Ensaio Carla Zaccagnini, 05/2004

Wagner Morales

Escrever sobre a obra de um artista é muito diferente de escrever sobre um trabalho específico ou sobre uma exposição. Claro que, de qualquer forma, parte-se sempre de um conjunto de obras, determinado por um período da produção ou pelas preferências do artista que nos mostra uns trabalhos e esconde outros. Mesmo num texto como este, sobre a produção de Wagner Morales, sempre se fala de um detalhe e nunca se pode afirmar do artista algo que ultrapasse o domínio dos trabalhos a que se refere o escrito. Enquanto vivo, é de se esperar que o artista sempre prepare surpresas, mude de idéia, invente novas questões e novas maneiras de dizer as mesmas coisas.

Talvez seja mais um desses truques simplificadores que nos ajudam a entender tudo, como os que usamos quando chegamos num país a estrear e tentamos compreendê-lo todo de uma vez, procurando ou fabricando equivalências entre os sons da língua indecifrável, os cheiros e sabores da comida, os traços e gestos dos habitantes e as condições climáticas. Como se um dado pudesse ser explicado pelo conjunto dos demais, como se a soma dessas especificidades fosse um número racional inteiro. Talvez seja mais um desses truques, mas o fato é enquanto assistia a fita que o Wagner preparou, com dez de seus vídeos organizados em ordem cronológica crescente, o que procurava era um fio condutor, uma constante. Claro que assisti às imagens e aos sons e me deixei levar por cada história, mas esperava também que cada filme que começava fosse de novo o primeiro e todos os outros.

Qualquer um que o tenha provado concordará que o sabor do sashimi não está em saber que o Japão é uma ilha com pouca terra disponível e muita água em toda a volta. Tampouco se pode dizer que o alto consumo de arroz na terra do sol poente esteja relacionado a uma identificação formal entre esse grão alongado e os olhos ditos puxados dos orientais. Nem a lógica que certamente explica parte dos hábitos alimentares pela localização geográfica contem qualquer resquício do gosto e da textura do peixe cru em fatias milimétricas, nem a livre associação formal é capaz de dar qualquer pista a respeito das características do arroz ou de olhos que não sejam os que identificam essas formas. O que quero dizer é que os vídeos a que este texto fará referência são insubstituíveis, como qualquer prato ou qualquer viagem, e que este texto não pode ser muito mais do que a melhor transcrição das relações, por vezes lógicas, por vezes formais, por vezes de alguma outra ordem, que pude estabelecer entre esses trabalhos e outras coisas que conheço, com todos meus vícios, meus gostos e minhas limitações.

Dito isto, seguem algumas anotações:

Procurava um e encontrei dois elementos que parecem permanentemente em questão nos trabalhos a que assisti. De um lado o uso do som, que assume sempre um papel central como assunto ou como estrutura dos filmes. De outro, as várias maneiras de construir uma narrativa. Claro que ambos são matéria fundamental para o vídeo e o cinema e que qualquer artista que trabalhe com esses meios terá que levá-los em conta. E não se trata somente de prestar uma atenção especial a esses campos. Aqui, o que existe é uma pesquisa, acredito que uma pesquisa sistemática, das funções que o som e a música podem assumir num filme, assim como das estratégias que se pode adotar para contar uma história. Parece-me que cada vídeo se encarrega de por a prova uma possibilidade, uma de cada vez, de testar uma combinação de poucos elementos enfocando um ou outro modo de fazer um filme, sempre usando o mínimo necessário para que esteja completo. Um pouco como o sashimi.

