Ensaio Ricardo Rosas, 2005
ENTRE O ANTIESPETÁCULO E O ARRASTÃO SEMIÓTICO
Como tentar definir um show que não é show, um programa de TV que não é programa? O que fazer quando critérios normalmente usados para criticar performances ou vídeos podem cair num certo vácuo de referências quando o trabalho analisado contraria premissas básicas destes meios?
O eventual público, o desavisado crítico que assista a trabalhos como Futebol, da Frente 3 de Fevereiro, ou a série de programas do grupo A Revolução Não Será Televisionada (ARNSTV) pode se ver frente a semelhantes dilemas. Visões pré-formatadas podem aqui ser postas em xeque. E ainda, como classificar a ação de quem se pendura numa ponte pênsil para recitar Hermes Trimegisto, atraindo a polícia local, ou tenta criar “pontes virtuais” (de raio laser) entre a favela e o centro financeiro em São Paulo, e entre a Bahia de Todos os Santos e a África, ou que ainda “promove” um arrastão, no Rio de Janeiro, só que... com a participação exclusiva de indivíduos brancos?
Talvez uma boa pista para entender esse pequeno quebra-cabeça de referências cruzadas e contraditórias seja saber que um elemento que liga todos os grupos citados e ações referidas é o artista Daniel Lima. Seja como participante de diversos coletivos, como mídia-artista ou praticante de intervenções urbanas, Lima parece ter um gosto cultivado por contradizer juízos preconcebidos quanto a formatos artísticos, assim como por tocar o dedo em feridas abertas no tecido urbano-social. A vontade de ir além das aparências ou de subvertê-las pode ser encontrada, em seu caso, mesmo nos trabalhos com teor político mais pronunciado, onde mesmo tal teor por vezes parece ser posto em dúvida ou ironizado.
Também pudera, já não vivemos numa era de certezas absolutas. Se as “grandes narrativas” já foram descartadas, ou pelo menos em parte desacreditadas, se as grandes vogas recentes dos estudos culturais, do pós-colonialismo e da desconstrução já trataram de demolir toda uma série de paradigmas e axiomas antes sagrados nos mais variados campos do saber, e se mesmo o grande bastião da identidade hoje se vê entrincheirado por movimentos pós-identitários das mesmas minorias, que há apenas poucas décadas a defendiam como tábua de salvação, as invectivas questionadoras de Daniel Lima não chegam a surpreender totalmente.
Mas os “grandes problemas”, as grandes feridas, no entanto, continuam a existir. A desigualdade social, o racismo, a falta de moradia, a dominação da grande mídia, entre outras, são questões que continuam na ordem do dia, e não escapam igualmente às lentes de Lima. Com a diferença de não se tratar, no caso, de uma auto-vitimização compassiva, da velha e conhecida lamúria “contra os opressores”. Tampouco há aqui uma defesa cega de uma suposta identidade, seja ela racial (1) ou qualquer outra, mas antes pequenas inserções táticas ou “golpes”, como diria Michel De Certeau, que não efetuam um embate claro ou antagonista em relação a um suposto inimigo, mas antes surpreendem, atacam, pela astúcia, pelas oportunidades e distração do mais forte (2). Art(e)manhas da ocasião.
Nessas interferências/atritos, às vezes sutis, às vezes declarados, é que se percebe certos jogos, brincadeiras com os códigos, sua subversão, mesmo seu “rapto”, ou seja, certos modos de lidar com a linguagem, caracterizados por violações dos protocolos usuais dos formatos mais comuns de fruição, quer numa apresentação para o público, na formatação de um programa para um meio como a TV, numa intervenção na cidade. Volto-me particularmente para dois aspectos que vejo como significativos desses modos de subversão dos códigos.
Primeiramente, certa fascinação, quiçá ambígua, pelo espetáculo que, se deixa dúvida aos desavisados de primeira hora, ansiosos por criticar uma suposta glamurização da crítica política e ali detectar vácuos, indiferença ou fetichização, nem por isso esconde incongruências, ruídos, dissonâncias, que são, eles mesmos, os pontos mais ricos e reveladores do que Daniel e suas trupes chamarão de “antiespetáculo”.
O “espetáculo” já tinha sido desnudado por Guy Debord em seu livro A Sociedade do Espetáculo, livro fundamental para se compreender muito do que se tem pensado atualmente em relação à onipresença invasora da mídia em nossas vidas. O “antiespetáculo” em si não é uma referência velada às idéias de Debord, mas uma tentativa declarada de usar o meio do entretenimento para propagar idéias de subversão e, não por acaso, Debord será ostensivamente citado na primeira ação de antiespetáculo do grupo de que Lima faz parte, o Revolução (ARNSTV) (3), no Território de Antiespetáculo no SESC Pompéia, por ocasião do festival Latinidades em 2003, um antishow dividido em duas partes durante dois dias, recheado de apresentações de grupos, palestras, interrupções para entrevistas com a platéia, ações de hip-hop, imagens de mídia independente e apresentações de VJs. O contexto, como seria de se esperar, se encontra no terreno do paradoxo, pois mesmo os vídeos da ação, como Liberte-se, feito conjuntamente com o coletivo Companhia Cachorra, guardam uma série de ambigüidades em relação às próprias ações realizadas, qual seja, de vender cartuchos de balas usados com a frase “liberte-se” e interrogar as pessoas nas paradas de farol sobre a frase, ou ainda de, ao final, queimar as faixas com os slogans ou jogar os cartazes no lixo. Qual o sentido afinal da subversão? Mas haverá sentido? Ou será a própria pergunta o que interessa aos grupos?
