inteligência voltada ao inconformismo, à hibridez e à desorganização das formas. Em Deus come-se, o grotesco ocorre pelo modo como há a desarticulação, ou a desagregação do todo pelo fragmento, com o objetivo de explorar, no vídeo, múltiplas visões e seus mais complexos procedimentos. O deslocamento vem, nesse caso, pela desconstrução do movimento e pelo modo como ele desfaz conformações simétricas no contexto de edição do trabalho. Ou seja, pela inserção do movimento como um elemento ficcional no próprio plano da imagem-vídeo. 

Deus come-se não é, porém, o único exemplo em que gestos grotescos e deslocamentos de linguagem ocorrem na produção de duVa. Tais fenômenos ocorrem também em Jardim Rizzo (1992), em Momentos antes... (1995), depois em The bodymen lost in heaven (1996), entre outros. Todos são vídeos ficcionais e todos são realizados sob a problemática do grotesco. 

O grotesco surge, dessa maneira, na prática artística de duVa sob a lógica da reversão. É por essas e outras razões que, em sua obra, a ação estética do grotesco advém, portanto, do modo como ele promove uma linguagem incompatível com as normas preestabelecidas, revelando, assim, a expansão das formas expressivas.

Feito uma geléia geral, a leitura acerca da linguagem de um artista que atravessa passagens midiáticas, ou paisagens desterritorializadas, pode ser considerada, como diria Plaza, como a leitura de universos paralelos e simultâneos que tendem a perder seus contornos e fronteiras fixas. Assim, a trajetória de duVa no painel da arte brasileira, como uma sensorialidade múltipla, pode ser vista hoje sob a forma de um desenho móvel e disforme no campo da imagem e som em meios eletrônicos.

Corpo coletivo

Às vezes refletimos como se a imagem no mundo contemporâneo não mais pudesse se exprimir. O problema não é mais fazer com que a imagem se exprima, mas provocar-lhe uma outra instância de força. 

A imagem é uma construção simbólica, implica que a sua produção passe por uma série de operações que consistem, no presente caso, em trabalhar com a expansão do meio eletrônico na atualidade. Compete, então, ao artista, a partir dessa realidade, trazer à tona novas circunstâncias para o esquema sensório-motor da imagem.

Luiz Duva opera novas circunstâncias para a imagem contemporânea por meio da desordem do seu sistema sintático. Ao rígido determinismo da edição em seus primeiros trabalhos, duVa inicia, no final dos anos 1990, um processo de inserção do acaso e do aleatório no campo da produção da imagem. Ele passa a articulá-la pela lógica da imprecisão e nela incorpora o imprevisível e a mobilidade da informação. 

O vídeo, antes produzido por duVa para o monitor de TV, desloca-se agora para outros espaços sensórios. Ele expande, assim, o movimento da imagem para o ambiente arquitetônico das videoinstalações, bem como para as sinestésicas e imersivas improvisações dos espetáculos VJings.

Em 2001, duVa realiza Corpomóvel 1 e 2, um misto de instalação e performance. Essa obra é composta como um kit móvel de produção, edição e manipulação de imagem, em que, de uma só vez, ele grava, edita e apresenta o trabalho junto ao público. E o movimento da imagem, de ficcionalizado e instalado, passa a ser também performado. 

Sob essa natureza mais híbrida, surge, ainda em 2001, um outro corpo expressivo em sua imagem, o corpo coletivo produzido nas live images, ou nos chamados espetáculos de vídeo ao vivo. Nesse período, é por meio de parcerias, como as realizadas com o Videobrasil, que resultam trabalhos como PVC (2001) e A mulher e seu marido bife (2001).

Em Vermelho sangue (2002), videoperformance apresentada em conjunto com o músico Wilson Sukorski, doze telas de projeção são especialmente criadas para o 1º Festival Brasileiro de VJs - Red Bull Live Images. Nelas, duVa inscreve a linguagem indeterminada e permutacional do scratch, ou do arranhamento eletrônico da imagem, assim como dialoga, de forma imersiva, com o ambiente vivencial da cena eletrônica.