Bloombaalde (versão single chanel), 1999 (em parceria com o Rafael Campos) A tela se divide em duas para mostrar dois lugares em que ações relacionadas ocorrem. Ou dois momentos. Há um personagem principal e três coadjuvantes, os quatro com as cabeças cobertas por baldes ou baldes em lugar das cabeças. E o desenrolar de um acontecimento. Não há expressões que se vejam. O movimento é escasso e quase improdutivo, marcado pelo som que gera: a batida repetitiva do agogô que quando se interrompe a um lado da tela é recuperada na tela ao lado. O deslocamento do ator principal redunda nas flechas que desenha no chão, riscadas com a vareta do instrumento à medida em que caminha. Os demais personagens esperam à beira de uma estrada. Chega à margem de uma piscina, entra e mergulha. Seu balde flutua sozinho, desvira e vai se enchendo de água. Afunda e sai de nosso campo de visão para aparecer depois, cheio d'água, sendo levantado e empurrado para fora da piscina. O ator sai da água com a cabeça mergulhada entre os ombros, fingindo mal que não a tem. Senta-se, tateia o balde, e o vira sobre o pescoço levantando-se depois. Retoma o ritmo e volta pela estrada de terra, seguindo as flechas ao contrário. A narrativa é circular, volta-se por onde se veio. Nada do que se faz produz ou promete um resultado que escape ao que se fez. Toca-se agogô e resulta um som que condiz com o movimento que se vê. Nada surpreendente acontece e não há disfarces.

Três montes (suíte para voz e maquina de lavar), 2000 (em parceria com o Wagner Malta e o Rafael Campos)

O cenário é uma garagem ou um ateliê, um espaço interno onde ninguém mora, um pouco desarrumado e sujo. O chão está coberto de laranja por um tecido desses que aderem ao corpo, quando estão sobre o corpo. Uma máquina de lavar está no centro desse cômodo. Um homem sem camisa entra por uma porta à esquerda e se arrasta para baixo desse tapete para levantar-se diretamente atrás do eletrodoméstico, formando um dos montes. Começa a cantar e segue cantando enquanto outros dois homens rastejam sob o tecido e aparecem a ambos lados da lavadora. Passam os braços por buracos no tecido e iniciam um batuque a quatro mãos. As dimensões da máquina de lavar mostram-se totalmente adequadas para o uso aqui proposto: o tampo à altura do abdômen, as laterais ao alcance dos braços. A música está feita de poucos elementos, a harmonia do canto e o ritmo da percussão. E o que se vê também é pouco, as três silhuetas mal contornadas e, de novo, os movimentos necessários para fabricar o som. Desaparece primeiro o volume central e do som fica só o batuque. O percussionista da direita faz um movimento que infla o tecido antes de abaixar-se de uma vez e começar seu caminho de volta rumo à porta. Por último é o lado esquerdo que cresce e vai esvaziando-se lentamente até mostrar somente o volume do homem deitado já em direção à saída. Aqui também há personagens sem rosto, um roteiro de poucas ações e uma narrativa que termina como começou. Neste filme, fica ainda mais clara a importância da música que resulta do movimento dos personagens mas que também determina, como projeto, esses movimentos. Como de fato ocorre com todas as atividades que dependem do treino dos gestos, talvez. Ao dar-se por encerrado o vídeo me pergunto se seriam muito diferentes os sons e as atitudes que serviram para armar e desarmar o cenário. Não posso deixar de pensar que os três personagens esticando o tecido para cobrir todo o chão, como se faz com os lençóis para forrar uma cama king-size, e carregando desajeitadamente o peso da máquina de lavar até estar bem no centro devem ter gerado sons e imagens comparáveis às que vemos aqui.

Não há ninguém aqui #1, #2 e #3, 2000-2001

Nessa série de três vídeos a narrativa chega desgastada, é como se as ações tomassem forma em outros lugares, a escondidas. No filme #1, para começar, há uma preparação que antecede as gravações de som e imagem. Wagner colocou um anúncio no jornal, nesses classificados ditos pessoais em que homens descrevem quem pensam que são e pedem que mulheres magras e jovens telefonem para uma secretária eletrônica e mulheres “com peso proporcional” pedem a homens sem vícios nem filhos que mandem carta com foto para uma caixa postal. O som que nos conta a história é o da secretária eletrônica, com todas as mensagens recebidas, por ordem de chegada. E as imagens são de um passeio pela cidade, tomadas de dentro do carro, olhando para dentro do carro ou para a rua. Aparecem algumas mulheres absortas em tarefas que não chegamos a acompanhar, a câmera parece procurar nesses rostos a autora da voz que insiste em telefonar dizendo de novo que é a última vez. Por fim, uma voz feminina familiar avisa “mensagem apagada” e o filme termina.