Talvez reveladora dessas atitudes ambíguas seja uma ação anterior do coletivo durante o festival Mídia Tática Brasil em março de 2003, onde o ARNSTV ocupou uma sala da Casa das Rosas com modelos de papelão de celebridades da mídia em tamanho natural, desses usados em merchandising para bancas de revista, e cuja ação no festival foi pô-los de costas para quem entrava na sala (isto é, mostrar as celebridades como elas “seriam” na realidade: figuras de papelão, meras superfícies), para depois sair numa procissão coletiva, cada participante carinhosamente com seu modelo, caminhando pela cidade, dentro de shoppings, lojas, do metrô, de bancos, etc., para, num final apoteótico, tocar fogo nas celebridades de papel, em plena avenida Paulista. A junção entretenimento/crítica social não poderia melhor sintetizar aqui a idéia de antiespetáculo.
Há já algum tempo que mesmo os movimentos ativistas mais radicais têm tentado “aprender com Las Vegas”. Como nos dizem Andrew Boyd e Stephen Duncomb num texto sobre como a esquerda atual pode aprimorar suas táticas estudando a indústria do espetáculo (4), os movimentos contemporâneos deveriam “aprender a usar o espetáculo como uma ferramenta de comunicação política - não com má vontade, mas entusiasticamente e isentos de culpa”. Ora, mas se já nos idos do pós-Segunda Grande Guerra não estavam lá antecessores tais como os situacionistas com sua teoria do détournement (ou desvio) plagiando histórias em quadrinhos ou filmes de faroeste, ou bufões Yippies como Abbie Hoffman ou Jerry Rubin pondo em ação seus profundos conhecimentos das maquinações da mídia em causa própria? Mesmo um guru dos novos movimentos como Hakim Bey já nos ensinou como aprender com a pós-modernidade para daí subvertê-la. A TAZ é ela mesma uma teoria subversiva pós-moderna até a raiz dos cabelos, com sua febre de citações, muito embora contradiga essencialmente o fundo neoliberal que configura o próprio pós-modernismo. Ações de subversão dentro da sociedade do espetáculo e usando sua própria linguagem podem ser vistas, por exemplo, na produção dos culture-jammers (ou congestionadores culturais) sabotando as mensagens da publicidade, alterando seus significados com um layout mais que perfeito. A noção de um antiespetáculo talvez esteja justamente nesse assalto a um formato midiático, recheando-o de ruídos de sentido, de mensagens fora do script usual da indústria da diversão.
Aprimorações do formato prosseguiriam em novas ações de Daniel e coletivos de que fazia parte, por exemplo, no festival Zona de Ação, em 2004, por ele idealizado, e onde as intervenções na cidade de São Paulo foram realizadas por vários grupos, entre os quais o já citado ARNSTV e o grupo ativista anti-racismo Frente 3 de Fevereiro, do qual Daniel também é membro. O encerramento do festival se dá exatamente num antiespetáculo apoteótico que “anticelebra” catarticamente o assassinato do jovem advogado negro Flávio Sant'Ana pela polícia militar de São Paulo, dramatizando o crime e mostrando as diversas ações dos grupos pela cidade. Outra remixagem do formato se dá na VIII Bienal de Havana, final de 2003, onde a apresentação, recheada de hip-hop e vídeos, do que será chamada de série Sem Saída, celebrará uma ação de Daniel que fecha os guardas de uma praça gradeada em Havana com correntes e cadeados, sendo os guardas obrigados a fazer um “ponto de fuga” para o local. A ação, com sua carga tensa de diálogo com a própria situação de Cuba, guardadas as sempre presentes ambigüidades interpretativas, bem como sua exibição desinibida horas depois, performatiza mais uma vez um antiespetáculo num diálogo mais que direto com a platéia local.
O formato mais recente que, por enquanto, nos fica do antiespetáculo é Futebol, realizado pela Frente 3 de Fevereiro no último Festival Videobrasil, em setembro de 2005. Futebol, talvez mais que todos os seus antecessores, é aquele que epitomiza melhor os aspectos conflitantes que perfazem a idéia de um antiespetáculo. Sim, porque se levarmos a idéia ao pé da letra, um antiespetáculo não divertirá, mas antes incomodará, ou pelo menos dará aquela sensação desconfortante do distanciamento que Brecht pensava para seu teatro. Pois é, Futebol incomoda sim e toca sim em feridas que dizem respeito à formação mesma do Brasil, mas, ao mesmo tempo, tem ritmo, tem fluidez, “vai com o fluxo”, diverte. São as ambigüidades em ação. Não nos enganemos: a questão é séria e muito real, pois, afinal, no Brasil há democracia racial? E a identidade, há identidade? “Qual é a sua?” Se por um lado temos a vibe do hip-hop a embalar o “monólogo socrático” da fascinante MC que é Roberta Estrela D'Alva questionando profundamente a história brasileira, por outro lado temos o remix de imagens da mídia de massas, dos telejornais e de polêmicas recentes de celebridades do futebol comentando o racismo, opinando, numa montanha-russa de loops, repetições, sampleagens e adicionando o tom de dúvida, de ironia, de questionamento. Podemos pensar em Futebol realmente como um espetáculo? O que diremos, ainda, de seus trechos mais contundentes, das perguntas cirúrgicas sobre nossa arquitetura, mesmo a contemporânea, ao desvelar o quarto de empregada como resquício da tradição escravocrata, ou ainda desses “seqüestros-relâmpagos” semióticos que foram as inserções de gigantescas faixas com frases como “Onde Estão os Negros?” em jogos transmitidos pela grande mídia?