Do controle formal, a expressividade em sua imagem adquire novas dimensões. Já não se trata mais de uma imagem decomposta de forma calculada, ou sob a ordem do acabamento advinda de um produto audiovisual, como em Deus come-se, mas, aos poucos, o seu processo criativo torna-se mais apto ao informalismo, ao descontrole e ao inacabamento. Assim, seus trabalhos passam a coexistir em diálogos mais plurais e colaborativos pelo espaço, acolhendo, dessa maneira, o corpo criativo do outro, também em deslocamento, no ato de visitar, entrar, viver e partilhar suas videoinstalações e videoperformances. 

Em seguida a essas experiências, duVa apresenta, em 2003, a videoperformance Desconstruindo Letícia Parente: Marca registrada, um exercício minimalista de apropriação e desconstrução de outra videoperformance. No caso, ele opera a desmontagem de Marca registrada (1974) de Letícia Parente. Essa última, obra pioneira da videoarte brasileira, não diz respeito ao campo das live images. Trata-se, antes de mais nada, de uma homenagem à artista Letícia Parente por meio da expansão de sua imagem para três telas simultâneas e da reconfiguração de suas idéias no âmbito das manipulações de vídeo ao vivo.

Mais recentemente, duVa tem ampliado ainda mais a dimensão da imagem no campo do improviso e do agenciamento da obra com o público. Para tanto, ele passa a incluir em seus procedimentos as interfaces e a interatividade. É desse modo que ele realiza a instalação Demolição (2004). Nela, duVa propõe uma forma de demolição virtual da imagem. Tal efeito de demolição é produzido a partir dos acionamentos dos botões de uma interface, em que o público, diante de uma projeção, rege os acontecimentos como num videogame e, esteticamente falando, demole a imagem.

corpo duVa

De modo muito particular, duVa insere hoje a dimensão musical em seu trabalho através do sampleamento de imagens. É por meio desse cruzamento de procedimentos entre amostras de imagem e som, ou jogos sinestésicos no plano tecnológico, que a imagem passa a ter a capacidade de produzir um som. Se, como a música, a imagem eletrônica existe apenas no tempo, ou seja, na duração, no ritmo, na freqüência - como observa Machado - podemos analisar que, no sentido oposto aos pioneiros da videoarte (a grande maioria, como Paik, provenientes da área musical), duVa reativa esses diálogos abstratos, de forma inversa, reconduzindo tais imagens ao campo das experiências sonoras.

Fruto dessa ampla gama de experiências, o amadurecimento artístico de Luiz Duva ocorre num momento em que a sua escritura audiovisual mais radicalmente se apresenta como expressão cinemática, plasticidade e sensorialidade: é prenhe de automovimento. É na busca por essas novas substâncias estéticas que a sua trajetória adquire a dimensão de um corpo poético, ou um corpo duVa. Tal corpo diferenciado, impuro, indeterminado, despadronizado e disforme de linguagem, expande a própria dimensão midiática e retorna às origens: torna-se sombra, cintilação, desenho, pintura, fotograma, frame, sampler, torna-se ele próprio, imaginário contemporâneo e pensamento.

* Hugo expõe tal visão no Prefácio de Cromwell (2004). 

** Guinsburg expõe tal visão na apresentação do livro O Grotesco, de Wolfgang Kayser (2003). 

Referências bibliográficas

DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990 / Gilles Deleuze; tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992.

DUBOIS, Philippe. Video, Cine, Godard. Buenos Aires: Libros Del Rojas/Universidad de Buenos Aires, 2001. [Apresentação de Jorge La Ferla] 

HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime: tradução do Prefácio de Cromwell; tradução e notas de Célia Berrettini. São Paulo: Perspectiva, 2004.

KAYSER, Wolfgang. O Grotesco. São Paulo: Perspectiva, 2003.

MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário. O Desafio das Poéticas Tecnológicas. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 1996.

MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Comunicação e Semiótica PUC/SP, 2004. [Tese de Doutorado]

PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo/Brasília: Perspectiva/CNPq, 1987.

Entrevista Teté Martinho, 05/2006

Qual é sua formação?

