Ensaio Pilar Villela, 11/2004

A textura imaginária do real

O trabalho de Manolo Arriola, tratando-se de um videoartista, mereceria dois epítetos surpreendentes: é pictórico e moderno ao mesmo tempo. Estas breves linhas, destinadas a funcionar como uma introdução, se limitaram a justificá-los.

A consideração dos aspectos meramente formais e perceptivos, como o principal propósito de toda pesquisa pictórica, é um dos centros - talvez o mais reconhecido - de toda a reflexão da pintura moderna. Este “retinianismo” denunciado por Duchamp está estreitamente vinculado à busca de uma especificidade do meio que, por sua vez e de maneira um tanto paradoxal, acompanhou o vídeo como arte desde a sua aparição. A coincidência do desenvolvimento técnico com a preponderância de determinado programa artístico fez que uma parte importante dos pioneiros se dedicasse a pesquisar a qualidade da imagem gerada por este meio em particular, assim como as características que o diferenciam do que - em aparência - era seu parente mais próximo, quer dizer, o cinema.

Este parágrafo introdutório poderia fazer o leitor pensar que encontrará Budas contemplando-se a si mesmos ou horas de retroalimentação de sinais eletrônicos. Não é assim. Se bem que um dos primeiros trabalhos de Manolo - “Paseo catódico” - poderia recordar, pelo uso tautológico de imagem e texto, essas aventuras dos pioneiros conceituais do meio, seu trabalho posterior apresenta uma série de paradoxos quanto aos elementos constitutivos tanto da imagem em si como da imagem eletrônica em movimento, que o assimila em outra ordem de idéias. Ainda que, na minha opinião, o trabalho de Manolo possa ser classificado de moderno, já que apresenta uma dissociação analítica dos elementos constitutivos da imagem. Esta característica de sua obra vem diretamente de um interesse do artista pela história da arte, não da maneira de uma data concedida pela pós-modernidade ou segundo a lógica da colagem, senão com uma espécie de noção de diálogo com a tradição. Não é casualmente então que - como é possível ver neste Dossier - Manolo esteja muito interessado em documentar o trabalho de artistas, sejam os clássicos ou os seus contemporâneos.

Falarei de um trabalho específico para exemplificar este modelo analítico. Na Exposição Universal de Paris de 1900, o artista mexicano Jesús Fructuoso Contreras foi o primeiro latino-americano a obter o Grande Prêmio de Escultura com sua obra “Malgré-tout”. Fructuoso não somente tinha a desgraça de ter semelhante nome, mas também havia sofrido a amputação de seu braço direito. O fato de que a escultura ganhadora, uma mulher de mármore, presa, que se arrasta pelo solo, leve o título “Apesar de tudo”, a obra tem sido sempre associada a esta infeliz circunstância da vida do autor.

O “Malgré-tout” de Arriola (que se chama Manuel e tem seus dois braços em perfeito estado) nos apresenta uma mulher com roupa íntima preta que caminha sobre os joelhos e traz nas mãos um estranho artefato que remete tanto a uma trompa como a uma máscara de gás. A imagem atrasada e repetitiva faz alusão também - diretamente - às célebres fotografias de Muybridge. Enquanto este corpo, já convertido em linguagem e encadeado por signos, se arrasta de maneira mais ou menos penosa pelo solo, é possível ver silhuetas masculinas de pé, o que gera uma situação espacial na imagem. Ainda que o vídeo tenha uma narrativa e um sentido de duração, estes não respondem à lógica construtiva da montagem - característica da imagem em movimento -, senão ao posicionamento dos elementos no plano, quer dizer, a um raciocínio pictórico. A temporalidade - anulada pelo recurso da repetição - não faz mais que tornar manifesto este último.

Para o olhar contemporâneo, educado nos tempos da televisão e do cinema hollywoodiano, este efeito resulta praticamente impossível com uma imagem que seja verdadeiramente estática, pois sua imobilidade faz que ganhe, quase de imediato, o objeto, seja como o monitor-móvel decorado que exibe uma imagem, ou como a videoprojeção-telão que cobre a parede de uma videoinstalação.

Com este recurso, Arriola não só explora amplamente as qualidades mais imediatas do meio, suas texturas e cores, seus “tratamentos”, mas também nos obriga a reconhecer os elementos de composição da imagem como tal. ”Apesar de tudo”, e utilizando um mínimo de recursos técnicos como a iluminação ou a pós-produção, a obra de Manolo já é uma natureza-morta (“Still life”), um retrato (“Carmen”) ou uma cena (os homens que lutam ou jogam basquete), que volta sempre a esta sinalização, a isso que em “O olho e o espírito” Maurice Merleau-Ponty encontra na obra de Klee ou Cézanne e denomina “a textura imaginária do real”.

Entrevista Eduardo de Jesus, 11/2004

Como e quando você começou a se interessar pela produção de vídeos?