Não há ninguém aqui #2 tem uma estrutura bastante semelhante, mas esta vez os recados são de amigos que chamam o artista por seu nome e falam de coisas cotidianas, uma festa, um cinema, o ensaio da banda e outras propostas que se pode aceitar ou recusar com mais leveza. Ao contrário das mulheres que se descrevem no filme anterior, aqui um nome ou um apelido garante a identidade e o reconhecimento. A imagem é fixa, sempre de dentro do carro, enfocando diretamente o motorista durante todo o percurso. E parece tratar-se de um caminho conhecido também, repetido, de casa ao trabalho ou o contrário, um caminho de sempre.

O terceiro filme da série é gravado no interior de um apartamento. Um interior muito bem caracterizado, onde os móveis estão confortáveis no lugar que parecem ocupar há muitos anos e os objetos tem cada um a sua posição demarcada sobre os móveis. O corredor, espaço condensado entre duas paredes, e a luz que entra pela fresta de uma porta, muito mais clara que a luz interna, reafirmam a sensação de espaço fechado. Em dois ou três momentos um vulto passa num cômodo que vemos de longe. E, de muito mais longe, vemos a rua pela janela e o segurança do prédio em frente na calçada. Uma voz pergunta “O que você vê aqui é o que vai sair ali no vídeo?” e outra voz diz que sim, convidando-nos a acreditar que o que ele vê é o que nos mostra.

Filme de horror

Também aqui há acontecimentos anteriores ao que vemos, o cenário está todo preparado. Um lago ao fundo e, sobre um chão de terra coberto de folhas secas, uma mangueira transparente de cerca de dez centímetros de diâmetro carrega a água que encerra até a água parada. Pareceria que esse transporte lento e seguro poderia seguir até que se terminasse o suprimento do líquido, mas a música com alguns momentos de leve tensão dá a pista de que esperamos por alguma outra coisa. Muito tempo depois, quando os olhos já se acostumaram ao movimento suave da água, a do lago estremecida pelo vento e a que corre presa na mangueira, e quando nos habituamos à música, ouve-se um primeiro estalido opaco e a mangueira estoura num ponto à direita da tela. Jorra um pouco de água que depois se imagina seguir escorrendo. Inicia-se uma série de tiros que ora acertam o alvo ora o erram fazendo pular as folhas secas do chão e algo da terra. É como se fosse inevitável o caminho da água em direção ao lago onde já se concentra. Enquanto corria nos limites impostos pela mangueira era essa trilha que garantia sua direção. Mas sabemos que o terreno em volta de um lago é sempre ligeiramente inclinado em direção à água, justamente porque é essa condição que faz com que ali se possa formar um lago. E sabemos que a água que escapa da mangueira vai se juntar , no lago, àquela que continua correndo contida.

Ficção científica, 2003

Aqui a narrativa é estruturada pelo som. O som de Solaris (Andrei Tarkovski, 1972) serve de trilha e determina a edição das imagens, seja pela música que sugere um ambiente interno ou externo, natural ou construído; seja pelos diálogos que fazem surgir dois ou mais personagens em determinada situação. Os diálogos, entretanto, são legendados com textos que não correspondem aos do original, criando uma outra história a partir das mesmas entonações, dos mesmos comprimentos de frases, das mesmas vozes e ruídos. A narrativa é instituída pelo texto e pelo som das vozes que, embora incompreensíveis, dão sentimento às palavras escritas e determinam as falsas traduções. O mesmo acontece com as imagens, que são editadas a partir de restos de estúdio para acompanhar a sonoplastia e a música. Começa com os topos de um grupo de coníferas balançando com o vento, depois um rio terroso ocupa toda a tela e a mesma água correndo é então vista de cima. Chove. Voltam as árvores com o vento. Com a qualidade do meu vídeo e da minha TV, as imagens todas tem o mesmo tom sépia, como se todas as cores tivessem se deslocado um pouco mais para perto do marrom, na tabela de cores. Um corredor de hotel ou de prédio com muitos apartamentos por andar e uma escada das que devem usar-se em caso de incêndio vista desde a rua, através da coluna de janelas iluminadas, são alguns dos interiores que aparecem no vídeo. Cenas noturnas mostram prédios que se adivinham pelos retângulos iluminados das janelas, trêmulas. Um garçom de gravata-borboleta, uma pessoa que desce pela escada que vimos antes. É uma colagem. A última cena começa num cômodo que bem poderia estar na casa em que foi feito o filme #3. Acompanhamos a câmera que caminha em direção a uma janela por onde entra bastante luz, suficiente para chegar ao corredor pela fresta de uma porta. Termina com uma aproximação exagerada da cortina de renda feita a máquina. E a frase: a terra é azul. Não há nada a fazer.