Minha formação é em comunicação, rádio e TV. Uma coisa importante foi que joguei voleibol profissionalmente dos 13 anos aos 21 anos, mas desde aquela época sabia que queria fazer imagem. No voleibol tinha uma questão muito forte do meu corpo, o contato com minhas limitações físicas - uma dificuldade que retomo no meu trabalho de imagem. Não tinha flexibilidade, era lento. Então, comecei a me interessar não pelo jogo, mas pela vontade de ultrapassar o limite do corpo. Ao mesmo tempo, sabia que não queria fazer aquilo, que queria fazer imagem. Aí, parei de jogar, guardei dinheiro e fiquei um ano na Europa para ver show de rock e arte. 

Você tinha alguma ligação anterior com a arte ou a imagem?

Nenhuma. Só fotografia. Enquadrava bem, sem ter noção. O contato com a arte despertou ainda mais a história da imagem: Francis Bacon, William Turner, William Blake. Coisas que mudam um pouco sua vida. O vídeo estava do meu lado quando precisei de uma ferramenta para me expressar, mas, se não existisse o vídeo, eu provavelmente trabalharia com pintura.

Como chegou ao vídeo?

Quando voltei da viagem, comprei uma câmera VHS com mais três pessoas. Já fazia faculdade de comunicação. Precisava fazer um trabalho, uma imagem, mas não me dava conta do quê. Tinha uma pulsão emocional que explodiu nesses primeiros trabalhos, totalmente inconscientes. Em No time to cry, eu queria gravar um mendigo na rua. Procurando, passei perto da casa da minha avó e pedi para gravá-la. E tinha outra imagem da fábrica da Matarazzo, abandonada, onde ninguém podia entrar. Fui com minha namorada, tinha um buraco no muro, a gente entrou. Daí me vi com essas duas imagens sem saber o que fazer, e na edição virou a história da minha família. Essa maneira inconsciente está até hoje no meu trabalho. Por mais cerebral e conceitual, por mais referência que eu tenha, essa é minha base.

Quando surgiram as questões da narrativa?

Sempre me incomodou no audiovisual a maneira passiva de ver. O telespectador está vendo, mas a visão é em terceira pessoa. Sempre me questionei quem é essa terceira pessoa que vê a cena. Ah, sou eu? Mas então quero entrar nisso, quero participar. A paixão segundo Bruce é uma história narrativa. Depois fiz Jardim Rizzo, em que você tem o ponto de vista de todo mundo em cena. Ele é um pedaço de um projeto maior: a história de uma pessoa que está morrendo afogada e vê a vida passando. Quem visse o vídeo poderia mudar a história. Não tinha tecnologia nem dinheiro, gravei algumas cenas e quebrei. Fiquei um tempo sem fazer nada e, quando voltei, comecei a me interessar não pela história, nem por falar da própria narrativa, mas por criar cenas. Minha última ficção, The bodymen lost in heaven, eram cenas separadas, vivas e independentes, de um mesmo casal, que resultavam da força de uma emoção minha, sobre a qual eu não tinha controle. Mas quando fiz o enquadramento, falei: é isso que quero. Não me interessa mais a história, me interessa essa imagem, que é um quadro. 

Foi assim que você começou a ir para a instalação?

Meu primeiro projeto de instalação surgiu quando estava gravando Bruce: eu vi da rua um apartamento dividido em três janelas. Em cada uma havia uma TV e todas estavam sintonizadas no mesmo canal, mas quando a cena mudava, uma demorava um micro a mais para mudar do que a outra. Eu via as mudanças das tonalidades de luz e essa imagem me levou a pensar na possibilidade de distensão do tempo, em uma instalação que fosse um espaço diferente, onde eu pudesse entrar. Nessa época, não tinha nem internet. Logo depois li uma matéria sobre o MIT (Massachussetts Institute of Technology), sobre a mídia elástica, que era todo esse pensamento. Mas minhas instalações nunca partiram de um conceito teórico, e sim de imagens. Em INSPIREme, de 99, pela primeira vez tratei a imagem como pintura. Usei um plasma 98, na vertical, e a imagem de uma menina respirando. Parece um quadro do Caravaggio. 

Quando o som passou a ter relevância em seu trabalho?