Se o antiespetáculo se explica pela ambigüidade mesma e pelos ruídos que o destoam de um espetáculo convencional pensado para o entretenimento, os scratches simbólicos (5), verdadeiros “seqüestros-relâmpagos” da atenção midiática que o estender instantâneo e fugaz, hit-and-run, das faixas nos estádios realiza, configurariam, por sua vez, o segundo elemento significativo para entender como se dá a subversão dos códigos nos trabalhos individuais e coletivos de Daniel Lima.
Tal elemento é o próprio uso reverso, invertido, que Daniel faz dos signos, dos protocolos simbólicos que nos cercam e dos quais ele se apropria e subverte, no que chamarei aqui de “arrastão semiótico”. A figura do arrastão se deve, em primeiro lugar, a uma intervenção de mesmo nome que o próprio Daniel realizou no festival de novas mídias Prog: Me no Rio de Janeiro, em 2005. Face à preocupação da curadoria em relação a problemas com banhistas na praia, pelo uso de pessoas negras num arrastão simulado, Lima optou então por um caminho racialmente “oposto”: um “arrastão de loiros”. Sua intenção foi trazer à tona uma premissa subliminar nascida desse processo: a de que 30 negros juntos não podem caminhar em Ipanema, mas 30 loiros juntos podem. Ou seja, claramente, a imagem do arrastão está ligada ao negro pobre.
Em se tratando de signos, não precisamos ir muito longe para constatar em que patamar da hierarquia simbólica, em nossa sociedade, está a imagem do negro (ou de outras etnias que não a branca). Ele próprio um filho dessa etnia, não são poucas as vezes, como já vimos, em que o trabalho de Lima dialoga com questões raciais e as fissuras sociais a elas relativas. O que não impede, é claro, ambigüidades e auto-ironias que confundem ou não se prendem aos grilhões de uma identidade reivindicada. Exemplo disso é a série de fotos Blitz, em que, ao contrário do tom crítico da Zona de Ação, onde a polícia era criticada por racismo, Daniel aparece aqui cumprimentando sorridente policiais em fotos que, de tão estranhamente amenas, chegaram mesmo a ser exibidas na fachada do 7º Batalhão da PM em São Paulo. Mas certo fundo irônico pode se esconder naquele sorriso amarelo do cidadão negro que aperta a mão de policiais conhecidos pela violência contra a população negra, de uma forma que a superidentificação aqui se torna ela própria fonte de dúvidas.
Retornemos então ao arrastão. A idéia do arrastão como prática de criação cultural foi pensada primeiramente pelo músico Tom Zé, numa idéia de uma estética de apropriação, de criação “plágicombinadora”. Essa “técnica de roubo urbano”, como diz o próprio Tom Zé no encarte de seu CD Com Defeito de Fabricação, em que um “pequeno grupo corre violentamente através de uma multidão e 'varre' dinheiro, anéis, bolsas, às vezes até as roupas das pessoas” (6), é metáfora para uma criação artística apropriadora, mesmo invasiva, desinibida para com os códigos e discursos estabelecidos. Como pensa o teórico americano Christopher Dunn, estudioso da tropicália, “no contexto atual de globalização neoliberal, a criação arrastada também pode ser um ato de violência, subversão ou mesmo de resistência” (7). Para Dunn, o arrastão seria um sucedâneo contemporâneo do que foi a antropofagia em outras épocas, pois seus praticantes fazem “'arrastão' no legado cultural do qual são excluídos”, além da metáfora sugerir “explicitamente a posição social da figura subalterna” (8).
No caso de Daniel, por exemplo, podemos pensar numa espécie de “arrastão semiótico”, aquele que se apropriaria principalmente de códigos e signos correntes, revertendo sentidos, invertendo ou provocando ruídos e curtos-circuitos nas mensagens. Semiótico aqui não se refere exatamente à ciência analítica da linguagem de Pierce ou Greimas, mas à possibilidade polissêmica de articular sistemas de conteúdo com sistemas de expressão (9). A idéia não estaria tampouco distante do que Umberto Eco chamou de “guerrilha semiológica”, ao pensar a reintrodução da dimensão crítica na relação com a mídia ou a ambigüidade dos códigos, por exemplo, na comunicação estética ou na de massas (10). Neste sentido, pode-se ter em mente, também, o que Franco Berardi (Bifo) chama de “semiocapital”, o capital semiótico, uma outra palavra para denominar o capital do trabalho imaterial, da “economia do conhecimento”, que estaria formando a base da economia globalizada contemporânea, segundo, por exemplo, os teóricos Michael Hardt e Antonio Negri, autores de Império e Multidão. Como diz Bifo, “o processo mais profundo que começou a se desenvolver ao longo dos anos 90 é aquele da completa interação entre sistema econômico e sistema semiótico, a completa integração do trabalho produtivo à produção semiótica. A globalização é essencialmente esta integração” (11).
Num horizonte como este, em que os próprios signos - a linguagem, como pensa o filósofo Paolo Virno - viram o motor da economia, pensar a figura de um arrastão semiótico, ou mesmo de um “rapto”, um “seqüestro-relâmpago” simbólico como prática subversora ou antagonista, talvez não pareça tão estranho. Já podemos ver isso numa das primeiras ações de Daniel, os pequenos terrorismos poéticos de alteração ou substituição de adesivos em escadas do metrô, onde, no que se lia: “ATENÇÃO! Segure-se sempre aos corrimãos” ou “ATENÇÃO! Segure as crianças pelas mãos”, colocava adesivos com a mensagem “ATENÇÃO! Segure sempre a minha mão”. Ou na transposição da pichação para o raio laser em Scribe e Pichação Laser, nas “pontes virtuais” também de laser unindo a periferia e um bairro rico de São Paulo, ou Salvador e a África, ou ainda no dependurar-se de uma ponte pênsil em movimento em Roterdã, recitando versos do Hermes Trimegisto de Jorge Ben e atraindo a atenção da polícia holandesa. Podemos ver isso igualmente na ação de prender aqueles que prendiam, os guardas, na já citada ação em Havana, Cuba.