Filme de estrada, 2003

Aqui a narrativa que antecede as gravações é parte do conteúdo. O lugar foi escolhido pelo desenho que faz numa imagem de satélite. A estrada está no deslocamento de São Paulo até a praia do Cassino, há uma parte do road movie que não é filmada. O movimento que se mostra, entretanto, é oposto à idéia de uma viagem sem destino certo, em que as paradas são determinadas pela fome e o cansaço dos viajantes. O traveling é fixo, definido pela direção dos trilhos e pela velocidade do vento em relação ao peso do vagão. Esse Filme de estrada é um documentário, a gravação não editada não faz mais que mostrar o que se pode ver ao longo de um trajeto pré-existente que, uma vez escolhido, independe da vontade do usuário ou do cineasta. A narrativa está dada por uma estrutura externa, por uma seqüência de eventos reais que são registrados na ordem em que chegam ao campo de visão. Há uma certa ironia em adotar para um plano tão determinado o nome dessa praia: cassino. O som dos trilhos e a imagem contínua das pedras, ora mais altas ora mais baixas, escondendo e deixando ver o céu e a água, fazem claro esse destino inescapável e a vertigem que essa linha sempre reta, a velocidade constante e a impossibilidade de parar antes do fim sempre trazem.

Faixa escondida, 2003

No início e durante um tempo quase incômodo, a tela é escura, com o quarto superior separado do resto por uma faixa de luz. Ou de luzes, porque a memória nos dá pistas de que se trata de uma cidade vista à distância, entre a escuridão da terra ou do mar e a escuridão do céu. O som das ondas garante que o que vemos abaixo das luzes é água. Quando deciframos esse lugar, porque já nos vimos em praias como essa antes, um flash ilumina a cena e nos mostra um caminho bem ao centro. uma linha vertical, perpendicular à faixa luminosa que demarca o horizonte. Os flashes se repetem, sedimentando a imagem aos poucos, em camadas, o píer que se perde ao longe. Uma pessoa acende um cigarro e brinca com o isqueiro fazendo desenhos de luz diante da câmera. O som das ondas se confunde com o barulho da chuva, imagens diurnas desse mesmo ponto de vista se fundem com o que se adivinha dessa lugar durante a noite, pistas incompletas do lugar e dos acontecimentos que compõem o filme. Uma mão cobre a lente e deixa tudo escuro antes de aparecer finalmente praia, de dia. O aparelho de som na areia parece afirmar que todos os elementos do filme estão claros, evidentes. Agora, depois de tantas informações truncadas, de tantas coisas escondidas. A voz de Elvis Presley, facilmente reconhecível, de repente se torna clara também, límpido o som como a imagem à luz do sol, sem o barulho insistente da chuva ou das ondas. Escuta-se o coro e a voz teatral recitando que o mundo é um palco onde devemos interpretar nosso papel.