Em 98, fiz uma instalação sobre um poema do Lorca para o SESC, e quis trabalhar com o esmagamento da imagem. Não o esmagamento físico do suporte, mas o esmagamento da imagem. Estudei, fiz desenhos, queria uma imagem holográfica, um feixe de tubos para as pessoas ficarem embaixo, mas não dava. Para manter o conceito, acabei optando por uma solução cenográfica, barata. As pessoas deitavam numa maca no chão, olhavam para cima e tinha uma TV gigante, de tubo, que dois técnicos atrás faziam subir e descer. Só que tinha o som, e foi através do som que eu consegui realizar a parte conceitual do trabalho: produzir a sensação do esmagamento pela imagem na pessoa que estava lá. Foi a primeira vez que eu fiz trilha. 

Como foi seu percurso da instalação para a performance e a pista de dança?

Quando fiz INSPIREme, tinha acabado de ir para a edição não-linear, e isso mudou minha vida. Passei a me interessar pela coisa gráfica do frame. No timeline, tive a oportunidade de ver não mais a imagem no suporte, mas, de certa maneira, livre dele. A edição não-linear te traz o acaso o tempo inteiro, e te dá realmente a possibilidade de tocar a imagem como se fosse um instrumento. Te dá a possibilidade da manipulação, da improvisação, e isso me abriu um universo completamente novo. Aí já não me interessava a construção de uma cena ou de uma imagem, me interessava desconstruir esse movimento. Se estou com uma imagem parada e dou Play, ela se dilui em vinte, trinta filmes, se perde, deixa de ter a força da imagem parada. Falei: como eu recupero isso? Daí começou todo o meu trabalho de performance. E quando fui pra pista de dança, meu horizonte de vida mudou. A primeira vez que entrei em uma rave, em 99, falei: isso aqui é uma instalação sensorial como nenhuma outra que vou conseguir montar. Eu quero vir aqui com imagem e tentar equipará-la espacialmente ao som, que é espacial.

Como seu trabalho de VJ cedeu espaço ao live image?

Quando você consegue realmente ter o domínio da construção da imagem, da ambientação, que é uma situação muito próxima da instalação, você passa a ter o controle também de uma outra potência, a potência da soma do som e da imagem. A pista de dança foi um laboratório pra mim. Foi super bacana a questão da improvisação do ao vivo, a possibilidade da ambientação da imagem, de trabalhar com ela espacialmente, de criar uma narrativa que não é mais dentro do suporte, de propor às pessoas vivenciar o audiovisual de uma nova maneira. Mas chegou uma hora que não me interessava mais estar em uma situação em que eu não tivesse controle absoluto. Por isso parti para os projetos fechados, as composições audiovisuais, nas quais eu controlo o som também, como Vermelho sangue e Desconstruindo Letícia Parente. 

Como chegou ao conceito de células de movimento?

Em Imagem não Imagem, de 2003, uma exposição com curadoria da Christine Mello na Galeria Vermelho, oito artistas partiam de um filme do Arlindo Machado, Complemento nacional, feito com restos de filmes jornalísticos da década de 70. Cada um tinha que ter um pensamento sobre aquilo, criar um trabalho e alimentar um banco de dados. Eu nunca tinha trabalhado com uma imagem documental na minha vida. Na mesma época, um amigo me pediu para gravar uma performance dele. O trabalho era muito fraco mas graficamente as imagens eram interessantes. Comecei a mexer nelas e foi aí que descobri as células de movimento: através da manipulação ao vivo, eu busco a imagem que está por trás daquilo, algo que, em princípio, não estava ali. Pra mim isso abriu um universo. Depois, em Grotesco Sublime MIX (2005), gravei uma oficina do Teatro da Vertigem e, quando fui montar de maneira documental, não virava nada. A sensação que eu tive quando estava vendo a oficina, de tesão, de medo, de nojo, isso não estava na imagem. Nessa época eu estava trabalhando com um software que me abriu um universo muito novo de manipulação, talvez por não estar rodando adequadamente na configuração da minha máquina e ter me obrigado a lidar com essa limitação. Grotesco Sublime MIX é o resultado de uma improvisação feita durante uma única sessão de 16 minutos na qual usei essa ferramenta. Isso me mostrou a potência da performance, do ao vivo, e também que o importante para mim não é a tecnologia, mas o fluxo do pensamento por trás dela. No final, mesmo sem usar o software 100%, tinha conseguido recuperar a força da imagem original que estava lá, pulsando, querendo sair da tela. 

A idéia de resgate da sensação original persiste como mote em sua obra?