Aplicar então a figura do arrastão ao trabalho de Daniel Lima é tentar fazer uma certa analogia com sua atitude em relação aos códigos vigentes, na sua violência quase “terrorista”, ou, melhor ainda, “desobediente”, palavra ainda tão cara aos movimentos ativistas contemporâneos, uma vez que, se o que faz na seara semiótica não é algo propriamente ilegal ou ilícito, é, sim, um arrastão apropriador que toma a si um espaço, um signo, um formato, e o remolda, inverte para o efeito desejado.
Talvez o exemplo mais emblemático de arrastão semiótico nos trabalhos de Lima sejam as obras desenvolvidas no A Revolução Não Será Televisionada. Seja tanto pela reciclagem, desvio e plágio alterado de diversas produções da cultura de massas, pelo caráter eminentemente coletivo das criações do ARNSTV, seja pelos sinais invertidos e ambíguos da produção, muito do que está na série produzida pelo grupo efetua verdadeiros arrastões nos signos usuais da televisão, da mídia-arte e videoarte, ou da cultura pop ditada pela MTV, entre outras.
Apresentados inicialmente numa TV pública paga, a TV USP, os oito episódios (bem como os demais sucedâneos do coletivo, mais curtos ou mais longos que os 25 minutos formatados na série) tiveram início em 2002, pensados como um “antiprograma de TV”, como assumido pelo grupo (12). Reunindo artistas e coletivos os mais diversos, misturando imagens jornalísticas, cenas de documentários, entre outras imagens, e contando a estória de um guerrilheiro urbano com problemas existenciais, a série se desenrola entre a colagem abrupta de cenas e produções surreais ou experimentais e uma narrativa em off de uma voz deformada, por vezes assustadora, criando, em determinados momentos, um clima claramente paranóico.
A inversão de signos começa pelo próprio nome do coletivo que, exibido numa TV paga, ou seja, feito para a TV, afirma, seguindo o título de uma canção de Gil Scott-Heron, que a revolução não passará na televisão. Por outro lado, inspirados, como dizem numa entrevista (13), pelos pichadores e pela guerrilha cultural urbana, sua intenção é sem dúvida intervir na mídia televisiva. Com seu descarado experimentalismo artístico, ARNSTV não se enquadraria na programação de uma TV aberta, pois foge demasiado dos ditames comerciais e “utilitários” dessa TV. Seu teor político inegável, por sua vez, tornou o programa pouco palatável, por exemplo, para uma MTV, que não se interessou em exibir a série. Finalmente, a edição rápida, entrecortada, bastante profissional (em muito recordando a própria edição estilo MTV), o visual extremamente pop, bem-acabado, de série de TV, também afastam o programa da seara da videoarte como a conhecemos usualmente (14). A falta de pudor em ser narrativo e pop, ou o pioneirismo em experimentar com vídeo e política no Brasil, onde há pouca tradição neste terreno, todos estes elementos tornam a série do ARNSTV uma criação única na produção audiovisual brasileira.
Esse hibridismo - ou ousadia, para alguns - em misturar intervenção, vídeo, terrorismo poético e formato televisivo talvez dificulte um entendimento convencional dessa criação. Se recorrermos quiçá a teorizações menos canônicas como a de mídia tática, tal como teorizada por David Garcia e Geert Lovink (15), veremos que os episódios do ARNSTV (como, a título de exemplo, os VJs pernambucanos do coletivo Media Sana), por não serem exatamente antagonistas e mesmo assim efetuarem um choque na esfera midiática, estão provavelmente entre os mais significativos exemplos de mídia tática produzida no Brasil.
As contradições e ambigüidades permanecem. As bandeiras defendidas não são tão claras, mas será que a questão aqui é a bandeira ou a forma como a seguramos? Como defender a guerrilha cultural e mesmo assim produzir para a TV paga? Esses paradoxos são justamente o que perfazem a riqueza e a problemática nas criações de Daniel Lima. Sem eles, não o entenderíamos. Quando perguntados se temeriam ser engolidos pela voragem da indústria do entretenimento, o ARNSTV respondeu : “Que eles nos engulam, passem mal, vomitem”. Significativamente, uma das cenas ícones da série é uma daquelas que jamais passaria numa retrospectiva da Globo: sim, aquela “inocente” imagem da Xuxa em seu programa que, em câmera lenta (edição do Revolução), descobre um fogo no cenário e corre, as crianças correm, o cenário pega fogo. Dê o nome: arte, apropriação, ativismo, diversão?
Notas
1. Trato melhor desta questão identitária-racial em relação à obra de Daniel Lima em outro texto, publicado no Catálogo da Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea: “Daniel Lima - Lançando um raio de consciência multíplex?”, Farkas, Solange, cur. Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea, São Paulo: Associação Cultural Videobrasil, 2005, pp. 72-74.