Foi através da escola, quando ingressei na Oficina de Vídeo de La Esmeralda. Como aluno, e agora como professor, este espaço tem sido muito importante para a minha formação nas artes plásticas. Especializei-me em desenho, no qual creio existirem muitos registros temporais, movimento e descrição do espaço.

Em seus trabalhos a relação espaço, tempo e movimento parece um fator constitutivo dos vídeos, assim como a simulação dos ruídos típicos da televisão. Vemos isso tanto na apropriação do texto de Gombrich junto às imagens que vão se ampliando na tela em Paseo catódico (1999) como no movimento de imagens que são quase vestígios e ruídos em Malgré-tout (2001). Como você vê essa relação entre o registro do movimento e sua recriação no momento da edição?

Minha primeira obsessão foi a edição por computador. O espaço virtual que o software oferece destaca equivalências entre o plano e a duração; com esta ferramenta pode-se antecipar funcionamentos da imagem em movimento, para criar espaços virtuais no vídeo. A ação, o deslocamento no espaço e o movimento de câmera têm de ser planejados. Paseo catódico é a representação de uma tira temporal e espacial que segue o personagem em um eixo perpendicular ao olhar, enquanto o texto é a ocasião para a aproximação no eixo da profundidade que nos leva à superfície digital. Malgré-tout e Rey são espaços circulares e cíclicos.

Em Flicker (2000) parece que você se apropria do próprio ruído típico do vídeo para registrar um movimento inexistente na imagem original do filme La tormenta, de Fernando Vallejo. Qual a sua percepção dessa relação entre os registros do movimento pelo cinema e pelo vídeo?

O trabalho, acredito, é principalmente uma resolução gráfica que vem da interpretação de um meio para outro, o cinema é interpretado pelo vídeo e este foi interpretado para ser digitalizado. Isto é uma série de velocidades alteradas mas alinhadas para reproduzir movimento. Neste caso, os “fields” do vídeo tendem a se desentrelaçar e produzir vibração. Neste trabalho, assim como em Mismo, usei um periférico com um “jog” que era parte do equipamento; boa parte desses trabalhos são inspirados pela monitoração do tempo real que o computador tira dos periféricos. No caso de Mismo o que vemos é um testamento da manipulação direta em tempo real, quer dizer, existem efeitos mas não existe “rendering”. Além do aspecto técnico, creio que este trabalho aproveita essas defasagens para imaginar ou falar da experiência, seja traumática, seja religiosa ou através da lembrança. Isso é importante porque, do ponto de vista expressivo e artístico, o tempo padronizado de reprodução não é sempre o que desejamos. Seguramente, muito da linguagem cinematográfica tem se desenvolvido na base da expressividade e da necessidade narrativa da simulação realista dos acontecimentos, e sem dúvida muitas de nossas maneiras de representar a realidade e a lembrança vêm do cinema.

Seu trabalho transita por diversos gêneros (televisão, documentário e videoarte). Existe uma contaminação desses gêneros em seus trabalhos, quero dizer, características de um passam para outros?

O documentário e a televisão vieram depois da videoarte e derivam dela, ainda que ultimamente tenha apresentado Escribe en mí, que é basicamente a documentação de um projeto artístico. Interessa-me documentar os processos manuais, artesanais e artísticos e a obra de arte. No fazer encontro muitos significados. Uma lembrança - e material em vídeo - que tenho do Brasil e que me parece fantástica é uma que mostra a preparação de algumas receitas. Esse processo é extremamente expressivo e bonito. Espero editar esse material em 2005.

Em 2003 você esteve na Alemanha com uma bolsa na ZKM para desenvovler um trabalho de projeções cênicas. Como foi esse tempo na ZKM e como você vê o resultado final do trabalho com Iván Edeza?

O mais importante desse trabalho foi chegar a um acordo criativo satisfatório tanto para Iván Edeza como para mim e para a diretora criativa Renate Ackermann. O entendimento das necessidades cênicas e o trabalho com documentos incompreensíveis com os quais não estava familiarizado, tais como roteiros e partituras ou software em alemão, foram extremamente estressantes e estimulantes ao mesmo tempo. Acredito que ter estado na Alemanha por um mês com Iván foi muito produtivo para o projeto, porque lá vimos muitas obras de arte cujo gosto compartilhamos e que têm influenciado os dois. Sem dúvida, para mim a parte mais bonita do projeto foi a montagem no Teatro Juárez de Guanajuato, onde vi e ouvi a orquestra trabalhar e conheci como é um teatro do início do século XX de todos os seus lados.

Como você vê a cena da arte eletrônica hoje no México?

Muito intelectualizada e hermética, tanto quanto a multimídia. Mas principalmente com valores e objetivos artísticos pouco definidos. O vídeo tem lugar dentro de uma idéia de arte preestabelecida, que ainda sebaseia no conceitualismo (bastante alterado), não utiliza os meios de maneira inclusiva, mas exclusiva, de acordo com o sistema do mercado de arte. O vídeo no México não tem ampliado a idéia de objeto artístico e mercadoria tradicional. A arte eletrônica, creio, é um conceito pouco conhecido enquanto suas possibilidades midiáticas e de gerar conceitos comunitários e de conhecimento das sociedades e dos meios. A cena de música eletrônica e os grupos interdisciplinares das cidades na fronteira como Tijuana ou Monterrey me parecem muito bons.