Em Retratos in motion: o beijo, fiz pela primeira vez um projeto que partia de um suporte e não de uma imagem. Um belo dia, estava com a Patrícia, minha namorada, dando um beijo, superfeliz e, como meu celular estava no bolso, comecei a tirar foto. Não sabia o que estava tirando, não dava pra ver. Botei as fotos no computador e, com um software de imagem panorâmica, que junta as imagens, fiz vários videozinhos. Num software de manipulação, comecei a tocar a imagem, querendo ir para outros lugares dela, dando movimento. O momento do beijo tinha se esvaído e o trabalho inteiro era a tentativa de recuperá-lo. Tenho um projeto novo, Landscape of My Dreams, no qual proponho exercícios para investigar a relação entre o momento inicial de criação de uma imagem/ação e o resultado disso mediado pela câmera. Em um deles, jogo meu corpo contra uma parede. Quando fui pra parede, me deparei com o limite do corpo físico, esse corpo que não é treinado, que faz a imagem e faz a ação, mas essa ação não é nem a ação que eu tinha imaginado e muito menos o que passa para a imagem captada é o que eu estava sentindo antes de fazer a ação. E, através da manipulação, eu consigo buscar isso e reaver isso e trazer para a tona da imagem. É isso que me interessa.

Como nasceu o Tríptico: estudo para auto-retrato 1, premiado no 15º Videobrasil?

O corpo sempre foi a matéria do meu trabalho, mas demorei até conseguir me colocar corporeamente nele. A partir do momento em que eu gravo a imagem no meu corpo, ele deixa de ser identidade Duva, ele é uma forma. Gravei a imagem deste trabalho um dia em que estava puto, sem idéia, comecei a mexer no computador e vi o que existia por trás do retrato. Isso virou instalação no Paço das Artes e no meio do caminho mandei para o Videobrasil, sem nenhuma expectativa, porque o trabalho era um tríptico. Foi bacana depois de ter feito performances no Festival em 2001 e live image, com Letícia Parente, em 2003, voltar pra Competitiva não com uma coisa em que eu já não acredito, que é mostrar vídeo no single channel, mas com uma performance, exposta como tríptico na Play Gallery. Porque o Auto-retrato é uma performance, por eu ter manipulado essa imagem, e pelo diálogo dos três, um latindo para o outro. 

Você quer desenvolver partituras audiovisuais para suas peças. De onde vem essa necessidade?

A primeira vez que escrevi uma partiturazinha para saber que tipo de coisa fazer durante o decorrer de uma peça foi em Desconstruindo Letícia Parente. A peça audiovisual não só tem de ser ensaiada, como se você fosse músico, como em alguns momentos você tem pedaços de vídeo solo, improvisação. Como vou articular para fazer uma peça dividida em momentos mais narrativos, outros de livre improvisação, outros em que eu possa ser parte de um quarteto? A partitura visual é super importante nos trabalhos de arte, de tecnologia, de novas mídias, porque são trabalhos que se perdem, que são feitos com uma plataforma e um software que daqui a cinco anos não existem. Mas se você tem uma partitura e tem as imagens, você carrega em qualquer software e daqui a 50 anos alguém pode fazer isso. Agora, menos, né? Sem pretensão. Mas ao mesmo tempo eu queria fazer uma coisa muito maior. Queria fazer uma performance no alto Xingu, lá na fronteira da soja com o desmatamento, outra lá no Chuí, mexer com satélite.

Seu trabalho o levou freqüentemente a um embate com a tecnologia disponível. Como se relaciona com esses limites?

Uso a ferramenta que está acessível. Nunca tive interesse de desenvolver tecnologia. Minha formação sempre foi voltada para a criação. Nas vinte instalações que fiz, me deparei o tempo inteiro com esse problema: pra fazer o que queria, tinha de desenvolver tecnologia. E, não tendo acesso à tecnologia, eu simplesmente mantinha o conceito e adaptava a que tinha à mão. Eu poderia sair fora, me dedicar um ano a estudar software, mas, porra, nesse um ano eu faço duas instalações, que, para mim, são mil pensamentos muito mais importantes. Lá fora tem pessoas trabalhando de outra maneira, como Daito Manabe ou Golan Levin. São artistas que programam seus próprios softwares. E fazem trabalhos tão sofisticados, e tão simples, que você não vê mais a tecnologia. Isso sempre me interessou. Recentemente, descobri que meu trabalho não é feito mais pra ser instalação ou live image. Ele é uma imagem. Talvez eu tenha conseguido, nos últimos tempos, fazer exatamente o que vinha buscando desde o começo: uma imagem por si só. 