EWÁ, 2004

A água de novo. Já tinha pensado nisso em algum outro momento: a água é outra constante nesses vídeos, embora seja uma constante imprevisível. Talvez seja justamente pela maleabilidade do líquido, capaz de assumir múltiplas formas, que ele se presta como uma constante possível. Porque é continuamente diferente e sempre o mesmo. As variáveis em que se encontra a água no mundo parecem ter sido todas gravadas: o mar, a chuva, o rio, o lago, canalizada numa mangueira transparente, ausente mas sugerida na máquina de lavar, na piscina e dentro do balde. Desta vez a água aparece como personagem central. Corre aqui sobre pedras já desgastadas, erodidas por tanto lhe servirem de caminho. Não se trata só da água que vemos passando pelo recorte da corredeira que cabe na tela, mas também de toda a água que passou por ali antes, segundos antes, minutos antes, milênios antes. A água que desenhou os trilhos por onde corre agora esta água que talvez seja em parte, uma pequena parte, a mesma. O som parece de gado, até que um ruído agudo prenuncia uma mudança na ordem dos acontecimentos. A água ocupa toda a tela e desaparece. Numa repetição da cena é que vemos que se trata do contrário da ação real, transformada no filme mostrado ao contrário. Alguma coisa voa de encontro à mão direita de quem segura a câmera. Alguma coisa que essa pessoa na verdade jogou na água antes dela explodir e preencher a tela toda se expandindo num movimento que aqui, invertido, parece de contração.

Entrevista Eduardo de Jesus, 04/2004

Como você se interessou por audiovisual? Esse interesse veio da Antropologia via documentário?

Se eu for pensar no início de tudo, o interesse pelo audiovisual começou com o interesse pelo cinema, muito antes de eu saber o que era Antropologia ou mesmo o que era documentário. Provavelmente, o cinema ficcional vem antes de tudo e é a base do meu interesse pelas imagens, até hoje. Já a Antropologia, minha área de formação, está presente mais como uma porta de entrada para uma questão muito cara ao documentário, que é o reconhecimento da alteridade. No movimento de reconhecer o exótico no familiar e o familiar naquilo que é exótico, o antropólogo se aproxima do bom documentarista. Dessa forma, foram os textos de Malinowski e Clifford Geertz, muito mais que os filmes etnográficos, que me empurraram na direção do documentário, ao reconhecer o conceito antropológico de alteridade como a questão primordial na ralização de documentários. Daí que, após a faculdade, só me restou tentar fazer documentários. Tive a sorte de começar com uma produtora de vídeo que realizava documentários, mas que tinha um pé na videoarte. Foi trabalhando na PaleoTV, junto com o Kiko Goifman e com o Jurandir Müller, que percebi como o documentário poderia ser uma liguagem híbrida o suficiente para, inclusive, deixar de ser chamado de "documentário" e pairar acima das classificações. Desse ponto em diante passei a realizar documentários, ficção, vídeos experimentais, videoinsatalações, instalações, performances e esculturas sem distinção entre elas, é tudo arte. A única diferença é que às vezes fica bom e funciona, e às vezes não.

Em sua obra percebemos aspectos formais ligados ao documentário em obras de caráter nitidamente experimental. Como você relaciona experimentação e documentário em seus trabalhos?

Experimentação e documentário são coisas irmãs. Talvez o documentário seja o gênero mais aberto às experimentações em termos de linguagem cinematográfica e televisiva. É a televisão, justamente, o veículo que exibe os documentários, que é avessa às experimentações, e não o gênero em si. Os documentários a que assistimos na TV são institucionais e medonhos, mas basta uma volta descompromissada em alguns festivais especializados, ou até mesmo em alguns sites, para percebemos que o gênero é um terreno rico para a experimentação. Isso porque, como mencionei na questão anterior, o documentário é híbrido: pode ser cinema verité, cinema direto, docudrama, curto, longo, institucional, autoral, didático, jornalístico, pode tratar de qualquer assunto, pode ter locutor em off ou não, pode incorporar o seu próprio making of, em suma, pode muita coisa, o que dificulta até sua própria definição. Portanto, creio que o documentário é o tubo de ensaio perfeito para quem realiza vídeos autorais, experimentais, artísticos, ou como quiserem classificar. No entanto, não penso que o trabalho experimental seja um passo além do documentário, algo livre de suas amarras formais, ao contrário; hoje em dia, o experimentalismo em vídeo sofre de vários cacoetes, tornando-se quase que um gênero específico como a comédia, o western ou os filmes de guerra. Falta ao experimentalismo a objetividade romântica e inalcansável dos documentários: a pretensão de as imagens serem apenas o que se vê nelas. O que é visto é aquilo que é, e mais quase nada.