2. DE CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano - Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
3. O grupo se compõe de Daniel Lima, Fernando Coster, Daniela Labra e André Montenegro.
4. BOYD, Andrew e DUNCOMB, Stephen. “The Manufacture of Dissent: What the Left Can Learn from Las Vegas”, acessado em 31/12/2005: www.journalofaestheticsandprotest.org/new3/index.php?page=duncombeboyd
5. Scratch, na gíria do hip-hop, são aqueles efeitos de arranhão que os DJs fazem nos discos, provocados pela distorção da mão do DJ em atrito com o vinil, dando loops e repetindo trechos de canções, em sonoridades que por vezes lembram assobios ou sons agudos similares.
6. ZÉ, Tom. “A Estética do Plágio”, texto no encarte do CD Com Defeito de Fabricação, com edição brasileira pela gravadora Trama, 1999. Os textos estão disponíveis no site do artista, aqui: www.tomze.com.br/pdefeito.htm#6.
7. DUNN, Christopher. “Tom Zé põe dinamite nos pés do século”, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, disponibilizado no site de Tom Zé: www.tomze.com.br/art82.htm.
8. CALADO, Carlos. “Antropofagia devora a atualidade no EIA!”. São Paulo: Folha de S. Paulo, 14 de dezembro de 2005.
9. MONTANARI, Federico. “Semiotica dei medi e del movimento. Semiotica in movimento?”, em PASQUINELLI, Matteo. Media Activism, Strategie e pratiche della comunicazione indipendente. Roma: DeriveApprodi, 2004, pp. 30-37. O livro pode ser baixado aqui: www.rekombinant.org/old/media-activism/MediaActivism.pdf.
10. ECO, Umberto. “Guerrilha semiológica”. Em: Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, pp. 165-175.
11. BIFO, Franco Berardi. “O futuro da tecnosfera de rede”. Em MORAES, Dênis de (org.). Por uma outra comunicação. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 292.
12. Ver a página do grupo na rede CoroColetivo, acessado em 02/01/2006: www.corocoletivo.org/arnstv/index.htm.
13. A entrevista é igualmente reveladora das contradições assumidas pelo coletivo e está arquivada aqui, acessada em 02/01/2006: www.rizoma.net/interna.php?id=121&secao=camera.
14. A respeito de certa dificuldade da videoarte em lidar com narrativas mais pops e próximas do formato televisivo tradicional, bem como de sua guinada mais para o contemplativo do cubo branco das galerias, ver o ensaio de BEAGLES, John e BEECH, David: “Video Purified of Television - On why video art wants to be boring”, publicado na revista Variant, acessado em 02/01/2006: www.variant.randomstate.org/18texts/18videobore.html.
15. LOVINK, Geert e GARCIA, David. “O ABC da Mídia Tática”. Publicado na revista Rizoma. Acessado em 03/01/2006: www.rizoma.net/desenv/interna.php?id=131&secao=intervencao.
Entrevista Teté Martinho, 01/2006
Na sua trajetória, o que veio antes: o envolvimento com a arte ou a idéia de ativismo?
Não penso em termos de ativismo. O que eu tinha muito claro, desde os primeiros trabalhos, era a idéia de intervenção urbana, de agir no espaço público, que te faz fugir de suportes tradicionais, como tela ou escultura, e propõe a construção de um novo suporte junto com o lugar, na criação de situações e de imagens. Ao desenvolver trabalhos de intervenção, entendi que eles não envolvem uma discussão só plástica, mas também sobre as lógicas urbanas. O que me motivou foi discutir o lugar onde o artista age, um tema recorrente na história da arte. A ampliação que a gente vê durante o século 20, a propagação da idéia de arte e vida como coisas interligadas, e não separadas por uma moldura. Cheguei à política em conseqüência disso.
Como foi sua formação em arte?
Saí de minha primeira faculdade de Educação Artística com a sensação de que não havia caminho para o novo. Era como se tudo já estivesse esgotado. Fiz direção de curtas e roteiro de cinema, mas o cinema também não me servia: é uma estrutura industrial, que nunca está só na sua mão. Queria experimentar a linguagem, ser autoral, autônomo. Voltei a olhar para as artes plásticas a partir de uma exposição da Ana Tavares que vi no MuBE, Relax'o'visions (1998). Esse trabalho me apontou caminhos que eu não acreditava que pudessem existir nas artes plásticas. Era uma exposição em que você não sabia muito bem o que era obra e o que era museu. Ela tinha uma lógica de se misturar com a arquitetura, de usar bancos, espelhos, coisas que você vê lá diariamente. É nesse limite entre o que é reconhecido como arte e o que seria a vida cotidiana, que você não percebe com outros olhos, que há uma tensão interessante de trabalhar. E ela faz isso com uma qualidade plástica super refinada.
Esse é um ponto importante?
É. Por mais que haja uma discussão política e uma idéia de intervenção, é importante que o trabalho funcione também como linguagem, que tenha o acabamento necessário. Porque se o que a gente discute politicamente é temporal, focado em determinadas questões, meu interesse é me debruçar sobre as questões de linguagem, que são quase atemporais. O grande perigo de cair na categoria de arte política é te tirarem o que você tem de maior valor. A arte como instrumento é um dado atemporal. Quando você fala em arte política, é como se uma coisa se embrenhasse tanto na outra que no fim a obra não pode se descolar para um nível de transcendência, que não diz respeito a uma história específica, mas à humanidade.
O registo ganha uma importância especial, nesse contexto?