Biografia comentada Teté Martinho, 05/2006

Na trajetória do paulista Luiz Duva, a construção de narrativas pessoais em vídeo se desdobra em duas linhas de pesquisa sofisticadas e complementares: de um lado, o aperfeiçoamento de práticas artísticas que permitam resgatar e trazer “à tona da imagem” sentidos e sensações ignorados pelo registro; de outro, a tentativa de expandir a experiência audiovisual para além de seus limites de duração e suporte. Enquanto um eixo o leva a experimentar formas e suportes, do single channel à instalação, das sessões de VJing em pistas de dança aos ambientes imersivos onde realiza suas seções de live image, o outro o empurra cada vez mais para dentro da imagem - onde descobre formas diferentes de manipular, desconstruir e tocar frames, improvisando, redesenhando e incorporando o acaso para resgatar força plástica e conteúdos subjetivos. 

O corpo e seus limites estão no centro de suas temáticas desde as primeiras obras, que considera “explosões” de uma pulsão criadora visceral e inconsciente, mais do que fruto de conceito. Nascido da costura de duas seqüências casuais - imagens da própria avó e de um passeio clandestino pelos interiores de uma fábrica abandonada -, No time to cry, de 1988, já revela densidade experimental e percepção do meio incomuns, sobretudo no angustiado movimento de câmera que se cola ao som, uma espécie de zumbido repetitivo e circular. O vigor experimental que desafia a ausência de recursos persiste em A paixão segundo Bruce (1989), movimento irônico em direção à narrativa, e Deus come-se (1990), que flerta com o grotesco e com o plástico. Em Jardim Rizzo (1992), a mesma cena é vista da perspectiva de cada um dos personagens, num exercício que questiona a redução da experiência audiovisual a um ponto de vista único e compulsório.

Das experiências narrativas que têm como mote a própria narrativa, o artista evolui para a construção plástica da cena - ou, como descreve, para a descoberta da “imagem como quadro”. The bodymen lost in heaven (1996) é um marco na passagem: além do conflito compartilhado pelo casal de personagens, é a singular composição estética que mantém colados os elementos da obra, em cenas, cores e arranjos visuais que remetem às referências de pintura clássica do artista. The bodymen coloca Duva no rumo da obra instalada, vocação natural da imagem/quadro. 

Três anos depois, INSPIREme (1999), que expõe a imagem de uma menina respirando em uma grande tela de plasma verticalizada, inaugura uma longa linhagem de instalações-retratos de verve mais plástica. Antes, a busca experimental do caminho da instalação leva o artista para perto de um elemento que, dominado, se tornaria fulcral em sua obra: o som. Em Ignácios (1998), construída em torno do poema Pranto por Ignacio Sanches Mejias, de Federico García Lorca, é a trilha (a primeira que escreve) que dá sentido à obra, materializando o intuito inicial de produzir no espectador uma sensação de “esmagamento” pela imagem. 

É também perto de INSPIREme que o artista troca a ilha analógica pela edição não-linear, alterando vertiginosamente o panorama de possibilidades de manipulação da imagem ao seu alcance. Onde antes mesmo um recurso banal como o slow motion era de difícil acesso, surge a possibilidade muito real de aplicar à imagem o mesmo tratamento físico que os DJs aplicam ao som, tocando-a, percurtindo-a, fazendo scratches com ela. Na relação com o novo universo de parâmetros a alterar na imagem - e com o caráter gráfico da edição no time line - o artista descobre a possibilidade da improvisação, da intervenção como gesto rítmico, e a possibilidade de resgatar, no movimento, “a força da imagem parada”.

A possibilidade de manipular ao vivo as imagens-sons reveste a obra de Duva de algo que ela não deixará mais de ter: o caráter de ato. Suas instalações se hibridizam, ganham o ambiente, incorporam atores, tornam-se performances - a exemplo de A mulher e seu marido bife e de PVC, que integram a programação do 13º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil em 2001. A idéia de ambientar a imagem, a improvisação e o caráter performático aproximam o artista também das pistas de música eletrônica, nas quais vê “instalações sensoriais como jamais poderia criar”. 