Existe uma certa direção temática que parece aproximar diversos de seus trabalhos. Como, por exemplo, as questões do corpo nos documentários Olhos Opacos (1998) e Na Lona (2002), e solidão na série Não Há Ninguém Aqui (2000-2002). Como esses temas aparecem? Existe algum método de pesquisa para as abordagens?

É engraçado, mas sinto que os temas estão sempre com a gente. O difícil não é fazer com que eles apareçam, mas o oposto. Às vezes penso que "preciso me livrar desse tema, ele me persegue há anos!". E isso é algo que podemos perceber nos trabalhos de vários artistas contemporâneos, aquela repetição quase minimalista dos temas. Não se trata de algo negativo, mas sim de uma característica da época em que vivemos: a reiteração quase obsessiva e esquizofrênica das mesmas questões. Nos trabalhos mencionados (Olhos Opacos e Na Lona), a questão do corpo está presente quase que da mesma forma, apesar das abordagens diferentes. Nesses trabalhos trato da questão da falência do corpo, do momento no qual ele pára de funcionar, mostrando-se frágil e ao mesmo tempo superando-se: a cegueira em Olhos Opacos, o nocaute em Na Lona. Na trilogia Não Há Ninguém Aqui o tema é, sem dúvida, a solidão. No entanto, em cada vídeo ela adquire um vetor diferente. Há a solidão presente nos anúncios sentimentais dos jornais das grandes metrópoles e o seu caráter anônimo (Não Há Ninguém Aqui #1), há a solidão do artista naquele momento de sua vida em particular (Não Há Ninguém Aqui #2), e a solidão da clausura, da imobilidade (Não Há Ninguém Aqui #3). Atualmente, o próprio cinema é o tema no qual tenho trabalhado. Método de pesquisa, portanto, não existe. Ocorre apenas o desejo de se livrar desses malditos temas através dos trabalhos. 4. Sabemos de suas incursões na música. Como, em seus trabalhos, a música é trabalhada? Existe um processo de troca entre música e imagem em seus trabalhos? Sou um músico diletante, tenho duas bandas de rock e levo esse diletantismo a sério, com direito a dois ensaios semanais, gravações de CD e shows para públicos sempre diminutos e nem sempre amáveis. Talvez por essa razão, a música, na maioria da vezes, seja o ponto de partida dos meus trabalhos. Para ser mais preciso, não só a música, mas o som de uma maneira geral. O som da secretária eletrônica na trilogia Não Há Ninguém Aqui, o som do trajeto sobre trilhos de trem em Cassino, Filme de Estrada, ou até no caso de Ficção Científica, o som dos diálogos de um filme do Tarkovski, por exemplo. Trata-se de ruídos, barulhos, vozes toscamente gravadas, que serviram de matéria-prima para os trabalhos. Mesmo quando há alguma música composta especialmente para o trabalho, ela geralmente surge antes das imagens, como no caso de Cassino, Filme de Estrada, no qual a trilha foi composta antes das gravações e com base na imaginação do que seria encontrado, tanto sonoramente quanto imageticamente, naquela locação em particular. É como se eu me colocasse no lugar dos personagens do documentário Olhos Opacos, cego, ouvindo os sons para imaginar as imagens, porém afortunado com a visão.

Algumas de suas videoinstalações também tratam da questão do corpo, como foi a passagem do single-channel para o ambiente da instalação em relação à abordagem temática.

Acho que não sei respoder a essa questão... Será que posso pensar um pouco mais nisso?

Você foi premiado no 14º Videobrasil com o vídeo Ficção Científica (2003), quase um ensaio que mostra a estrutura dos filmes de ficção, através da apropriação de sons e da alteração das imagens comuns. Qual foi a principal motivação para a realização dessa série sobre o cinema?