A idéia do registro está sempre presente: a obra é pensada em função, também, desse segundo momento. Minha primeira exposição, que fiz no meu próprio ateliê, já era um trabalho em dois momentos: havia a coluna de raio laser apontada para cima, uma obra com princípio escultórico claro. E havia o registro, em que o trabalho aparece no contexto da cidade, como obra fotográfica. Nesses primeiros trabalhos plásticos, que nasceram de uma pesquisa com trilhos de luz impressos no céu, por exemplo, por helicópteros, eu usava a luz, matéria-prima da fotografia, em obras que já carregavam a idéia do registro fotográfico. E tem também essa brincadeira recorrente da coisa que sai para fora do espaço expositivo.
Por mais plásticos que resultem, é como se seus trabalhos não se realizassem plenamente senão no contato com o espaço público, onde encontram, também, um significado político. Queria que você falasse da série Coluna Laser, um exemplo claro disso.
Depois da exposição no ateliê, fui convidado para mostrar o trabalho no Salão Nacional de Artes de Belo Horizonte (2000). A Coluna Laser II (2004), no Sonarsound de São Paulo, já é um desenvolvimento: dois lasers horizontais que apontam para o Centro Empresarial e a favela de Paraisópolis. Foi uma estratégia feliz: a força de capital gigantesca da Nokia, que fazia o evento acontecer e preocupava-se apenas com o público que pode comprar celular, era deslocada, em forma de luz, para um ponto da cidade que a Nokia jamais iria iluminar. Coluna Laser III (2005), na Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea, na Bahia, é uma decorrência do Sonar. Só que, nesse caso, havia a discussão da identidade negra e eu queria apontar o não-lugar, o lugar que pode ser perdido se você não tem como determinar qual é exatamente sua identidade negra, branca, índia. A obra é isso: há um apontamento, uma direção, mas não um ponto específico.
Você tem uma assinatura gráfica forte, que se insinua até quando a tônica é a ação. Qual é a importância do desenho no que faz?
Tudo tem um desenho por trás. A idéia do desenho como uma estrutura primeira do trabalho fica cada vez menos clara à medida que vou saindo da discussão plástica e entrando em relações humanas. Mas nos trabalhos plásticos ele é sempre a estrutura básica, que às vezes é ampliada espacialmente e vira escultura, ou é transformada pictoricamente através da fotografia. E ainda que desapareça a idéia gráfica, no sentido de uma linha montada, fica a idéia do gesto. Como, por exemplo, no trabalho em que me prendo a uma ponte levadiça em Roterdã para revelar seu movimento.
Nos processos de intervenção, você quase sempre trabalha em grupo. Como surgiram A Revolução Não Será Televisionada, a idéia de interferir na TV e a ligação com a chamada mídia tática?
A relação com a mídia é um incômodo para todo mundo que vive nessa sociedade contemporânea espetacularizada, que tira o indivíduo da sua relação social e o coloca em um mundo que não existe como experiência, só como contemplação. Toda arte, por mais espetacular que seja, sempre propõe uma experiência de troca. A Revolução Não Será Televisionada começou com um show que fiz com o Eugênio Lima, Roberta Estrela D'Alva e a Unidade Móvel. Editei um vídeo com intervenções minhas para esse show e, depois, senti que havia espaço para inserir o material na TV. Fechamos um programa semanal no Canal Universitário, formamos o grupo com Fernando Coster, André Montenegro, que trabalham com cinema, e Daniela Labra, crítica de arte, e começamos a chamar artistas de vídeo que não tinham um circuito além do da arte para exibir. Os programas tinham estrutura de narração, vídeo, intervenção e música, e eram colagens feitas com trabalhos de 50 desses artistas. Era muito interessante como proposta de intervenção: você estava zapeando entre o SBT e a Cultura e de repente se deparava, por exemplo, com Lia Chaia se riscando em Desenho-Corpo. Era uma ruptura clara com a proposta televisiva de repetição e cópia. O Mídia Tática Brasil, organizado pelo Ricardo Rosas em 2003, foi o momento em que vários grupos perceberam suas conexões e sua identidade com a rede internacional de ativismo.
Liberte-se (2003), do ARNSTV, surgiu de uma parceria feita nessa época com o grupo de teatro Cia. Cachorra e é um exemplo acabado de proposta de intervenção urbana que se define na resposta da rua. Como começa um trabalho assim?
Quando começamos, só tínhamos a placa. Resolvemos sair na rua com ela e ver o que acontecia. Fomos percebendo na ação o que era o trabalho. As pessoas começaram a nos questionar: mas vocês estão me mandando me libertar do quê? Percebemos que o lance era devolver a pergunta. Mas do que você quer se libertar? E aí que surge todo o trabalho. Liberte-se é quase uma ironia sobre essa figura meio heróica do artista que vai pra rua, na sua escala individual, e lida com a escala urbana. A idéia de convidar um grupo de teatro, de colocar atrizes numa situação que não é de palco, uma situação de troca completamente improvisada, e depois colocar no palco essas mesmas atrizes fazendo um trabalho cênico em paralelo à imagem delas na cidade é um jeito de fazer uma brincadeira com esse artista-herói.
A ironia também é a marca de Blitz (2002). O que ela te permite?
Em Blitz, eu propunha uma blitz fotográfica para os policiais: do mesmo jeito que eles vêm com as armas e me colocam numa situação constrangedora, eu chegava com a arma que tenho, a câmera, e pedia para tirar uma foto com eles. A maioria recusava, alguns aceitavam. O oficial tirava a foto, eu do lado dos policiais, só isso. As imagens que resultam são muito ambíguas: você percebe claramente um incômodo em mim, e as poses de autoridade e força que os policiais criam. Consegui expor as fotos no Comando Geral da PM de São Paulo e eles não perceberam a ironia. Para eles, a imagem refletia só o lado positivo do cidadão querendo se aproximar da polícia. Já os críticos levantam exatamente o ponto irônico disso, o sinal que eu fazia em algumas fotos, de tipo positivo operante, essas coisas de polícia. Fui abordado por manos do rap que falavam: meu, como é que você tá saindo em foto com polícia? Para mim, esse estado-limite é que põe movimento no trabalho. Ou ele seria panfletário. Seria eu fotografando a polícia batendo num cara. Quero poder ser lido de várias maneiras.