Biografia comentada Eduardo de Jesus, 11/2004

Arriola estudou na Escola Nacional de Pintura, Escultura e Gravação La Esmeralda, do Centro Nacional de las Artes, na Cidade do México.

Em 1998 iniciou a produção de vídeos com a realização de Narvarte, vídeo que mostra uma visão bastante peculiar da Cidade do México. Logo em seguida produziu Paseo catódico (1999), uma reflexão sobre os modos de captação do movimento e do tempo no vídeo. O vídeo de Arriola recebeu, neste mesmo ano, os prêmios de melhor edição e de segundo lugar na categoria vídeo experimental no Festival de Video e Artes Eletrônicas Vid@rte. Foi exibido também nos festivais Vidéoformes (Clermont-Ferrand, França) e Interférences (Belfort, França).

Ainda neste mesmo ano recebeu bolsa para jovens realizadores do Fundo Nacional para a Cultura e as Artes (CONACULTA-FONCA 2000-2001), com a qual realizou o vídeo Malgré-tout (2001).

Entre 2000 e 2001 expôs Props (utilerías), sua primeira videoinstalação, na exposição coletiva Actos de Fe, imágenes transfiguradas, no Laboratorio Arte Alameda, na Cidade do México. Em 2001 realizou o vídeo King, exibido no festival Interférences (Belfort, França) e no 13º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil (São Paulo, Brasil). No mesmo ano realizou sua primeira exposição individual, no Museu Universitário de Arte Contemporânea da Universidad Nacional Autónoma de México, na Cidade do México, na qual mostrou a videoinstalação Juego diferido.

Em 2002 seus vídeos foram exibidos em uma retrospectiva na Casa das Culturas do Mundo, em Berlim, em programa coordenado por Mike Kwella. No mesmo ano seu vídeo Still life foi selecionado para a 10ª Bienal Nacional de Fotografía organizada pelo Centro de la Imagen, na Cidade do México. Ainda em 2002 realizou o documentário Mona Hatoum, sobre a artista libanesa e sua estada durante exposição no Laboratorio Arte Alameda, na Cidade do México.

No ano seguinte trabalhou com Ivan Edeza em videoprojeções cênicas para o espetáculo A conquista do México, de Wofgang Rhim, apresentado no Teatro Juárez, em Guanajuato, e no Palácio das Belas-Artes, na Cidade do México. Para a realização deste projeto, Arriola esteve em residência artística no ZKM, em Karlsruhe, Alemanha. No mesmo ano realizou sua primeira curadoria para a 1ª Bienal Nacional de Arte Universitária pela Escola de Artes da Universidad Nacional Autónoma de México. Em 2003 realizou o vídeo Carmen, exibido em 2004 no Fórum de Arte Contemporânea Latino-Americana da Universidad Nacional Autónoma de México.

Realizou em 2004 o vídeo Escribe en mí e um documentário sobre os painéis do artista Pablo O'Higgins, para comporem exposição do pintor no Museo Antiguo Colegio de San Ildefonso, na Cidade do México.

Referências bibliográficas Eduardo de Jesus, 11/2004

Nesta seção, além de apontarmos websites que podem ajudar a ampliar o conhecimento sobre o artista em foco, incluímos também links de outros artistas, centros de mídia e espaços culturais com o objetivo de ampliar a divulgação da cena de arte eletrônica nos países do circuito sul.

O Laboratorio Arte Alameda, na Cidade do México, é um espaço que privilegia a difusão e a reflexão da arte contemporânea. Priamo Lozada, curador do espaço, é freqüente colaborador da Videobrasil e responsável pela indicação de Manolo Arriola para o Dossier.

http://www.artealameda.bellasartes.gob.mx/index.php?option=com_content&view=frontpage&Itemid=128

No website do artista mexicano Fernando Llanos é possível conhecer, além do trabalho dele próprio, uma série de pequenos vídeos de outros videoartistas mexicanos.

http://www.fllanos.com/

http://www.fllanos.com/artistainvitado/index.html

Reportagem do website cultural etecéter@, sobre Pola Weiss.

http://www.etcetera.com.mx/2000/399/jcv399.html

Website do Video Data Bank, com informações e trechos de vídeo de Ximena Cuevas, uma das mais consagradas videoartistas mexicanas.

http://www.vdb.org/artists/ximena-cuevas

CUEVASX - Uma das jovens artistas mexicanas que vem despontando no cenário internacional é Minerva Cuevas. Com um trabalho voltado para a atuação política e social, Minerva tem se apresentado em vários países do mundo. Minerva participou da última edição do “Emoção Artificial” (2004) no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo. Seu website “Mejor vida corporation” mostra um pouco de sua obra.

http://www.irational.org/minerva/resume.html