Nos anos seguintes, Duva organiza a primeira mostra de VJs realizada no Brasil, o Live Images (com os VJs e coletivos Jodele, Spetto, Embolex, Duva, Bijari, Lucas Margutti, Raimo, Alexis, feitoamãos e Palumbo) e apresenta-se ao lado de DJs como Junkie XL, 808 State, Jeff Mills, The Youngsters, Anderson Noise, Stereo Total, Patife, Marky e Joe Carter - além do inglês Fat Boy Slim - em evento para 180.000 pessoas no Rio de Janeiro. 

Período intensivo de especialização em manipulação de imagens ao vivo, a experiência do artista como VJ se prova limitada - pela impossibilidade de controlar “a potência total do som-imagem” -, mas com momentos de grande descoberta. Em 2005, em Turim, Itália, ao se apresentar no lounge da revista Cluster, experimenta guiar as improvisações com cores e formas, não pela música, mas pelo fluxo de pessoas no espaço. Pela primeira vez em uma de suas obras, a imagem é tratada como luz, e não como signo.

Ainda em 2002, Duva desvia o foco principal de seu trabalho da atividade de VJ para a criação de obras baseadas na manipulação ao vivo de imagens e nos ambientes imersivos. Um poema, morangos no chão de sua sala e uma endoscopia são os elementos do primeiro destes exercícios, Vermelho sangue (2002). No mais conhecido, que mostrou no 14º Videobrasil em 2003, manipula ao vivo, sobre duas trilhas eletrônicas remixadas, trechos pré-alterados da obra Made in Brasil, na qual a pioneira do vídeo brasileiro Letícia Parente borda a planta do próprio pé (Desconstruindo Letícia Parente: Marca registrada). 

A pesquisa da “possibilidade de expansão da imagem para dentro da própria imagem”, gerando novas imagens e sons a partir da criação de uma dimensão expandida, leva à descoberta do que o artista define como células de movimento, seqüências de imagens significativas que produzem, quando manipuladas, diferentes andamentos e ritmos. Partindo de material documental, chega às células que servem de base à performance Concerto para imagem, som e marreta sobre parede, da exposição Imagem não Imagem (2003); partindo de fotos digitais produzidas com um telefone celular, que anima com um programa de visão panorâmica, cria o tríptico Retratos in motion: o beijo (2005), instalação em ambiente imersivo que marca sua primeira aparição na tela. Em ambas, o tratamento de manipulação ao vivo busca devolver à imagem “a imagem por trás dela”, entendida como a subjetividade e a intensidade do momento que dá início ao processo.

Nesse mesmo movimento inscrevem-se a instalação Demolição (2004), um mecanismo que produz, ao toque de botões, projeções de uma parede em demolição e sons percussivos; Grotesco Sublime MIX (2005), que transforma material produzido em uma oficina do Teatro da Vertigem em um tríptico de corpos que se devoram; Tríptico: estudo para auto-retrato 1, que conquista para o autor o Prêmio de Criação Audiovisual Le Fresnoy - França no 15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil; e o Concerto para células em (de) movimento, projeto de performance multimídia em instalação imersiva que será guiado por uma partitura audiovisual - capaz de delimitar movimentos de improviso - e terá como tema as paisagens interiores. 

Referências bibliográficas

Live Images
O site de Luiz Duva tem trechos e sinopses de suas principais obras, entre vídeos, apresentações como VJ, instalações e sessões de live image, além de biografia, cronologia de prêmios e registros de participações em eventos no Brasil, na Itália e na França.

Vorazes, Grotescos e Malvados
Em texto publicado pela revista eletrônica Trópico, a curadora Christine Mello comenta a exposição Vorazes, Grotescos e Malvados (2005), que reuniu 26 artistas no Paço das Artes. Sobre a instalação Grotesco Sublime MIX, de Luiz Duva, afirma: “É uma nova expansão de linguagem para a imagem e som em meios eletrônicos”.

Videobrasil On-Line

Para pesquisa: informações sobre as participações do artista no Festival Internacional de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, videografia, obras, links e outras referências.