A Frente 3 de Fevereiro tem uma temática muito específica: a distinção que a polícia faz entre negros e brancos. Qual é a sua contribuição como artista ao trabalho do grupo?
Foi minha mãe, Maurinete Lima, quem propôs criar uma frente de trabalho para discutir o caso Flávio Sant'Ana e como ele desafia toda uma crença de que o negro, se galgar os caminhos sociais da elite branca, está se livrando do preconceito. Flávio estudou, se formou, tinha uma namorada branca, carregava todos esses símbolos, e foi morto brutalmente por uma polícia para a qual a cor determina quem é suspeito - e que mata por “atitude suspeita”. Minha contribuição não é na discussão teórica do preconceito, mas na organização das linguagens e na criação das estratégias de intervenção. Nossa primeira ação, Monumento Horizontal (2004), vem de um legado da Argentina, muito forte em ativismo político e na junção de arte e política. Para identificar os lugares onde pessoas eram mortas, eles usavam monumentos que, por não se erguerem verticalmente, podem ser feitos de forma clandestina e têm mais permanência. Nossa idéia era fazer monumentos em série, em outros incidentes policiais, para que isso virasse uma estratégia popular de manifestação.
Em Jailtão - Ônibus, o artista tenta vender consciência dentro de um ônibus, como um ambulante. Em Liberte-se, meninos vendem em um farol um panfleto com a expressão do título. Achar essas brechas para a ação é uma preocupação recorrente. Ensinar estratégias também é?
Brechas, fendas, espaços não preenchidos, tanto no espaço urbano como na vida pública, é que são interessantes de explorar em intervenção. O ponto, para mim, é encontrar as estratégias para cada ação, pensar que impacto elas terão no cenário urbano, o que vão dizer etc. Em Futebol, por exemplo, a bandeira que é aberta com a frase “Onde Estão os Negros?” na hora do gol usa o momento em que a TV mostra a torcida para expor uma mensagem que não é de futebol. Então é como se a gente estivesse inventando um repertório de estratégias para usar e propagar. Se elas serão usadas ou não, a história é que vai dizer.
Biografia comentada Teté Martinho, 01/2006
O gesto ao mesmo tempo estético e político, que encontra suporte no espaço urbano, marca a obra de Daniel Lima (Natal-RN, 1973), das experiências esculturais com raio laser à produção dos coletivos de intervenção midiática que o conectam à onda internacional de ativismo dos anos 00. A busca de um espectro de ação mais amplo e randômico que o circuito da arte aproximou o artista da cidade, compreendida tanto como lugar físico quanto como teia de relações codificadas de poder e troca. Suspender a percepção normal dessas relações, substituindo-a por uma tensão que pode ou não ser povoada por mensagens específicas, é o intuito primordial de sua obra, que funde gêneros com liberdade e compreende, mais do que um resultado, o percurso do planejamento da ação até seu registro.
Lima já aproxima gesto artístico e espaço urbano em Daniel na Cova dos Leões (2001), seu trabalho de conclusão do curso de Artes Plásticas na Escola de Comunicações e Artes da USP. Nas intervenções reunidas pelo vídeo, ele ora desenha um traço efêmero com areia em uma avenida, a partir de um carro em movimento, ora registra, da janela de um trem, composições produzidas com os rastros das luzes da cidade. A seqüência inaugura uma vertente importante de pesquisa, que passa por desenhos luminosos criados com helicópteros e registrados em fotografia, e dá origem à série Coluna Laser (2001-2005), em que cria, a partir da plasticidade dos raios, intervenções urbanas carregadas de significado. Exibida no festival Sonarsound (2004), Coluna Laser II - Opostos conectava a favela de Paraisópolis ao Centro Empresarial de São Paulo. No ano seguinte, Coluna Laser III - Mar se projetava para o Atlântico desde o píer do MAM da Bahia, recompondo a ponte fugidia entre Salvador e África na primeira Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea.
A maturação da refinada obra plástica de Lima, que chega a uma expressão importante na série Coluna Laser, corre paralela ao cultivo de elementos da cultura hip-hop (em trabalhos seminais como Pichação Laser, de 2001), à emergência das temáticas sociais e aos experimentos com formas diversas de intervenção, que ele realiza sozinho ou em grupo, e registra em vídeo ou foto. Em Tudo que está no alto é como o que está embaixo (2003), preso a uma ponte levadiça, acompanha seu deslocamento para cima, como um passageiro clandestino. Em Blitz (2002), se faz fotografar com policiais militares, criando imagens emblemáticas do desconforto de parte a parte e tocando, com ironia, o tema do racismo policial. No mesmo ano, cria com o irmão, o DJ Eugênio Lima, o espetáculo A Revolução Não Será Televisionada, que soma imagens de intervenções, música ao vivo e narração - em um formato cujas variações ele exploraria com freqüência nos anos seguintes.