O vídeo Ficção Científica é o segundo vídeo dessa série e até o momento já foram realizados Filme de Horror e Cassino, Filme de Estrada. A idéia básica dessa série é a realização de vídeos sobre alguns gêneros cinematográficos, daí o título Vídeo de Cinema. Gêneros como o western, o musical, a comédia, o policial etc. baseiam-se na repetição de padrões narrativos e temáticos com uma margem de alterações limitada. Cada gênero cinematográfico possui um formato que lhe é peculiar. As platéias sabem o que esperar de uma "comédia romântica", de um "terror adolescente" ou de um "filme de ficção científica", por exemplo. São rótulos que a crítica, o público e a história do cinema se encarregam de difundir e sedimentar, construindo conceitos que, pela reiteração, se perpetuam como convenções genéricas, criando um verdadeiro paradigma do que seria o "cinemão" hollywoodiano. O projeto Vídeo de Cinema se propõe a uma leitura crítica desses gêneros, típicos do cinema clássico hollywoodiano, através do vídeo experimental, isolando elementos que os caracterizam em sua essência, que se repetem nos filmes, e os padronizam a ponto de definir-lhes como gênero. É interessante notar que o vídeo experimental e a videoarte se relacionam diretamente com a música, com as artes visuais, com a dança, com a performance, e com outras disciplinas artísticas desde os anos 60. No entanto, o diálogo com o cinema comercial clássico ainda é incipiente: o dito “cinemão” raramente é objeto de interesse da produção em vídeo. Pelo contrário, é o cinema hollywoodiano que se beneficia da produção experimental, a fim de tomar emprestado dela inúmeros recursos visuais que, após algum tempo, figuram nas salas de exibição em algum blockbuster de sucesso. A proposta desse trabalho é, portanto, fazer o caminho inverso, utilizando a linguagem eletrônica do vídeo como instrumento de releitura do cinema comercial. Dado que a narrativa do cinema de entretenimento sempre foi algo a ser contraposto pela produção de arte eletrônica contemporânea, esse projeto pretende fazer desta mesma narrativa a matéria-prima para a produção experimental: reiterar o cinema comercial por intermédio dos seus gêneros, clichês e padrões, transformando a sua natureza através do que lhe é peculiar, aproveitando o poder de síntese das imagens eletrônicas para falar de cinema por seus próprios meios, ou seja, pelas imagens.

O prêmio do Videobrasil é a residência e o desenvolvimento de um projeto no Le Fresnoy - Studio National des Arts Contemporains. Qual é sua proposta de trabalho?

Ainda não estou totalmente decidido, mas provavelmente continuarei a série Vídeo de Cinema durante a residência na França. Pelo fato do Le Fresnoy se localizar no norte da França, estou pensando em realizar o vídeo Filme de Guerra, a partir de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, tratando em especial do "Dia D", da invasão da Normandia.

Biografia comentada Eduardo de Jesus, 05/2004

Wagner Morales (São Paulo, Brasil, 1971) Com formação em Antropologia (USP, 1992), Wagner Morales se interessou primeiramente, no campo do audiovisual, pelo documentário. Esse interesse inicial, certamente fruto de sua formação, não impede que Morales trace um caminho bastante diversificado em sua produção, que incorpora trabalhos experimentais e videoinstalações. Essas passagens entre o documentário e o vídeo experimental podem ser percebidas nos procedimentos, pouco comuns, utilizados na construção das obras, ou mesmo nas escolhas temáticas que revelam peculiares visões de mundo e do universo audiovisual contemporâneo.

Morales iniciou sua trajetória profissional em produtoras de vídeo, atuando como editor e diretor. Entre 1995 e 1997 especialização em Multimeios na Unicamp.

Entre 1998 e 2002 produziu obras (vídeos e instalações) que tematizam e refletem questões relativas às trajetórias dos corpos (humanos ou não) no espaço. O tema está presente nas videoinstalações “Bloombaalde” (1998), “Eliot” (1999) e “Rossi 22” (2002).

Já nos documentários “Olhos Opacos” (1998) e “Na Lona” (2002), Morales buscou mostrar os limites e as relações entre o corpo e o espaço que o circunda. O primeiro, realizado com o prêmio estímulo da Prefeitura Municipal de Campinas, é um sensível ensaio que mostra as relações entre a visão e a memória, o sonho e a linguagem, mistura depoimentos, textos e imagens nebulosas do cinema e do vídeo para aproximar-se do universo dos cegos.