O verso da canção The Revolution Will Not Be Televised, de Gil Scott-Heron, batiza também o núcleo de mídia que Lima cria em seguida com Fernando Coster, André Montenegro e Daniela Labra, e que se dedica a produzir interferências midiáticas e a desafiar lendas da comunicação de massas. O grupo alimenta um programa na TV USP com edições radicalmente experimentais de obras em vídeo de artistas como Lia Chaia, Tiago Judas, Ricardo Ramalho, Túlio Tavares e Bijari, trechos de programas regulares e narração. O tom de ativismo atrai a atenção do crítico Ricardo Rosas, que inclui o grupo no festival Mídia Tática Brasil (2003), aproximando-o de coletivos locais e internacionais que trabalham em linhas correlatas. No Festival, o ARNSTV produz a ação registrada no vídeo Famosos em passeio, Famosos em chamas, em que passeia com displays em tamanho natural de celebridades da TV pela cidade, explorando até o máximo a ironia dos semblantes congelados e, finalmente, queimando-os em uma fogueira na avenida Paulista.
Realizado no mesmo ano, com o grupo de teatro Cia. Cachorra (Fabiana Prado, Melina Anthis e Paula Pretta), Liberte-se retoma a idéia da intervenção urbana que gera registro e espetáculo. Com ações em três cidades, a obra exemplifica tanto a riqueza das reflexões produzidas por anônimos a partir da exortação do título quanto a singularidade das estratégias de intervenção criadas pelo grupo - que, em uma das seqüências, convida crianças a vender em um sinal de trânsito, por R$ 1, um folheto contendo a frase do título e balas de revólver usadas. Subverter o uso de espaços alternativos de comunicação e troca é uma estratégia recorrente na obra de Lima - que, na mesma época, com Fernando Coster, registra a tentativa do artista Jailtão de vender tolerância e consciência aos passageiros de um ônibus urbano.
Truculência e racismo policial - mote da ação em que tranca com cadeados uma praça guardada por policiais na VIII Bienal de Havana (2003) - voltam a ter destaque entre os temas de Daniel Lima a partir de 2004, quando ele passa a integrar o coletivo Frente 3 de Fevereiro. Fundado por sua mãe, Maurinete Lima, o grupo é uma resposta ao assassinato do jovem advogado negro Flávio Sant'Ana pela Polícia Militar de São Paulo. Em sua ação inaugural, Monumento Horizontal (2004), marca o local do crime com uma placa de concreto, emprestando estratégia usada por ativistas argentinos nos anos de ditadura militar no país. Composta ainda por Achiles Luciano, André Montenegro, Cibele Lucena, Eugênio Lima, Felipe Teixeira, Felipe Brait, Fernando Coster, Fernando Sato, Julio Dojcsar, Maia Gongora, Maysa Lepique, Nô Cavalcanti, Pedro Guimarães e Sônia Montenegro, a Frente explora um episódio de racismo no esporte na performance Futebol, comissionada para Associação Cultural Videobrasil para abrir o 15º. Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil (2005).
Responsável, com Eugênio Lima, pela coordenação artística dos espetáculos do grupo e por suas estratégias de ação - como a bandeira gigantesca erguida em um estádio lotado, na hora do gol, com a pergunta “Onde Estão os Negros?”, em Futebol -, Daniel Lima segue produzindo em várias frentes, freqüentemente expandindo os limites de seu trabalho e da arte associada à intervenção urbana. Em 2004, dirigiu com Fernando Coster e Thiago Dotori os b-boys que dançam em Mutant Break, clipe do DJ Malocca, que reúne os produtores Will Robson e Noizyman e a cantora Clara Moreno. Em 2005, participou do projeto colaborativo Perambulação, que reuniu artistas brasileiros e holandeses na segunda Bienal Internacional de Arquitetura de Roterdã; coordenou a intervenção CUBO, do Centro Cultural Banco do Brasil, com os grupos A Revolução Não Será Televisionada, Bijari, Cia. Cachorra, C.O.B.A.I.A., Contra Filé e Perda Total, em São Paulo; e realizou, dentro do festival de novas mídias Prog: Me, a irônica Arrastão, intervenção com 30 modelos loiros nas praias de Ipanema e Leblon, no Rio de Janeiro.
Referências bibliográficas Teté Martinho, 01/2006
Para ver e saber mais sobre a trajetória e as obras de Daniel Lima:
Livro6 (Download pdf)
Nesse livro-portfólio poético, o artista reúne suas pesquisas com rastros luminosos e raio laser, fotografias da série Blitz, imagens de intervenções no metrô e ruas de São Paulo e reflexões sobre arte.
I Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea
Rota do comércio escravo por três séculos, o Atlântico foi o ponto de partida da curadoria da Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea (2005), realizada pela Associação Cultural Videobrasil, e da obra Coluna Laser III - Mar, de Daniel Lima.
Lançando um raio de consciência multíplex?
O crítico Ricardo Rosas escreve sobre Coluna Laser III - Mar, do eixo visual da Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea (2005).
Arrastão para prog:ME
Registro de Arrastão, projeto de intervenção criado por Daniel Lima para o festival de novas mídias Prog: Me (2005), no Rio de Janeiro
Registro de Monumento Horizontal, ação inaugural da Frente 3 de Fevereiro.
A Revolução Não Será Televisionada, Frente 3 de Fevereiro, Bijari, C.O.B.A.I.A., Contra Filé e Grupo Arte Callejero, da Argentina, criam intervenções para o Zona de Ação (2004), do SESC São Paulo.
Tecnopolíticas em ação
A convite da revista eletrônica Trópico, o artista Lucas Bambozzi e o professor Eduardo de Jesus entrevistam o holandês Geert Lovink, ativista de mídia e criador do festival Next 5 Minutes.