Já o segundo, realizado com o prêmio estímulo de curta-metragem da Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, mostra o ambiente do boxe amador na periferia de São Paulo. O documentário transcende a mera abordagem do esporte e revela outros traços da vida na periferia das cidades urbanas.

Ambos os trabalhos participaram de diversos festivais e mostras, entre eles o Festival É tudo verdade, em São Paulo, em 1999 e em 2003, respectivamente.

Posteriormente, entre 2000 e 2002, iniciou a produção de vídeos que se estruturam em torno de temas específicos e que são desenvolvidos em séries. Desta fase fazem parte os três vídeos que compõem a série “Não Há Ninguém Aqui”. Nesses vídeos Morales reflete sobre a impossibilidade de comunicação e encontro nas grandes métropoles. Apesar de serem trabalhos nitidamente filiados à corrente mais experimental do vídeo, guardam traços da experiência documental.

Os três vídeos mostram esses traços, mas o melhor exemplo talvez seja “Não Há Ninguém Aqui #1”. Morales publica um anúncio com um nome fictício de um homem em busca de uma namorada. O número deixado no anúncio é o da secretária eletrônica de sua casa, que recolhe muitas mensagens, quase desesperadas, de mulheres que querem deixar de ser solitárias. Estas mensagens — algumas mulheres chegaram a ligar dezenas de vezes— servem de áudio para guiar as imagens noturnas da cidade vazia produzidas do interior de um carro.

Os vídeos dessa série foram exibidos e participaram de diversos festivais, como o 13º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, São Paulo; o Rio BR Festival, Rio de Janeiro; a V Bienal de Video e Novas Midias, em Santiago, Chile; o Medio@rte Latino, Berlim, Alemanha, e o VIDARTE 2002, na Cidade do México, México.

Em 2003 Morales iniciou a produção de uma nova série de vídeos temáticos. Dessa vez, aproxima-se do universo da produção cinematográfica tradicional e dialoga com os clichês da linguagem do cinema e seus gêneros. O primeiro da série é “Filme de Horror”, no qual Morales, através de um único plano, tenta recriar a atmosfera desses filmes. Posteriormente realiza “Ficção Científica” (2003), que reúne textos de diálogos do filme “Solaris” (1972), do russo Andrei Tarkovski, e sobrepõe imagens comuns a uma festa de réveillon, um corredor de hotel e a pista de dança de um clube que, recriados na edição, geram o clima de filmes de ficção científica. O vídeo recebeu o Prêmio de Criação Audiovisual Le Fresnoy no 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, o que possibilitará ao artista a oportunidade de desenvolver obra durante residência na instituição em Tourcoing, no norte da França. Nesta mesma série realizou “Cassino – Filme de Estrada” (2003), que recebeu prêmio de aquisição do Centro Cultural São Paulo. Em 2003 Morales foi premiado pelo roteiro do documentário “Preto Contra Branco” no 1º Doc TV, promovido pela TV Cultura e pelo Ministério da Cultura. Posteriormente foi premiado pela Jan Vrijman Fund, Amsterdã, Holanda, para pós-produção da versão para longa-metragem do mesmo documentário.

Referências bibliográficas Eduardo de Jesus, 05/2004

Para ampliar a abordagem sobre a obra de Wagner Morales, incluímos nesta seção links e alguns textos críticos, ainda em fase de publicação ou publicados em catálogos, que nos mostram a repercussão e as reflexões provocadas pelas obras do artista.

Le Fresnoy: O vídeo Ficção Científica, vencedor do prêmio Le Fresnoy no 14º Videobrasil, garante a Morales residência para o desenvolvimento de uma obra neste importante centro de criação artística.

A lei de Morales: Rafael Campos, artista plástico que participou com Morales da exposição coletiva Iniciativas, no Centro Cultural São Paulo (2001), descreve o encontro e o diálogo com a obra do artista e aponta importantes referências em um texto inédito.